Quando deixaram o interior do Maranhão para ganhar a vida próximo à Teresina, Maria do Carmo e José Cunha de Sousa trouxeram na mala poucas roupas, oito filhos e a esperança de mudar de vida. A história da família na capital piauiense começou na década de 90, paralela a história da Feira do Livro Usado do Piauí, onde as filhas do casal, ainda adolescentes, realizavam as primeiras vendas. Tudo começou com a informação de um amigo, relatando que na Praça do Liceu, quem tinha livro escolar podia entendê-los no chão para negociar com pais de alunos dos colégios particulares do Piauí.
Maria Auxiliadora, a Preta, tinha 16 anos, e lembra que as primeiras negociações foram feitas com os livros utilizados por ela e as irmãs mais novas – Maria Milene e Maria das Graças Sousa. O material escolar das meninas virou a primeira mercadoria na família recém chegada ao Piauí. Naquela época, as condições ainda eram precárias: a chuva dos primeiros meses do ano na capital ameaçava os poucos livros das famílias no chão da praça, não haviam banheiros, tampouco instalações elétricas e de água. Era difícil beber água ou fazer qualquer refeição. E também havia o preconceito com os vendedores, tidos por parte da população, como parte de um movimento que tirava a beleza do centro da cidade durante a temporada: “Todas as pessoas que estavam ali eram famílias que tentavam sobreviver”, conta Preta.
Ao longo dessas três décadas, a família Sousa viu a Feira do Livro se transformar. A primeira mudança foi quando conseguiram se mover da Praça do Liceu para a Praça Demosténes Avelino, a conhecida Praça do Fripisa, ambas no Centro da Cidade. Os vendedores conseguiram organizar os trabalhadores na Associação dos Vendedores dos Livros Usados do Piauí, na intenção de melhorar a condição dos feirantes. As primeiras mudanças foram nas instalações, quando eles conseguiram sair do chão, e conseguiram sustentar-se em barracas. Quem passa de longe, consegue ver o amontoado de instalações brancas bem no centro da praça. A família de Preta, que começou com apenas um pequeno espaço da praça, já chegou a ter mais de seis estandes, ocupados por membros das famílias e parte da nova geração de netos.
Ao longo dos anos, os negócios foram enfraquecendo e assustando os quase 500 trabalhadores do lugar. Em um mundo cada vez mais tomado pelas telas, o primeiro impacto na economia dos feirantes foi sentido quando as escolas começaram a adotar materiais apostilados – vendidos pelas próprias instituições – e a adesão de tecnologia nas salas de aula. Mesmo assim, no lugar ainda circulava a venda de literatura tradicional e proporcionava que famílias de baixa renda pudessem fazer a prática de escambo: trocar livros antigos por novos.
Foi o caso de Antônio Carlos, hoje estudante de medicina, que relembra os pedidos de cuidado da mãe com os livros durante o ano para poder ir à Feira do Livro negociar com os feirantes. “Os livros nas escolas e livrarias eram muito caros, então a gente sempre zelava para poder ir à Feira”, comentou à reportagem. “Esse lugar fez parte da nossa história. Sempre que passo, lembro que por conta dessas famílias, consegui estudar o ensino fundamental e médio até chegar à faculdade”.
Virando a página
Maria das Graças Xavier, feirante e ex-presidente da Associação, explica que cerca de 60% das vendas eram oriundas dos pais de alunos das escolas – concentradas nos quatro primeiros meses. Entretanto, a venda de literatura acontecia durante todo o ano, o que sempre fazia os feirantes pedirem prazos para estender a temporada. Em 2020, tudo mudou: pela primeira vez, mais de 230 famílias instaladas em praça pública tiveram que desinstalar suas barracas para poder se proteger do vírus. Maria das Graças, uma das primeiras vendedoras no lugar, pensou que seria o fim da Feira do Livro Usado.
Boa parte da sua família estava por lá, negociando mercadoria, desde a década de 90. Alguns dos seus filhos, que, na época eram crianças, tornaram-se hoje vendedores. As vendas garantiam boa parte do orçamento das contas da casa, escola e saúde. Há pouco mais de cinco anos, associados, ajudantes e atravessadores (negociantes de estacionamentos não associados) faziam compra e vendas a todo vapor. O lugar, na sua memória, é bem diferente de como se encontra agora: sem muito movimento, parado e quase solitário. “Esse cenário já é bem anterior à pandemia, na verdade”, explica acerca da queda na movimentação.
Entretanto, a pandemia do coronavírus empurrou os livreiros para as plataformas digitais. A venda de livros didáticos impressos, tão tradicional naquela feira, começou a disparar através das telas. Agora, boa parte deles se encontram em sites e plataformas de venda.
Núbia Ferreira, a Tia Nuboca, resiste com sua barraca neste ano. Quando tem tempo, se dedica a fazer reforma de livros usados – passando corretivos em desenhos feitos de caneta, ajeitando o arame ou embalando as capas com plástico de proteção. Ela está sempre por ali, mesmo quando a temporada acaba, por passatempo ou para poder apurar algum trocado. A Nuboca não costuma se despedir da feira em março, quando a maioria dos feirantes já encerram a temporada.
As vendas mesmo tem acontecido no seu WhatsApp, onde conversa e negocia diretamente com os clientes. A barraca tem funcionado como um centro de apoio e entrega. O cliente chega e se despede rapidamente da vendedora. Tudo negociado de forma online. “Olha, eu bem que tenho gostado, mas sinto falta dos corredores cheios de gente”, relembra. “Eu sinto que estamos mudando para uma nova etapa, estamos virando a página na história da nossa feirinha”, complementa.
Preta também acredita nessa mudança e, desde o ano passado, tem potencializado as vendas digitais. Ela criou um site, redes sociais e tem se cadastrado em plataformas de livros para poder escalar seu negócio. O curioso é que ela não possui redes sociais pessoais – e não pretende. A vendedora se considera recém-chegada virtual, mas entende que a transformação digital, mesmo em negócios pequenos, seja irreversível. “O isolamento social tem um pouco de culpa nisso”, brinca. “Apesar de ser novo, tenho gostado, e resgatado a esperança de vendas assim quando cheguei na Feira, em 1996”, complementa a vendedora.
A um clique da esperança
Empreendimentos como os dos livreiros da Praça do Fripisa, em Teresina, representam pequenos negócios que aderiram às vendas online para reduzir a queda de lucros. Uma pesquisa feita pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), evidenciou que pequenos empreendedores que não aderiram aos negócios virtuais tiveram queda no faturamento: cerca de 42% de perdas para negócios onlines e 44% para quem estava fora do ambiente virtual, ainda na primeira semana de junho, meses mais críticos da pandemia.
O Sebrae observou a adesão dos pequenos negócios, que enxergavam no comércio eletrônico, uma forma de não terem seus negócios falidos. Conforme o estudo, essa transição passou de 59% para 67%.
Mulheres, com até 24 anos, e com nível superior, têm sido o principal público atuante no comércio eletrônico, apontou o levantamento. Para a administradora Roberta Campelo, isso está ligado ao fato de mais mulheres estarem conectadas pelas redes sociais e buscando capacitações de vendas no formato digital. “Isso tem sido visível em todos os setores, do comércio à feira-livre, da tecnologia ao vestuário e até infoprodutos”, complementa a especialista em gestão de negócios.
Mariana Ribeiro, de 23 anos, faz parte dessa geração de mulheres empreendedoras na internet. Sua tia foi vendedora por quase uma década na Feira do Livro mas, por problemas de saúde, desistiu do negócio. A sobrinha ainda ajudava no atendimento e percebia o fluxo de vendas. Formada em pedagogia, ficou desempregada na pandemia, mas decidiu vender literatura infanto-juvenil por meio de grupos no facebook após realizar cursos de vendas onlines, também digitais. “Percebi que era uma forma de driblar o desemprego e investir em uma nova oportunidade”, destaca a jovem.
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