Em uma carta escrita à mão, no século XVIII, Esperança Garcia se apresenta como uma mulher escravizada que sofria maus-tratos. No dia 6 de setembro de 1770, ela redigiu aquilo que, no futuro, os estudiosos considerariam uma petição, endereçada ao governador da capitania de São José do Piauí. No documento, a mulher denunciava as constantes agressões que sofria com suas companheiras, e pedia também para ficar ao lado do filho e do marido, de quem foi separada. Mais de 120 anos depois, a carta fez Esperança ser reconhecida como a primeira advogada do Piauí, pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil ) do Piauí.
Mais de um século depois, os olhos do segmento acadêmico e cultural pousaram em Esperança. Pesquisas nas universidades deram escopo a artigos, monografias, dissertações e até um Dossiê que leva o nome da mulher, fruto da pesquisa realizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI, composta por juristas, historiadores e historiadoras, como a professora Maria Sueli Rodrigues e Andreia Marreiro – a elaboração do documento foi essencial para o reconhecimento pelo Conselho Seccional da OAB/PI.
Além disso, a história de Esperança Garcia começa a despertar o interesse de documentaristas e artistas de teatro – como o filme “Uma mulher chamada Esperança”, exibido em São Paulo e lançado esta semana para o Piauí em plataforma online de exibição. O filme é produzido por um cineasta branco.
Não sem alguns problemas. Em novembro do ano passado, a peça “Uma escrava chamada Esperança”, chamou atenção nas redes sociais. Os protestos criticavam o fato da personagem central, Esperança, ser interpretada por uma mulher branca: a atriz e ex-BBB Gyselle Soares.
O fato indignou movimentos e entidades negras no Piauí. Em frente ao Theatro 4 de Setembro, no centro de Teresina, onde a peça estreou, ativistas realizaram um protesto contra a atuação de Gyselle. Sônia Terra, da Rede de Mulheres Negras do Piauí, comentou que a escolha representava um “embranquecimento de uma pessoa negra”.
Para Sônia, uma pessoa que nunca ouviu falar na história de Esperança Garcia, ao assistir o espetáculo, fincaria na memória a imagem de Esperança como uma pessoa branca. “Não representa a causa negra e nem a história que Esperança deixou”, conta.
Nas redes sociais, a crítica não passou despercebida por Gyselle. A ex-BBB, no entanto, deixou explícito que os argumentos não a abalaram ou entristeceram. Argumentou que, enquanto atriz, poderia interpretar personagens de qualquer raça e cor. “Se quiser ser uma escrava, vou ser uma escrava e viver de uma forma bonita”, publicou nas suas redes. A peça não voltou a ser apresentada.
Não é de hoje que Jaísa Caldas, artista e produtora cultural, observa uma estratégia de invalidação da história do povo negro. Não admira-se quando pessoas negras são impedidas de participar de narrativas culturais que podem oferecer o protagonismo não somente à cor da pele, mas à história. “Não é interessante uma história tão pura e reivindicativa por si só, ser colocada por olhos de terceiros”, destaca Jaísa.
Casos como o da escolha de uma atriz branca para interpretar uma mulher negra escravizada, corroboram para um esvaziamento ofensivo e perigoso para a própria história. “Como as crianças vão entender o porquê de Esperança ter escrito aquela carta, o sentido dessa escravização?”, questiona. “Tornar nossa história uma fantasia, é desrespeitar um povo. Esperança é real”, frisa a produtora. “E preta”.
Ela reforça a importância de contar e recontar a história de pessoas negras, portanto, que quem encena ou produz, sejam pessoas cientes da luta – para além de uma obra. O cenário para o futuro é de fortalecimento das entidades, mas para isso, que seja respeitada a essência das histórias através de artistas e profissionais pretos engajados nessa luta e arte.
Lugar de fala e embranquecimento
A crítica às produções culturais sobre a história de Esperança Garcia são, no geral, atravessada por questões e debates sobre colorismo e lugar de fala. O termo, cunhado pela filósofa e pesquisadora Djamila Ribeiro diz respeito às posições sociais que cada pessoa ocupa – para quem integra o movimento negro, é incompreensível uma pessoa branca produzir, adaptar, interpretar uma história protagonizada por uma mulher negra, uma vez que essa pessoa não ocupa, socialmente – ou seja, não tem “lugar de fala” – a mesma posição da personagem a ser retratada.
Paralelo a isso está o fato de que pessoas negras tendem a ser minorias em todos os espaços sociais – uma herança escravocrata que culmina em desigualdades sociais. Assim, eleger pessoas brancas em detrimento de atores, produtores e diretores negros é uma forma de perpetuar essa desigualdade.
Na contramão do que tem acontecido sobre a história de Esperança Garcia, o ator e diretor Wagner Moura, que estreou seu primeiro longa-metragem no ano passado, tem recebido elogios pela opção de “empretecer” seu protagonista. No filme Marighella (2021), inspirado na história do baiano que enfrentou a ditadura militar brasileira em 1969, o guerrilheiro é interpretado por Seu Jorge – um homem negro retinto. Na vida real, Carlos Marighella era negro de pele clara.
Wagner Moura deu diversas entrevistas alegando que escurecer Marighella era uma forma de resgatar sua ancestralidade e motivar crianças e jovens afro-brasileiros no contato com sua história.
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