O Piauí é o terceiro estado do Nordeste com maior percentual da população autodeclarada negra. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam que 80% da população se considera preta ou parda, mas, mesmo com esse número significativo de negros, esta mesma diversidade não aparece em alguns lugares. como, por exemplo, na política.
Analisando os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre as eleições de 2020, dos 29 candidatos eleitos à Câmara Municipal de Vereadores de Teresina, apenas três se autodeclaram negros. O que separa os negros e negras dos cargos políticos eletivos? “Invisibilidade”, é o que a ex-vereadora Rosário Bezerra explica sobre a falta de participação dos negros na política. “Nós somos ainda uma população invisível, mesmo sendo grande parte da população piauiense”, diz.
A ex-vereadora relata que, por diversas vezes, quando foi secretária de governo, teve que se impor para mostrar que ali também era seu lugar. Um dos episódios vivenciados por ela aconteceu em uma solenidade em que estava presente com seu marido – homem branco e também secretário de governo – e a cerimonialista registrou apenas a presença dele. “Eu a questionei. Se eu sou secretária de governo assim, como ele, o que justifica eu não ter sido citada?, questiona.
Mesmo que percentual considerável de políticos negros se candidate, a arrecadação que conseguem para investir em suas campanhas é baixa. Além disso, se comparados aos políticos brancos, os gastos também são menores. Isso acontece porque não possuem apoio tão concreto de seus partidos para suas candidaturas e nem sempre personalidades que lutam por suas causas hoje em dia se candidatam. “O papel do Estado é promover políticas sociais de igualdade independente de cor, raça, religião e gênero”, diz.
Para Rosário Bezerra, o Estado precisa pensar em políticas de incentivo para a inserção dos negros em cargos eletivos, mas analisa que existe um processo que deve ser estudado e reparado, pois a baixa escolaridade também pode gerar menores oportunidades de emprego, que, como resultado, contribuem para uma renda baixa. Consequentemente, tudo isso reverbera nas campanhas, sem orçamento suficiente e falta de apoio dos partidos.
Se há um baixo índice de negros na política, quando se fala sobre mulheres negras o cenário é mais crítico. No Piauí, a representatividade na Câmara de Vereadores e na Assembleia Legislativa cai para zero. Mas nem sempre foi assim. Francisca Trindade, mulher negra, foi eleita primeira suplente de vereador em Teresina em 1992, ocupando de fato a cadeira dois anos depois.
Após exercer o mandato de vereadora, chegou à Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi). Seu mandato no legislativo estadual teve início em 1998. Quatro anos mais tarde bateu recorde de votação (165.190) e elegeu-se a deputada federal mais votada da história do estado.
“Esperança Garcia e Francisca Trindade são inspirações para nós, mulheres negras, o que falta é incentivo. E quando se fala de mulheres entra não só o incentivo do Estado e dos partidos políticos, mas também da família”, comenta Rosário Bezerra.
Apesar de 27% da população feminina se declarar negra, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE, mulheres negras representam apenas 2% do Congresso Nacional e são menos de 1% na Câmara dos Deputados. Garantir maior participação das mulheres negras na política, além de ser um processo de reparação histórica, é também uma forma de promover a democracia e a pluralidade de vozes nos espaços de tomada de decisões. “A Câmara de Vereadores foi o lugar que eu mais me senti igual e respeitada”, conta a ex-vereadora. “Lá você está em iguais condições, o seu voto vale igual ao dos outros”.
A coisa não tá preta
“O Brasil é um país racista”. Foi assim que o ministro Luís Roberto Barroso iniciou seu voto-parecer sobre a equidade da distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV a candidatos negros. A medida, que só deveria entrar em vigor em 2022, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a valer de forma imediata ainda nas eleições de 2020.
Coincidência ou não, em 2020, pela primeira vez nas eleições brasileiras, o número de candidatos autodeclarados negros foi maior que o de brancos, correspondendo a 49,9% do total. De acordo com a estatística eleitoral do TSE, 10.454 candidatos que antes se declaravam brancos passaram a se declarar negros. Juntando com os amarelos e indígenas que também passaram a se declarar negros, o número sobe para 10.779 (ou 42% do total).
Assunção Aguiar, gerente de igualdade racial do Piauí, acredita que ao mesmo tempo que nos aproximamos de marcos regulatórios que buscam reparar o racismo estrutural, é possível identificar uma resistência de pessoas que veem esse tipo de política pública como privilégio e não como direito, e ainda exploram as brechas nas regras eleitorais fugindo da intenção da reparação histórica.
As decisões recentes se referem à reserva de 30% dos recursos para candidaturas de mulheres e a sua distribuição entre negros e brancos, de forma proporcional à quantidade de candidatos de cada raça, visa ter mais diversidade e representatividade na política. No entanto, elas têm sido frequentemente dribladas pelos partidos. “É intrigante e até revoltante saber que após essa conquista houve um fenômeno de pessoas que se declaravam brancas passarem a se declarar negras”. conta.
Assunção diz que evitar fraudes na autodeclaração é difícil, mas a população é uma agente fiscalizadora fundamental. “Como os dados são públicos, os políticos se tornarão mais cuidadosos ao declarar sua raça. Se eles perceberem que podem ser punidos pelos eleitores, vão parar de fazer isso”, acredita.
Outro ponto levantado pela gerente de igualdade racial é que nem todo preto eleito se propõe a discutir pautas identitárias. “Não é só dizer que é preto, se não for nós por nós, quem será?”, comenta. O princípio básico das democracias representativas é que a composição da política reflete a escolha dos eleitores. Estes são vistos como os melhores juízes de seus interesses e ideologias e, portanto, as características da representação política refletirão a vontade popular manifestada nas urnas. Mas, para Assunção, isso se deve a um processo histórico. “Não nos ensinaram que preto vota em preto, que mulher vota em mulher. Nos ensinaram que a política passa de pai para filho, e agora para as esposas”.
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