sexta-feira, 29 de março de 2024

Enquanto o ônibus não vem

Paralisações, demissões, terminais destruídos… o transporte público pede passagem para o colapso

16 de agosto de 2021

Teresina completa 169 anos a pé. É claro que a hipérbole não inclui aqueles que possuem transporte próprio – com uma frota de quase 500 mil carros e motos, a cidade tem um veículo para cada dois habitantes. Os dados revelam uma forte dependência da população em relação ao carro. Mas, sob outra ótica, denunciam também a ineficácia de um sistema de transporte coletivo, que agoniza.

Em dois anos, os ônibus do transporte público de Teresina perderam mais de um milhão de passageiros, segundo balanço do Setut (Sindicato das Empresas de Transportes Urbanos de Passageiros de Teresina). O número contrasta com os dados do Denatran: em nove anos, a frota de veículos aumentou 216% na cidade, impactando não somente no comprometimento do fluxo de trânsito, mas também no meio ambiente ,com a emissão de gases que culminam no efeito estufa. É um modelo de mobilidade urbana que se mostra insustentável. 

Parte da aquisição desenfreada de veículos relaciona-se também com o crescimento desordenado da cidade. Desde os anos 1960, a capital piauiense vem registrando uma das maiores taxas de aumento populacional entre as capitais nordestinas – são 864.845 pessoas vivendo em Teresina (IBGE, 2019). A maior parte delas morando em conjuntos habitacionais e bairros periféricos da cidade. 

O estudo “Urbanização e crescimento populacional: reflexões sobre a cidade de Teresina”, desenvolvidos por pesquisadores da UFPI, aponta que, por conta da baixa intervenção e falta de planejamento, o crescimento da cidade se deu de maneira desordenada, desigual e, o que é mais grave ressaltar aqui, com a segregação de acesso aos serviços. 

Rafaela Santos é uma jovem de 19 anos que gasta preciosas horas do dia para ir de casa, no bairro Vale Quem Tem, para a Universidade Federal do Piauí – o detalhe é que ambos os pontos estão localizados na mesma zona, ao leste da capital. Em alguns dias o trajeto de ida e volta pode chegar a durar até 3 horas.

Atualmente, a estudante de contabilidade está à procura de um estágio, mas relata dificuldades para ser admitida por conta da falta de um transporte. “As pessoas até gostam do meu currículo mas, quando percebem que não tenho carro, não me chamam para a vaga”, lamenta.

A crise no transporte público se potencializou ainda mais com a pandemia provocada pelo coronavírus. Em março de 2021, Teresina completou um ano sem transporte regular. Com a redução das frotas, que tiveram início como parte das medidas protetivas em relação a crise sanitária, um problema histórico que se ocultava entre dívidas e acordos não cumpridos pelas gestões municipais e as empresas prestadoras de serviço, veio à tona – culminando em uma sucessão de greves, demissões, precarização do trabalho e sucateamento do transporte. 

Sem ônibus nas ruas, atualmente o transporte coletivo tem sido feito por esquemas precários de vans e micro-ônibus clandestinos, que circulam sem fiscalização e sem garantia de nenhum protocolo sanitário no controle da epidemia. 

Os problemas no transporte público de Teresina resistem há pelo menos três décadas – a cidade é atendida basicamente por linhas de ônibus, uma vez que o metrô só contempla a zona sudeste da capital, não servindo a moradores de outras regiões. 

Ignorando o fato de que o transporte é um direito constitucional, a cidade segue em retrocesso que afeta, diretamente, o desenvolvimento econômico e social.  O impacto, aliás, tem cor e gênero: mulheres e pessoas negras são as principais afetadas pelo descaso público – assistindo a desigualdade passar no ponto, enquanto o ônibus não vem. 

Impasses históricos

No ano de 2008, a prefeitura municipal divulgou o relatório final do Plano Diretor de Transporte e Mobilidade Urbana. O estudo era resultado de trabalhos e pesquisas que visavam a reestruturação da rede de transportes coletivos de passageiros na capital. Ele seria base para intervenções e projetos na área urbana, previstos para dali a 10 e 20 anos. 

Os relatórios apontavam dados sociodemográficos e características da mobilidade da população: dados como os principais motivos de deslocamento, medição dos fluxos de acesso à cidade além das necessidades dos usuários foram consultados para a formulação daquele que prometia ser um modelo de integração exemplo para todo o país.

Era noite quente de uma sexta-feira, 16 de março, uma comitiva política se reuniu no terminal de integração do bairro Parque Piauí, zona sul da capital, para a inauguração do novo sistema de transporte público. Dez anos haviam se passado desde a elaboração do tal plano e as autoridades comemoraram – posando em cliques dentro do ônibus – a enfim a implantação do novo sistema, batizado de Inthegra.

Presente no evento, o ministro das cidades, na época, Alexandre Baldy, afirmou que o sistema era “uma obra revolucionária no transporte público”. Ao menos, no quesito de investimentos, o sistema foi mesmo: R$ 460 milhões de recursos federais foram investidos, somados a R$ 372 milhões dos cofres da prefeitura para a implantação do novo sistema. Além dos novos terminais e corredores exclusivos, 40 novos ônibus modelo BRT (Bus Rapid Transit) começariam a rodar na manhã de sábado seguinte. Era o início de um sonho que demoraria pouco a virar pesadelo. 

Naquele mesmo ano, 2018, uma pesquisa do Ministério Público do Piauí revelava o alto índice de insatisfação dos usuários com a qualidade do transporte público coletivo na capital: 92% dos respondentes consideraram ruim o serviço oferecido e 84% reclamavam do valor das tarifas. 

Na época, o então diretor de transporte, Francisco Nogueira, atribuiu as avaliações negativas às mudanças provocadas pelo novo sistema, que ainda nem havia sido implantado em sua totalidade. De fato, as mudanças vieram aos montes: além dos novos terminais e novas rotas, as linhas de ônibus ganharam nova nomenclatura para adequação ao novo sistema. Além disso, o Inthegra só seria válido para passageiros que emitissem o Cartão Integração nos pontos de revenda do Setut. 

Mas a principal mudança sentida pelos usuários foi mesmo no bolso: no final de 2018, representantes  do Conselho Municipal de Transporte debatiam uma proposta de reajuste de 11,67% no preço da passagem para o ano seguinte. Estudantes, na época, protestaram a votação da proposta, marcada para o fim do ano (27 de dezembro), período de férias escolares e sem tempo para discussão com a sociedade. 

Em 10 de janeiro de 2019, a população acordava com a segunda tarifa mais cara do Nordeste, perdendo apenas para Aracaju (onde a tarifa era 4 reais) – o então prefeito Firmino Filho (PSDB) definira na véspera o novo valor da passagem: de R$3,60 passava a R$ 3,85. A meia tarifa pulou de R$1,15 para R$1,28. A mudança, é claro, não agradou a população, que reclamava da má qualidade de funcionamento do novo sistema. 

Ano novo, novo reajuste. No último dia de janeiro de 2020, o prefeito Firmino Filho reajustou a passagem para R$ 4,00 – o valor era ainda inferior ao proposto pela CMTP (R$ 4,22 a inteira e R$ 1,40 a estudantil), mas o prefeito decidiu um reajuste de 3,89%, índice abaixo da inflação (4,31%).

Na época, a prefeitura alegou que o reajuste era necessário para manter o equilíbrio do sistema de transporte coletivo – no ano de 2019, informou a gestão em nota, os cofres municipais teriam subsidiado o custo do sistema com aproximadamente oito milhões de reais. 

Não é exagero afirmar que, historicamente, o sistema de transporte público de Teresina sempre foi alvo de conflitos de interesses. O arquiteto e urbanista Luan Rusvell, assessor popular pelo Direito à Cidade de Teresina, destaca três questões-chaves do problema: a falta de diálogo, o valor das tarifas e a concessão do transporte. Para ele, as problemáticas são apontadas desde a idealização do Plano Diretor, há mais de uma década – e que até hoje não foi totalmente implementado. “É difícil avaliar o sistema Inthegra porque ele ainda não funciona”, critica. “O que temos hoje é a entrega das infraestruturas do transporte, mas que não resolveram os problemas”.

Com um histórico de protestos sobre o fluxo de ônibus e as tarifas cobradas para a locomoção, a concessão, que está sob suspeita de irregularidades, passa por investigação de uma CPI. Para o arquiteto, o contrato, que deveria criar caminhos para a melhoria do sistema, acabou entregando-o ao total controle da iniciativa privada. 

O sistema, de fato, não beneficia quem mais necessita do transporte público – pessoas que moram em zonas periféricas da cidade. Quem não mora em bairros centrais ou em alguma zona atendida por uma das linhas, viu o serviço declinar. “Foi uma piora na qualidade do sistema”, diz Luan. “As pessoas foram obrigadas a um tempo de deslocamento e espera maior”, analisa. “É a implantação de um sistema caótico”.

Crise dentro da crise

Nos primeiros meses de 2020, uma sucessão de decretos da prefeitura suspendeu as gratuidades e o passe estudantil. Era mais um capítulo na dramática sina do sistema de transporte público da capital. Na ocasião, a prefeitura determinou que a frota de ônibus fosse reduzida para a cota mínima (25%), como estratégia de coibir a circulação das pessoas em um dos momentos mais críticos da pandemia.

Francislane Viana, moradora do bairro Colorado, zona sudeste de Teresina, é usuária do transporte público. Hoje, entre suas principais reclamações está a falta de constância dos horários, a incerteza da chegada dos ônibus e a mudança das rotas: “Durante a semana é como os horários de domingo: o ônibus passa a cada duas horas”, comenta.

Ela trabalha em um shopping e tem sofrido com a mudança de trajetos dos motoristas para cortar caminho em outros bairros. A vendedora entra às 14 horas no trabalho, mas costuma sair de casa às 11h para não perder o único transporte. “Essa incerteza complica a qualidade de vida da gente”, reclama. “Vou pro ponto de ônibus sempre me perguntando se ele vai vir”.

As empresas alegaram que a redução dos passageiros afetou a redução da circulação dos ônibus – em uma espiral problemática onde consequência vira causa. Os ônibus passaram a fazer as rotas anteriores ao sistema de integração (dos bairros ao centro). A lotação ficou mais frequente, contrariando as orientações de distanciamento orientadas pelas autoridades de saúde.

A isso soma-se a dívida entre a prefeitura e as empresas subsidiadas – somente na gestão de Dr. Pessoa já se acumulam R$ 31 milhões que deixaram de ser repassados as empresas de transporte urbano. A falta de ônibus e desistência dos passageiros culminou também no abandono das estações, que passaram a ser depósitos de lixo depredados e mal cuidados. 

Em março deste ano, o Ministério Público do Piauí (MP-PI) solicitou uma auditoria dos contratos em vigência no transporte coletivo de Teresina.

Cidade X mobilidade

Na percepção da pesquisadora e urbanista Nícia Ibiapina, para diminuir os prejuízos históricos há a necessidade de se desenvolver uma integração entre mobilidade e infraestrutura. “Não podemos pensar na infraestrutura de vias sem pensar nas moradias, nos espaços de lazer ou nas áreas de serviço”, argumenta. “Todos têm que estar integrados”.

Para a pesquisadora, a integração dos fatores, aliada à possibilidade de escolha entre os modais de transporte, atenuaria problemas de toda a população – daqueles que enfrentam um engarrafamento em seus carros até cadeirantes, que não encontram rampas de acesso para atravessar uma avenida. “É preciso que haja diversidade para realizar os deslocamentos diários”, conclui.

Quem procura diversificar o transporte em Teresina, como ciclistas, acaba não encontrando espaço e segurança nas ruas e avenidas da cidade. O grupo perfil do ciclista surgiu recentemente na cidade com a ideia de mapear as pessoas que utilizam a bicicleta como meio de transporte, bem como as principais dificuldades encontradas na cidade.

Débora Moura, uma das integrantes, relata que usar a bike em Teresina é se submeter a muitos perigos – eles começam no desrespeito de motoristas e vão ao descaso da prefeitura, com a ausência de ciclovias. “É muito perigoso”, relata. “Há trechos em que paro de pedalar para atravessar a pé”.

A falta de estrutura e o risco para ciclistas é denunciado pelo número de acidentes no Piauí. Em levantamento recente, com base nos dados disponibilizados pelo DATASUS, oestadodopiaui.com revelou que, em uma década, o Piauí contabilizou 489 acidentes com ciclistas. É a 4ª maior taxa entre os estados do Nordeste.

NOTA DA REDAÇÃO: Nossa reportagem tentou por meses obter informações e documentações – que deveriam estar públicas para o acesso de qualquer cidadão – sobre o Inthegra. Nossas tentativas de contatos com a gestão municipal eram frequentemente repassadas ao Setut que, por sua vez, informou apenas que o sistema ainda não se encontra finalizado e seu plano de gestão está em fase de produção. 

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Categorias: Especial

Camila Santos

Graduanda em jornalismo na Universidade Federal do Piauí.

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