terça-feira, 3 de dezembro de 2024

O poço sem fundo

Obras do governo Bolsonaro, de órgãos aparelhados pelo Centrão, entregam poços sem bombeamento no sertão piauiense; gastos chegam a 1,2 bilhões

30 de agosto de 2022

Edição Luana Sena

Valmira Fernandes, de 37 anos, lembra que quando era criança, se admirava com a ideia de ter uma televisão em casa. Quando ia para a zona urbana de Oeiras, Centro-Sul do Piauí, ficava encantada com a tela de cores e som. Já adulta, casada e com filhos, o sonho mudou: ela hoje tem TV, mas não tem água na torneira. Onde mora, no povoado Mata Fria, a água não chega. “É triste saber que tem água que preste debaixo da terra”, declara a dona de casa. “Me pergunto se nunca vamos ver essa água brotar da torneira”.

A água que usa em casa vem de um poço privado, oriundo de uma comunidade vizinha à Mata Fria, e os índices de sais comprometem a saúde. Até para tomar banho a água é inadequada. Ali perto, a cerca de um quilômetro de onde mora, há uma nascente. Um poço lacrado, com inscrição “DNOCS 3/8/2020”, revela que a obra ficou pela metade. 

O poço da comunidade de Valmira está incluído em um projeto anunciado pelo governo Jair Bolsonaro (PL), chamado “força-tarefa das águas”. Parte do Nordeste e o norte de Minas seriam contemplados com poços para garantir água às comunidades atingidas pela seca. Dois anos depois da inauguração do projeto, as obras estão pela metade e as bombas nunca retiraram água das instalações. O Estadão revelou que o atual governo gastou cerca de 1,2 bilhões para construir poços no sertão. No documento, há irregularidades em pregões milionários, além de reserva de recursos para novos poços sem que outros tenham sido concluídos.

Ciro Nogueira (PP-PI) anunciou que a construção dos poços seria uma “marca” do governo bolsonarista. Para a abertura dos reservatórios, três órgãos gerenciados por indicações pessoais de Nogueira foram acionados. São eles: a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o Dnocs e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Não à toa, os órgãos ficaram conhecidos por serem aparelhados pelo Centrão de Ciro. 

A estratégia é parecida com outro caso que o Estadão tornou público sobre as “escolas fakes”. A promessa de construção de duas mil escolas nas redes sociais, enquanto há 3,5 mil abandonadas no país. Somente no Piauí, haviam 99 construções paradas. Sem dinheiro, tampouco recursos para continuar as obras, os anúncios das novas construções foram batizados de “escolas fake”. Agora, a história parece se repetir com os “poços fakes”. 

Leia mais: Escola de sobra, orçamento de menos

Conforme divulgado pelo mesmo jornal, as licitações para a construção dos poços são genéricas: não informam localidades exatas, tampouco o material utilizado durante as construções. Esses elementos, segundo especialistas em auditoria pública, influenciam no preço final do contrato, limitando a concorrência entre empresas de pequeno, médio e grande porte. Para o TCU (Tribunal de Contas da União), a súmula 177 considera “indispensável” que houvesse definição desses itens para que haja igualdade entre os participantes. 

Nem Bolsonaro, nem Ciro, tampouco o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) declararam algo a respeito. 

No Piauí, terra natal de Ciro, onde desde sua posse como ministro tem feito andanças com aliados pelo estado, a situação é delicada. Entre março e abril deste ano, as estatais aparelhadas pelo Centrão receberam seis ofícios de prefeituras, de associações e de um sindicato com a indicação dos locais onde os poços deveriam ser perfurados. Até agora, no entanto, os piauienses residentes da zona rural que esperam a chegada da água só enxergam o buraco dos poços perfurados.

Da porta de casa, Francimário de Moura, no assentamento rural de Faveira do Horácio, também próximo a Oeiras, agora tem a vista de um poço lacrado. Foi aberto em 2020 mas, ainda naquele ano, a obra não continuou. Se estivesse funcionando, cerca de 25 famílias poderiam utilizar a água para higiene pessoal e consumo. O poço também realizaria um antigo sonho da comunidade: investir em 24 hectares com plantio de caju. Sem bomba, nem água, o poço lacrado de Faveira do Horácio faz parte do cemitério de poços abandonados no sertão do país.

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