De segunda a sexta, a estudante de farmácia Juliana Damasceno, de 25 anos, se apressa para pegar a primeira condução do município de Demerval Lobão a Teresina. O céu ainda está escuro quando ela embarca na condução e, com o trânsito calmo, ela logo chega à capital. Quando desce na Universidade Federal do Piauí (UFPI), o sol finalmente saiu por completo. Para economizar, toma café em casa e parte para as primeiras quatro horas de aula do dia no Centro Ciências da Natureza. Quando o primeiro horário acaba, ela zarpa para o Restaurante Universitário (RU) mais próximo, a pé. A demora na fila e o calor fazem a fome aumentar. A espera vale a pena: o almoço custa 80 centavos, gerando uma despesa de R$16 reais por mês – quase o valor de um único prato feito em um restaurante convencional.
No seu turno livre, à tarde, a jovem é bolsista em outro departamento da UFPI. Suas atividades são semelhantes a de uma secretária, bem diferente da sua formação. É com a ajuda de custo que consegue pagar as passagens de ônibus, comprar materiais para as aulas e ajudar em casa. De noite, terceiro turno: mais aulas e segue para casa, na última condução rumo a Demerval Lobão. Costuma chegar exausta, mas as viagens intermunicipais, a espera na fila do almoço e as equações complexas das aulas de bioquímica também valem a pena por um motivo maior: em dois anos, quando se formar, Juliana será a primeira da sua família a ter um diploma de Ensino Superior.
Na semana passada, Juliana estava em sala de aula quando os colegas souberam da publicação de um decreto do Governo Federal acerca do contingenciamento de R$ 2,6 bilhões no orçamento da União. Um dos alvos seria o Ministério da Educação. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), o bloqueio total para a educação foi de R$ 1 bilhão. Especificamente para a educação superior, o valor chegava a R$ 328 milhões.
Na UFPI, a instituição informou que o corte seria de R$5,5 milhões em seu orçamento. O que antes era comprometedor agora é caótico: somente neste ano, a universidade já vinha adotando medidas de contenção das despesas na sequência de sucessivos cortes de verbas. Neste ano, enquanto os gastos aumentavam em razão do retorno presencial, o orçamento da universidade era dilapidado a tesouradas. No Instituto Federal do Piauí (IFPI), o corte chegaria a R$ 3,4 milhões em seu orçamento. A instituição apontou que, com o bloqueio, os prédios teriam dificuldade de pagar contratos de energia elétrica. Em nota, o IFPI deixou claro que os cortes não são de hoje: em maio, a redução de orçamento chegou a R$ 10 milhões e, em junho, foram R$ 5 milhões. A UFPI, por outro lado, se poupou a dar mais detalhes do quadro da instituição, e disse vir tomando medidas estratégicas desde quando os cortes começaram.
O Ministério da Educação é a pasta que sofreu o maior congelamento de verbas neste ano, segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado. São quase R$ 3 bilhões, sem incluir as emendas parlamentares. “[O bloqueio] não vai cortar gordura nem carne, vai cortar no osso. As universidades ficam inviabilizadas com esse contingenciamento”, afirmou Ricardo Fonseca, presidente da Andifes, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. Em resposta, o governo afirmou que os bloqueios orçamentários ao longo do ano tentam atender à regra do teto de gastos, pela qual as despesas da União não podem superar a inflação do ano anterior.
Ainda no final da última sexta-feira (7), o Governo Federal voltou atrás e afirmou liberar a verba para as instituições federais. O ministro da Educação, Victor Godoy, anunciou em suas redes sociais que haverá o desbloqueio de recursos para as universidades e os institutos federais, bem como para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
O Ministério da Educação (MEC) foi pressionado pelas universidades e entidades ligadas à educação após determinar um corte de 5,8%, resultando em uma redução na possibilidade de empenhar despesas das universidades, no montante de R$ 328,5 milhões. Segundo o ministro, o desbloqueio aconteceu após reunião com Paulo Guedes, titular da pasta econômica do Governo. “O limite de empenho será liberado para as universidades federais, para os institutos federais e para a Capes”, disse. “Nós vamos facilitar a vida de todo mundo”, afirmou Godoy em vídeo.
Facilidade, no entanto, não é bem um sentimento vivido pelas instituições nos últimos meses. Sem o repasse adequado, as despesas básicas das instituições são as primeiras a sentirem o impacto: manutenção, vigilância, limpeza, subsídio para os restaurantes, luz e água. Outro ponto crucial são os pagamentos de bolsas estudantis – como a que Juliana, a futura farmacêutica, recebe – e nos repasses para pesquisas e projetos de extensão. “Quem perde, em cheio, são os alunos. Eu estou falando de permanência, de assistência estudantil, do impacto na educação desse estudante, que, em sua maioria, são das camadas mais pobres da nossa população”, afirmou Fonseca. “Sem isso, a instituição – qualquer tipo de instituição – não funciona”.
O perfil ao qual o presidente da Andifes se refere são de pessoas como Lívia Ribeiro. Ela tem 22 anos e veio de Lagoa do Barro do Piauí, município ao Norte do estado. Na pequena cidade, ela fazia bicos em casas de família como faxineira – assim como a mãe e a avó. Decidiu fechar o ciclo do emprego doméstico quando fez o ENEM (Exame Nacional de Ensino Médio) e foi aprovada no curso de Arqueologia, na UFPI, no Campus Ministro Petrônio Portella, em Teresina. A distância de casa para a universidade é de quase oito horas. Por isso, precisou se virar por aqui, na capital, longe da família. Sem a sala de aula ou a universidade, ela fica mais distante do futuro que almejou. “A única forma de pessoas com a minha história terem uma nova oportunidade é estudando e com um diploma na mão”, declara a estudante. “Não quero voltar para minha cidade como faxineira. Eu quero voltar formada”, declara Lívia.
A história é bem parecida com a da colega de curso, Bianca da Silva, de 20 anos. A jovem cearense morava em Fortaleza antes de vir a Teresina. Em quase dois anos de UFPI, ela mistura o sotaque do Ceará com os dialetos piauienses. “Aqui é como um novo recomeço para mim”, explica a estudante de Arqueologia. Se a universidade acabar, não seria só um fim da sua carreira profissional, mas o fim da nova vida em Teresina. Neste ano, as investidas de cortes na UFPI tem assolado as certezas da jovem. Uma universidade não acaba do dia para a noite, acredita Bianca. “Não se mata uma instituição, mas deixam ela morrer à míngua”.
É possível ver aos poucos a metáfora de Bianca se reproduzindo na estrutura da universidade e nas conversas aflitas dos servidores, alunos e trabalhadores. Celina Matos, vendedora de lanches há quase uma década na instituição, é uma dessas pessoas. “Quando cheguei, tudo ainda era mato”, brinca com a reportagem. Mas Celina lembra que não demorou muito até que, pouco a pouco, os prédios fossem se erguendo e enchendo de gente. É dali, da banca de café com bolos, que ela tira o sustento de casa. Tudo caminhava bem, até a pandemia da Covid-19 e a chegada de muitas incertezas. Se antes, as salas estavam desocupadas por causa do vírus, agora estão ameaçadas por falta de gente. “Você já viu uma casa abandonada? Fica tudo deteriorado sem gente. Se isso aqui acabar, acaba o futuro de muita gente”.
Celina chega cedo e sai tarde. Ela acompanha estudantes dos três turnos: manhã, tarde e noite. Apesar de evitar ficar no período noturno desde os últimos assaltos. Sem segurança adequada, quem fica na universidade quando escurece corre risco de ser roubado até dentro das salas. Pior que a violência, é a vulnerabilidade que tantos alunos lhe confidenciaram passar. O almoço e janta de 80 centavos, por mais acessível que seja, ainda pesa no bolso de muitos universitários.
O copinho de café vendido na banca de Celina custa 50 centavos e o bolo R$1,50. É mais que o dobro de uma ficha, mas para não ver os alunos assistindo aula com fome, ela faz por um preço especial: de graça. “Depois Deus me paga”, aguarda. “Ou melhor, me abençoa”. Celina até explica o tipo de bênção que gostaria de ser atendida: o filho, de 14 anos, em breve deve terminar o Ensino Médio e seguir o caminho para a universidade. Não para ser vendedor, como ela, mas para estudar nas salas de aula do prédio que tanto observou crescer, encher-se, esvaziar-se e agora ameaça ruir. “Uma universidade não pode cair”, afirma. “É a única forma do filho do pobre vencer”.
0 comentário