A crise no transporte público de Teresina se arrasta há mais de um ano e meio em Teresina. Dívidas envolvendo empresas que prestam o serviço à prefeitura municipal e impasses trabalhistas resultaram em 18 meses sem transporte regular – um impacto que começa a refletir na economia da cidade. Os problemas de locomoção da população convergem em efeitos no comércio, no setor imobiliário e na prestação de serviço.
Em agosto deste ano, revelamos que os gastos do teresinense sem carro próprio com aplicativos de corrida como Uber e 99 começavam a pesar no bolso: os valores das corridas já correspondiam a 30% do salário de muitos usuários, antes, usuários do transporte público da capital. As tentativas de negociação entre empresários que prestam serviço à prefeitura geraram um verdadeiro imbróglio: em 11 de outubro o Setut prometeu a volta dos ônibus as ruas com aumento de 40% da frota. Parecia início do acordo, que garantia o pagamento da dívida de 21 milhões da prefeitura com o consórcio – a ser pago de forma parcelada até 2022.
Mas só parecia. No mesmo dia, motoristas e cobradores alegaram não terem sido consultados pelo Setut na firmação do acordo. Eles exigiam a assinatura de uma Convenção Coletiva, com o fim dos pagamentos em diárias e restabelecimento do piso salarial. Os ônibus ainda rodaram por cerca de 10 dias mas, na manhã desta quinta-feira (21), amanheceram novamente parados. Membros do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transportes Rodoviários do Piauí (Sinetro) reivindicam direitos dos servidores, como auxílio-alimentação e plano de saúde.
Cerca de 40 vans que também circulavam na capital pararam as atividades após bloqueio, sem aviso prévio, do sistema de bilhetagem eletrônica. A Strans informou o bloqueio dos transportes coletivos é para garantir a lisura do processo de auditoria de controle das vans que circulam na cidade.
No meio disso tudo, trabalhadores que dependem dos coletivos seguem enfrentando as dificuldades diárias de uma capital sem transporte. Ao todo, são mais de 800.000 pessoas vivendo em Teresina (IBGE, 2019), distribuídas principalmente em conjuntos habitacionais e bairros periféricos, que dependem essencialmente do serviço de transporte público para se deslocar.
Em 2019, havia cinco milhões de passageiros usuários de ônibus em Teresina. No ano seguinte, o número diminuiu para 350 mil – cerca de 7% do total de passageiros transportados no ano anterior. O Setut atribui a redução significativa a pandemia da Covid-19. No entanto, um levantamento feito entre abril de 2020 e março de 2021 revela que o número de usuários subiu para 570 mil passageiros.
Leia mais: Enquanto o ônibus não vem
No mês de setembro, uma reportagem do jornal O Dia trouxe à tona a história do impressor Adalmir Barbosa, 57 anos, que estava dormindo no trabalho porque não conseguia ônibus para voltar para casa. Trabalhando nas imediações do Centro de Teresina, ele saia do local às 22 horas e tentava a sorte na parada de ônibus para pegar a última viagem da linha 507, com destino ao bairro Jardim Europa, onde mora. O impressor é usuário do transporte público há mais de 30 anos e nunca imaginou pernoitar no serviço pela ausência de ônibus na cidade.
As mudanças também afetaram o setor imobiliário na capital. Desde que a crise começou, muitas pessoas optaram por mudar de casa ou local de trabalho para reduzir gastos com locomoção. O especialista em mercado imobiliário, Igor Bastos, contou que, desde o início da pandemia, essa migração aumentou em torno de 30% a 40% – principalmente entre as chamadas classes C e D, famílias com renda acima de 4 mil reais.
De acordo com Igor, tem se tornado mais vantajoso mudar de casa ou trabalho do que gastar com gasolina ou utilizar transporte público. “É uma tendência acontecendo na capital”, observa Igor. As pessoas estão buscando cada vez mais trocar salas e imóveis para poder ir a pé ao trabalho, ou se sentir segura utilizando bicicleta”, avalia.
O empresário Floro Mauel foi uma das pessoas que preferiu mudar o escritório de trabalho para diminuir custos de transporte pessoal e dos funcionários. Com um quadro de colaboradores dividido em presencial e home office, ele chegava a gastar em torno de R$350 reais apenas com uma funcionária. Ele explica que, habitualmente, com transporte funcionando, o gasto com auxílio transporte seria em torno de R$160 – uma média estimada para 20 dias úteis de trabalho com o uso de vales transportes, calculando ida e volta.
Para a mudança, ele pensou em um local estratégico – que fosse positivo tanto para ele quanto para os funcionários. A aposta foi em um local próximo ao shopping Rio Poty, um dos pontos da cidade que, mesmo com a redução da frota, ainda recebe conduções com mais frequência. “Eu também mudei de casa, para conter gastos com combustível. Com a nova casa, minha esposa vai ao trabalho à pé”, explica Floro. “Se Teresina tivesse uma opção de qualidade com transporte público, não seria problema trocar o carro pelo ônibus. Já seria um custo a menos”, frisa.
Um ponto a menos no currículo
Como se a crise econômica deixada pela pandemia da Covid-19 já não fosse suficiente para aqueles que tentam ingressar, com dificuldade, no mercado de trabalho, não ter como se locomover em Teresina, transformou-se um ponto a menos na hora de tentar uma vaga de emprego. É o caso de Maria de Fátima Moura: aos 43 anos, desempregada desde o ano passado, ela procura emprego na área de atendimento ou recepção.
Boa parte do período de isolamento social ela se manteve com o auxílio emergencial do Governo Federal. Ela destaca que chegou a recusar propostas de emprego porque sabia que não teria como se locomover. Maria mora no povoado Boa Hora, na zona rural de Teresina, e não possui carro ou qualquer outro automóvel – ela precisa pegar uma condução para sair do povoado e ir ao centro da cidade, e de lá, embarcar para as outras zonas da cidade.
Na parada de ônibus da Praça da Bandeira, no centro, ela conta que já chegou a esperar quase três horas por um ônibus que pudesse ir à zona Sudeste de Teresina, onde seria entrevistada para uma vaga de recepcionista de uma clínica. No dia, ela perdeu o horário e não compareceu à seleção. “Quem não tem carro nessa cidade não é ninguém”, lamenta a mulher. “É muito frustrante ter que largar uma oportunidade porque o governo não oferece o mínimo”, finaliza.
Ter uma proximidade geográfica com o local de trabalho ou condições de chegar ao serviço sempre foi um dos pré-requisitos importantes e pedidos pelos gestores, pontua Gleyciane Viana, profissional em Recursos Humanos e Recrutamento. Durante a crise do transporte público de Teresina, a possibilidade de locomoção tem se tornado cada vez mais importante na hora da decisão de contratação.
“Durante a seleção, é sempre oportuno entender como aquele profissional vai se deslocar de casa para o trabalho”, destaca Gleyciane. “Comumente, as pessoas tentam dar respostas positivas, fazem contratos com motoristas particulares, usam aplicativos”, explica a recrutadora. “Ultimamente, tem se percebido como as pessoas têm feito cada vez mais esforço na tentativa de resolver o problema e não serem desclassificadas”, complementa.
Transportes clandestinos tomam conta
Em meio a crise, há quem tenha visto também oportunidade de negócio. Na tentativa de sanar um dever público, algumas iniciativas de locomoção coletiva se espalham pela cidade. Ali, nas imediações do cruzamento das ruas Rui Barbosa e Lisandro Nogueira, centrais de um serviço conhecido como “ligeirinho” – ou “rapidinhos”, como algumas pessoas chamam – despontam como opção para quem precisa se locomover em uma cidade sem ônibus.
O serviço faz jus ao nome. Em poucos segundos, o transporte que se assemelha a uma mini van, estaciona em frente ao ponto de ônibus. Geralmente formada por uma equipe de mulheres, elas abrem a porta do veículo e gritam o destino. O transporte se enche de pessoas que aguardavam pela condução tradicional. A equipe de ligeirinhos é formada por quase 150 motoristas e atende cerca de 30 bairros em Teresina.
Sem nenhuma tecnologia, a divulgação do serviço é toda no marketing boca-a-boca. O “ligeirinho” existe desde 2014 mas, com a pandemia da Covid-19 e o colapso do transporte público, ganhou cada vez mais espaço e tem se tornado a salvação para usuários da zona Sul, Norte e Sudeste – até o momento, não possuem linhas circulando na zona Leste.
Apesar de serem conhecidos e atender as demandas da população, os “ligeirinhos” operam na clandestinidade. Em Teresina, ainda está para ser sancionado o projeto que cria o “Táxi Lotação”, que deverá permitir o serviço coletivo tanto dos “ligeirinhos” quanto dos táxis em formato de condução. O projeto já foi aprovado pela Câmara Municipal de Teresina.
“Até o momento, a gente foge das fiscalizações da Strans (Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito)”, conta Fábio Nunes, um dos organizadores do sistema. “Somos pais e mães de família buscando trabalhar. Queremos ser legalizados e ser uma opção de qualidade para as pessoas”, finaliza.
O transporte tem sido bem visto pelos usuários – principalmente pelo custo benefício. Se com transporte por aplicativo ou táxis, as pessoas chegam a pagar acima de 15 reais em uma corrida, com o “ligeirinho”, as tarifas variam de cinco a sete reais – muitas vezes, dependendo do trajeto, os passageiros são deixados na porta do trabalho ou de casa. Os próprios passageiros se organizam em grupos de whatsapp para alertar as equipes de centrais sobre as fiscalizações.
Nota da redação: A Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (Strans) informou que não possui dados específicos sobre o perfil de pessoas que acessam o transporte público.
0 comentário