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Privilégio parlamentar

Pensões pagas a ex-deputados da Assembleia Legislativa do Piauí ultrapassam a casa de 3,5 milhões por ano

01 de julho de 2021

Fiscalizar a administração pública é um dos principais deveres do cidadão em uma democracia representativa, como a brasileira. Ficar de olho no que pauta o debate sobre gastos públicos na cidade, estado ou país, passa por saber exatamente de onde vem e para onde vai o dinheiro. A Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi) deve gastar, no ano de 2021, cerca de 3,5 milhões com pensões de pelo menos 21 ex-parlamentares. Esse valor pode ser ainda maior se considerássemos os benefícios repassados aos dependentes, como cônjuges e filhos, como é previsto no regimento previdenciário próprio dos deputados estaduais do Piauí.

O Estado do Piauí fez um levantamento, ao consultar a folha de pagamento referente ao mês de janeiro de 2021 da Alepi, e apurou que esses ex-parlamentares recebem pensões com valores de 10 a 21 mil reais mensais brutos – um deputado chega a receber 38 mil reais por mês de remuneração fixa bruta.

Os dados se referem a pensões e aposentadorias de ex-deputados estaduais que optaram por contribuir no regime previdenciário próprio que regulamenta as pensões de parlamentares no Piauí. Só para se ter uma ideia, a maioria dos piauienses, segundo dados do Boletim Estatístico da Previdência Social (fevereiro de 2021), tem uma aposentadoria média de R$1.317,19.

Atualmente, a aposentadoria padrão da população segue o Regimento Geral de Previdência Social (RGPS). “As aposentadorias variam entre um piso mínimo e o teto máximo”, explica Rodrigo Lustosa, advogado previdenciário. “O piso que a pessoa pode receber é estabelecido pela própria Constituição, que é o salário mínimo. E o máximo atual é R$6.433,57”.

Além disso, com a Reforma da Previdência, a idade de aposentadoria é de 65 anos para homens e, para a mulher, 62. “A pessoa também tem que pagar um valor mínimo de contribuição mensal”, diz o especialista. “Para a mulher, a aposentadoria por idade tem que vir com 15 anos de tempo de contribuição e, para o homem, 20 anos”, pontua. O valor do benefício vai variar de acordo com o valor que a pessoa paga mensalmente ao longo dos anos.

O que daria pra fazer com esse dinheiro?

Em uma série de comparações livres, os R$ 297.929,72 (valor mensal bruto gasto com os ex-parlamentares), pago a duas dezenas de parlamentares, correspondem, por exemplo, a 270 aposentadorias de trabalhadores rurais – que recebem o piso estabelecido pelo RGPS de R$1.100,00.

O que os ex-parlamentares recebem mensalmente daria para pagar 1.490 auxílios para famílias piauienses que estão passando dificuldades durante o período de pandemia – considerando o valor de R$ 200 reais referente ao auxílio pago pelo governo do Piauí, através do Programa Cartão Pró-Social

Ainda com esse valor, o Piauí poderia alugar, em média, 16 ambulâncias do tipo B – caracterizada como ambulância de suporte básico, voltada ao transporte de pacientes com risco de vida – e do tipo D – veículos de suporte avançado para uso em transporte de pacientes de alto risco, alugadas em abril de 2020. Na época, o secretário de saúde anunciou que o valor médio mensal gasto pelo estado era de R$ 18.400, por cada ambulância alugada

Com esse valor mensal bruto daria para comprar ainda 660 cestas básicas, tomando como base o menor valor do item no mesmo período do ano – R$ 450,84 reais, de acordo com dados da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos, realizada pelo DIEESE. Por ano, a quantidade poderia chegar a 7 mil cestas básicas. Top 10 onlayn kazinolar

No primeiro ano de pandemia o valor bruto, de 3,5 milhões, poderia adquirir 72 respiradores – ampliando a capacidade de atender pacientes com Covid-19 no estado. Os objetos, indispensáveis para salvar vidas de pacientes em estado crítico, poderiam ser comprados pelo valor de 49 mil a unidade, conforme informado em veículo local em maio de 2020

 

Como funciona o regimento das pensões parlamentares estaduais?

As aposentadorias, identificadas como pensões de deputados estaduais do Piauí, começaram a ser implementadas por meio da Lei nº 3080, de 06 de julho de 1971, documento que instituiu a criação do Instituto de Previdência da Assembleia Legislativa do Piauí (INPALPI), no início da sétima legislatura do estado. Na época, era concedida pensão aos ex-deputados estaduais que tivessem cumprido oito anos de mandato. Cada parlamentar recebia proporcionalmente aos anos de mandato, à razão de 1/30 por ano, não podendo ser inferior a 1/4 do subsídio do deputado e nem a ele superior. Em caso de morte, o cônjuge inválido ou maior de 68 anos ou o filho receberia, de forma vitalícia, 50% da pensão do ex-deputado. Ele também teria direito a pensão integral em caso de invalidez por acidente no exercício do mandato, independente do período de contribuição previdenciária. Caso fosse solteiro, separado ou viúvo, o ex-deputado poderia destinar metade da pensão para qualquer pessoa que fosse beneficiária especial.

O INPALPI foi extinto por meio da Lei nº 4050, de 12 de maio de 1986, passando a ser substituído pelo Fundo de Previdência Parlamentar a partir do mesmo documento. As mudanças nas concessões das pensões aconteceram principalmente no caso de morte – a partir dessa lei, uma cota familiar de 40% e cotas individuais de 10% passaram a ser concedidas por dependente (poderiam ser no máximo 4) e seria incidente sobre o valor da pensão parlamentar já em curso ou à qual teria direito o ex-parlamentar. Dessa forma, após a morte do deputado,  seu dependente pode receber até 40% do valor da pensão. 

Além disso, a lei também prevê a concessão de auxílio-reclusão aos dependentes que não recebem pensão parlamentar. É válido destacar que a concessão da pensão se dá mediante ao cumprimento de oito anos de mandato e/ou o pagamento de 96 contribuições, sem que haja menção de valor mínimo e máximo. O Fundo de Previdência Parlamentar foi extinto em 21 de dezembro de 1992, por meio da Lei nº 4.526.

As pensões passaram então a ser regidas pela Caixa de Assistência Previdenciária Parlamentar, criada por meio da Lei nº 4.745, de 16 de janeiro de 1995. Com ela, o valor da pensão passa a equivaler a 1/20 da remuneração do deputado por ano de contribuição, não podendo ser superior à sua remuneração – sendo mantido o mínimo de oito anos de contribuição para ter direito à pensão. A alteração aqui também acontece com o aumento da pensão ao cônjuge por morte do ex-deputado: ficam garantidos 70% da pensão já recebida pelo parlamentar e há redução no número de dependentes com direito ao benefício – de 4, passa a ser 3. A Caixa de Assistência Previdenciária Parlamentar foi extinta por meio da Lei nº 5002, de 16 de abril de 1998. 

Ao analisar as leis que regem a previdência parlamentar dos deputados estaduais do Piauí, o advogado previdenciário Rodrigo Lustosa chama a atenção para o fato de que com a extinção das entidades gestoras desses benefícios, INPALPI, e a Caixa de Assistência Previdenciária Parlamentar, “os requisitos para o benefício voltam a ser com base no determinado na Lei de 1986”, comenta o advogado. Isso é possível constatar por meio da Lei nº 5.378-A, de 24 de março de 2004, que altera o artigo nº 10 da Lei nº 4.454/1986, em que o pagamento do benefício passa a ser responsabilidade da ALEPI em casos de falecimento do deputado em exercício de mandato e do IAPEP no caso de falecimento de ex-deputado que já esteja recebendo pensão parlamentar.

Com a Reforma da Previdência, o sistema de concessão de pensões parlamentares deveria ser alterado, entretanto não há nenhuma menção à previdência dos deputados estaduais na Emenda Constitucional nº 54, de 18 de dezembro de 2019, que altera a disciplina do regime próprio de previdência social. “O que deve acontecer é que eles automaticamente passam a se vincular ao regime geral”, comenta Rodrigo Lustosa.

 

Veja como ocorre com parlamentares federais

No âmbito nacional, até 1997 as aposentadorias parlamentares seguiam o modelo do IPC (Instituto de Previdência dos Congressistas). Deputados e senadores federais tinham direito a pensão de 26% do salário após 8 anos de contribuição, com idade mínima de 50 anos. Com a extinção do IPC, as aposentadorias passaram a ser regidas pelo PSSC (Plano de Seguridade Social dos Congressistas), que determina que o parlamentar que opte pela adesão ao Plano possa se aposentar com 60 anos e 35 anos de contribuição – seja ela feita no regime parlamentar ou no regime geral do INSS. O valor do benefício é baseado no tempo de mandato do político.

Segundo Alex Sertão, professor e especialista em direito previdenciário, quanto mais antiga a legislação mais privilégios elas garantem. “Por mais absurdo que possa ser esses deputados estarem recebendo valores tão altos, isso, infelizmente, é fruto do que a legislação estabelecia como critério de cálculo”, acrescenta.

Com a reforma da previdência aprovada no final de 2019, essa realidade e as possibilidades oferecidas sofreram alterações. “Desde a publicação da Reforma já ficou vedado, e isso para todas as esferas, União, Estado e Municípios, a criação de novos regimes especiais e a de novos segurados nos regimes já existentes”, comenta Rodrigo Lustosa. “A consequência disso é que os novos parlamentares e ocupantes titulares de mandatos eletivos, se não estiverem, de alguma forma, vinculados ao regime anterior, obrigatoriamente já vão se vincular ao Regime Geral de previdência”, explica o advogado previdenciário.

Políticos já eleitos que desejam manter o regime especial devem pagar período adicional de contribuição de 30%, em forma de pedágio, para se aposentar na nova idade mínima estabelecida – 65 anos para homens e 62 para mulheres. Com as novas regras, os políticos eleitos após a aprovação da Reforma da Previdência têm o benefício limitado ao teto do INSS.

“Depois da reforma, eles foram retirados da previdência parlamentar e agora vão ser assegurados no regime geral do INSS, com exceção daqueles que já estão no mandato e estão inseridos no plano de seguridade dos parlamentares”, acrescenta Alex Sertão. “Esses têm a opção de permanecerem no plano de previdência dos parlamentares”.

O especialista aponta ainda que a mudança na legislação, para que os deputados passassem a integrar o regime geral do INSS, é uma medida que demorou muito para acontecer. “É inconcebível que deputados e parlamentares se aposentem por uma previdência própria e com requisitos próprios”, comenta. “O parlamentar é um servidor público detentor de cargo temporário e, como tal, tem que se aposentar no regime geral”.

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Categorias: Reportagem

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

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