Há mais de 2000 anos, Hipócrates disse: “Que seu remédio seja seu alimento, e que seu alimento seja seu remédio”. O filósofo grego considerado “o pai da medicina” sabia da relação direta entre o que comemos e o nosso bem estar.
Em agosto de 2018, O PL 6299/02, que alterava a legislação sobre a utilização de veneno, tentava flexibilizar o uso e aplicação de agrotóxicos, com substâncias nocivas à saúde consideradas cancerígenas. Boa parte da justificativa era baseada na importância do produto para o setor agrícola.
O projeto também indicava alterações na nomenclatura do agrotóxico. Se a valorização da economia ganhou espaço, por outro lado, a saúde perdeu. No quesito bem viver, políticos e donos de terras divergiam dos órgãos de segurança.
A relatoria do Projeto de Lei previa que o Ministério da Agricultura permitiria os venenos mesmo sem análises concluídas sobre sua utilização a partir de outros órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o IBAMA, como o uso de produtos cancerígenos e que são proibidos no Brasil. Na época, a FIOCRUZ (Fundação Oswaldo Cruz), emitiu uma nota técnica contra a ação.
O modelo atual de cultivo agride o homem e a natureza. O uso de pesticidas pelo agronegócio, além de danoso ao meio ambiente, causando a poluição do solo, água e ar, agride a saúde de quem faz o plantio com seu uso, como também de quem o consome.
Um ano antes da discussão do PL do Pacote de Veneno, nome pelo qual o projeto ficou conhecido, Inácio Pereira Lima entregava a sua dissertação de mestrado que o qualificaria a receber o título de mestre em Saúde da Mulher. Com o título “Avaliação da contaminação do Leite Materno pelo Agrotóxico Glifosato em Puérperas Atendidas em Maternidades Públicas do Piauí”, a motivação para a pesquisa nasceu anos antes, em 2012, com uma proposta de intervenção com populações expostas à agrotóxicos. Com a aprovação no mestrado, aproveitou o andamento do projeto e escolheu o tema como objeto de estudo.
No Censo Agropecuário 2017, o IBGE divulgou, em 2019, que o percentual de números de estabelecimentos agrotóxicos haviam crescido em 20,4% nos últimos 11 anos. A pesquisa também mostrou que 15,6% dos produtores que usavam os produtos químicos não sabiam ler ou escrever, declarando também que não tinham nenhum tipo de orientação sobre sua aplicação.
Funcionário da secretaria estadual de saúde, na área de vigilância em saúde, Inácio diz que entre os variados tipos de venenos disponíveis, escolheu o glifosato, o herbicida mais usado no mundo, como recorte da pesquisa. Ele observou as consequências desse uso em três municípios do estado: em Uruçuí, com área de maior plantio agrícola; no outro extremo, que na época foi definido como área de não característica agrícola, a região do território do Vale do Canindé, próximo a Oeiras; e em Teresina, por ser o centro de pesquisa e referência com a maternidade estadual atendendo situações de gravidez de alto risco.
A partir da análise do leite materno, a pesquisa confirmou a contaminação pelo agrotóxico glifosato em 46% das mães de Oeiras e 83,4% em Uruçuí. “Na época houve uma reação muito forte dos megas produtores agrícolas”, comenta Inácio.
Com a pesquisa, o sanitarista diz que já esperava a reação de pessoas que possuem apenas interesse financeiro. Para ele, é o retrato do “desenvolvimento” sufocando e expondo pessoas ao risco. “Prevalece a defesa dos interesses econômicos em detrimento das consequências à saúde da população”, observa. “É essa a percepção que fica”.
Tendo como justificativa de aplicação puramente econômica, o grão-negócio cria um desenvolvimento destrutivo. “Como sanitarista e através dos estudos, mostra-se essa passividade e a dominância do mercado, em defesa do dinheiro em detrimento das consequências nocivas”. O uso indevido atingindo a qualidade de vida é um problema de saúde pública.
Como um produto de uso mundial e a necessidade de lucro do mercado, na pesquisa, Inácio alertava para a necessidade de criação de serviços em relação a fatores de risco como este, de exposição aos agrotóxicos: “Todos nós estamos expostos e o mercado pressiona pela preservação de seus interesses. O estudo que eu fiz ficou por ali, mas o produto continua no mercado”.
Atualmente, todo agrotóxico ou afim que se destina a produção agrícola, armazenada, comercializada e utilizada no Piauí deve ser cadastrado na Agência de Defesa Agropecuária do Piauí (ADAPI) e registrado no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) ou IBAMA.
Segundo um levantamento realizado pelo Datafolha, em 2019, 72% dos brasileiros acreditavam que as produção de alimentos no Brasil possuíam mais agrotóxicos do que deveriam ter e 78% consideravam o consumo de alimentos com agrotóxicos como inseguro.
Larissa Bombardi é uma das principais autoras sobre o consumo de veneno através da produção do agronegócio. Em 2017, ela lançou o livro Geografia do uso de agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, com informações sobre o consumo de agrotóxicos no país.
O trabalho facilita a compreensão da dimensão da presença dos produtos químicos no Brasil e suas diversas regiões, constatando que o Piauí, na época, estava entre os três maiores estados do Nordeste com aplicação de veneno.
O Cerrado é o bioma mais agredido pelo agronegócio
Não é somente na vida das pessoas que o avanço do agronegócio trouxe fortes impactos. Durante quatro décadas, o cerrado, segundo maior bioma da América Latina, perdeu metade de sua vegetação nativa. O desmatamento do bioma, que é predominante no Piauí, seguiu invisível por grande parte da sociedade, sendo legitimado por meio de programas governamentais de ocupação e de incentivo a agropecuária que foram iniciados ainda no período da ditadura militar, e atualmente com o Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA), mais conhecido como Matopiba.
Depois da Mata Atlântica, o Cerrado é o bioma brasileiro que mais sofreu alterações com a ocupação humana. Isso porque as extensas áreas planas e a presença de farto recurso hídrico acabaram atraindo o interesse do agronegócio.
Um relatório lançado pelo Greenpeace mostra que o cerrado está gravemente ameaçado na região do Matopiba. A região, que é apresentada como a “vitrine” do agronegócio, na realidade está sofrendo com desmatamento, esgotamento de recursos naturais e concentração de renda, mostra o estudo.
Com o título “Segure a Linha: A Expansão do Agronegócio a Disputa pelo Cerrado“, o relatório cita que “a acentuada remoção da vegetação nativa, criticada por ambientalistas, é reconhecida pelas organizações e agentes ligados àquele setor, mas apresentada como uma espécie de “custo inerente ao progresso”.
Diferente da Amazônia, o cerrado não faz parte de um programa nacional de monitoramento de forma contínua via satélite. É o que afirma Myanna Lahsen, pesquisadora no Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) em artigo publicado na Environment Magazine.
Ela defende que os ecossistemas naturais no cerrado são essenciais para a manutenção das reservas hídricas que abastecem o Brasil e defende a adoção de novas políticas para promover e integrar a importância deste bioma para a nação. “Isto inclui a implementação de sistemas de monitoramento sistemático e melhorias na gestão daqueles que já estão estabelecidos”, cita.
Ainda segundo o estudo, a estimativa anual de desmatamento entre os anos de 1994 e 2002 alcançou o equivalente a mais da metade do tamanho da Bélgica e, com a expansão agrícola no espaço que abrange a região Matopiba, esse número vem aumentando. De 2005 a 2014, a área plantada na região do Matopiba aumentou 86%, enquanto a média nacional do mesmo período foi de 29%. Os dados também podem ser encontrados no estudo “Matopiba em crescimento agrícola”, publicado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
É preciso defender a Biodiversidade
De acordo com a pesquisadora do INPE, o Cerrado “é classificado como um dos 35 hotspots (termo utilizado para designar lugares que apresentam uma grande riqueza natural e uma elevada biodiversidade) de biodiversidade existentes no planeta”, que significa que o bioma apresenta elevada biodiversidade, mas encontra-se ameaçado ou passa por um grave processo de degradação.
O artigo também informa, por meio de dados, que o bioma é abrigo de cerca de 850 espécies de aves, 251 espécies de mamíferos e 12 mil espécies de plantas nativas. Há uma probabilidade de que pelo menos 901 estejam ameaçadas de extinção e ela adverte que os números reais podem ser bem maiores, pois existem muitas espécies que ainda não foram descobertas.
Em defesa desse bioma, no ano passado, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a campanha com o tema: “Cerrado, Berço das Águas: Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”, a mobilização conta com a participação de 35 organizações.
Além de ter grande importância ambiental, o cerrado é o lar de cerca de 12,5 milhões de pessoas que vivem e dependem dos seus recursos naturais. São indígenas, quilombolas, pequenos agricultores e outros povos que têm o seu modo de vida ameaçado pelos impactos causados pelo avanço de projetos como o Matopiba.
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