O segundo parto de Samila Catarino, de 28 anos, foi bem diferente do que ela havia planejado. Assim que entrou na admissão, na maternidade Wall Ferraz (CIAMCA), o médico plantonista realizou uma série de toques para verificar a dilatação da gestante. No momento, ele ensinava um estudante de medicina a realizar o procedimento. Apesar da paciente se queixar de dor, o profissional não cessou o ato. Samila, que não era mãe de primeira viagem, achou incomum o procedimento demorar tanto e ser tão brusco.
A sequência de violências prosseguiu, como ela relembra. Quando foi para a sala de parto, a doula que acompanhou sua gestação foi impedida de entrar. A maternidade alegou que, por conta da Covid-19, a profissional não poderia acompanhá-la – mesmo vacinada e com teste negativo para o vírus. A profissional atua encorajando e oferecendo suporte emocional – e também impedindo violação dos direitos da gestante.
Na porta da sala, ainda em pé, Samila teve uma contração forte e sentiu o bebê nascendo. Ela chegou a pedir para que as enfermeiras segurassem o bebê, mas a equipe insistia para que ela pudesse ser deitada na maca. “O meu corpo queria parir em pé, na vertical, mas fui obrigada a ter que ficar na melhor posição para o obstétra”, declara a reportagem. Na maca, por conta do estresse, o parto demorou mais que o esperado.
Uma série de movimentos bruscos aconteceram, segundo Samila, para trazer o bebê para fora e expelir a placenta – comumente realizada em processos naturais, sem intervenção médica após o parto. A cada toque, ela sentia diversas dores e pedia por anestesia. Os movimentos causaram laceração na gestante, fazendo com que a mulher precisasse de uma sutura. Ela lembra que durante todo o processo, estagiários entravam, sem o seu consentimento, para assistir às manobras feitas em seu corpo pela equipe. “Nunca mais eu quis ter outro filho, são lembranças que me deixam angustiada”, pontua.
Os episódios contados por Samila aconteceram em novembro de 2021, em Teresina. O caso dela é um entre os milhares de violência obstétrica praticados de forma naturalizada nos hospitais e clínicas de todo o mundo. Segundo a Fiocruz, 45% das pacientes do SUS e 30% das atendidas na rede privada sofreram alguma injúria do gênero num universo de 23,8 mil mulheres que deram à luz em 191 municípios. O relato faz parte do cotidiano de mulheres que vivem situações de partos forçadas, vivendo momentos de medo, angústia, más práticas e maus-tratos por parte de equipes médicas. Comumente, essas mulheres sofrem em silêncio, invadidas pela vergonha, pela raiva, pela culpa e pela dor.
Nas últimas semanas, foi promulgada pela Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi), a Lei nº 7.750, que garante que as gestantes sejam acompanhadas por uma doula nas maternidades públicas e privadas do Piauí. A lei também assegura que as mulheres terão assistência humanizada no pré-natal, pós-parto e em situação de abortamento. O projeto é da deputada Teresa Britto (PV).
Entretanto, a lei ganhou um novo capítulo, quando o deputado Marden Menezes (Progressistas) apresentou um PLO – Projeto de Lei Ordinária – propondo a completa revogação do texto em vigência. A solicitação leva como base o posicionamento de duas entidades médicas – Conselho Regional de Medicina do Piauí (CRM-PI) e a Sociedade Piauiense de Ginecologia e Obstetrícia (SOPIGO). As instituições protocolaram um ofício pedindo a suspensão da matéria na Alepi.
Marden Menezes sustenta que a lei possui um equívoco e que as doulas não são uma categoria profissional. O deputado ainda destaca que a lei abre margem para um precedente perigoso, tendo em vista que a profissão não é reconhecida pelos médicos.
O Movimento de Doulas do Estado do Piauí explica que as doulas são certificadas e capacitadas para dar assistência à mulher, não à equipe médica. Teresina já possui uma lei municipal que garante a presença das doulas em maternidades – as profissionais são cadastradas e reconhecidas no espaço para acompanhar as gestantes. Com a lei, essa assistência poderá ser garantida em todo o Piauí.
Naira Cibele, membra do Movimento das Doulas, explica que a doula não é acompanhante e nem substitui o acompanhante da mulher/pessoa gestante. Além disso, reforça que a profissional não substitui nenhum profissional do parto. “A nossa função é proporcionar o alívio natural da dor, mais segurança e bem-estar para todos os envolvidos na construção de um parto verdadeiramente humanizado”, pontua.
Em nota, o CRM-PI alegou que a presença das doulas fere a autonomia médica. A entidade criticou o fato de não serem consultados e questionam a expressão do termo “violência obstétrica”, preferindo falar em “parto seguro”. Cibele ressalta que o termo sugerido pela entidade não faz sentido, uma vez que a violência de gênero acontece contra mulheres em todo o espaço – inclusive no momento do parto. “Uma doula durante a gestação não é um capricho, é um direito da mulher”, aponta Naira. “A violência obstétrica existe e precisa ser nomeada para que as gestantes saibam como se defender. Se a gente não consegue nomear uma violência, a gente não consegue fazer nada”, destaca a doula.
Nota do CRM na íntegra:
O CRM- PI vem manifestar preocupação e repúdio aos termos da Lei Estadual nº 7.750, de autoria da Deputada Teresa Brito, publicada no último dia 14 de março, que objetiva dispor sobre assistência humanizada, sobre o direito da gestante de ter uma doula durante o parto e coibir a “violência obstétrica”. A expressão “violência obstétrica”, além de preconceituosa, deprecia e desqualifica o trabalho do médico especialista em Obstetrícia, representando um verdadeiro pré-julgamento do ato médico.
Em se tratando de uma norma legal que impacta diretamente sobre a assistência a ser prestada às parturientes piauienses, este CRM-PI informa e lamenta que não foi convidado para nenhuma reunião para discutir o tema, quando poderia fornecer os subsídios técnicos para resguardar os direitos das gestantes e dos médicos e demais profissionais de saúde que tem participação fundamental nesse importante momento.
O CRM-PI reitera que todos os médicos não compactuam com qualquer tipo de violência contra a mulher, não sendo este instrumento de lei, não discutido, mecanismo adequado para coibi-la. Em tempo, este CRM-PI manifesta solidariedade aos médicos e informa que serão adotadas as medidas cabíveis para garantir ao profissional da medicina o exercício de suas atividades com a absoluta autonomia, conforme estabelecem os princípios fundamentais do Código de Ética Médica.
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