Na Vila Boa Esperança, Zona Norte de Teresina, cerca de 50 famílias moram no lugar em situação de ocupação. A maioria vive em casas improvisadas, sem luz ou água, desde que precisaram sair de onde viviam quando o Programa Lagoas do Norte chegou nesta região da cidade, há 14 anos. Em agosto do ano passado, uma decisão judicial autorizou a reintegração de posse do local. Homens, mulheres, idosos e crianças teriam que ser expulsos pela Polícia Militar para desocupar o lugar.
Um vídeo publicado nas redes sociais circulou na tarde do despejo das famílias, mostrando um homem negro, de meia-idade, deitado no chão, recebendo chutes e ofensas de um policial armado. Uma mulher, que não teve a identidade revelada, tenta intervir e tem o rosto acertado com um tapa. Outra moradora, identificada com Samya, estava grávida e precisou ser retirada do local após inalar gás de pimenta. “Eles foram para cima, não chegaram para conversar, e nós tivemos que sair”, lembra a mulher.
A situação é bem parecida com a dos moradores do Mirante do Uruguai, na zona Leste da capital. Em menos de um ano, a ocupação sofreu cinco tentativas de desocupação violenta por parte da Polícia Militar a mando da Prefeitura de Teresina. “A gente sabe que eles só chegam assim na favela”, conta Leonardo do Nascimento, líder da ocupação. A população das ocupações é formada majoritariamente por homens e mulheres negros. Afastada dos centros urbanos, o jeito é recorrer às margens das ocupações, sujeitas a problemas de saúde e segurança pública: esgoto a céu aberto, falta de saneamento básico, acesso à água tratada e energia elétrica. “Por fim, tem a violência física e emocional que sofremos aqui. A gente sabe o nome disso: racismo”, finaliza Leonardo.
As inúmeras violências vividas nas periferias da cidade pela polícia militar passou a ser monitorada, desde o ano passado, pela Rede de Observatório da Segurança – uma organização de sete estados que contabilizam e analisam dados sobre segurança pública e direitos humanos. Os números evidenciam o Piauí com o menor contingente policial do Brasil, apenas seis mil policiais para atuar nos 224 municípios.
De acordo com o relatório, a polícia do estado é historicamente violenta, com 843 registros de ações de policiamento. Para o cientista político Marcondes Brito esses acontecimentos alimentam a falha do estado em relação à proteção de pessoas pretas. “Esse tipo de crime não é um indicador do estado e, não sendo um indicador, o estado não tem como identificar e nem como punir”, afirma.
No ano passado, a população negra do Piauí chegava a 73,4% e o número de óbitos pela polícia a 75%. Os dados são do relatório, que também contabilizou as mortes decorrentes de intervenção do estado por raça e cor. No Piauí, a porcentagem de ações policiais contra pessoas pretas é de 75%.
A letalidade se concentra principalmente em Teresina, chegando a 83%. O número é maior na capital pela contingência policial. Dois mil entre os seis mil policiais no estado se concentram em Teresina. O estudo afirmou que essas intervenções acontecem em ambientes periféricos, com perfis similares às ocupações da Boa Esperança e Mirante do Uruguai, onde as pessoas estão em situação de vulnerabilidade.
Em recorte estadual, casos de racismo e injúria racial aumentam a cada ano. Em 2021, a Secretaria de Segurança do Piauí contabilizou 243 casos de injúria racial, além de 26 denúncias por racismo. Até setembro deste ano, mais de 32 boletins de ocorrências foram registrados por racismo e 180 por injúria.
“É preciso deixar nítido que a branquitude é a responsável pela pilha de corpos e pelas manchas de sangue em que navega a frágil democracia brasileira”, evidenciou o estudo. Além de ações policiais, o Piauí ocupa o primeiro lugar do Nordeste no ranking de linchamentos. O estado apresenta 34 casos de linchamento entre agosto de 2021 a julho de 2022. Os dados são apresentados no relatório Máquina de moer gente preta.
Segundo Marcondes Brito, o perfil das vítimas de linchamento é sempre o mesmo: pessoas pretas, de baixa renda, que moram em regiões periféricas. “Há no Brasil, e no Piauí, um racismo estrutural que se mostra mais presente nas estruturas repressivas”, comenta. “Entre elas, está a polícia”.
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