Há um ano e meio, o Piauí, tal qual o mundo, convive com a pandemia causada pela Covid-19. Tanto tempo depois dos primeiros casos, muitas adaptações aconteceram. No estado, 300.309 pessoas foram infectadas e 6.676 perderam a vida, de acordo com dados da Secretaria de Saúde. Um rápido aumento no número de mortes que, além da dor da perda e de uma sociedade em luto, traz um outro problema: há lugar para sepultar tantos mortos?
Em Teresina, o número de óbitos por Covid-19 acentuou o problema que há anos é noticiado nos meios de comunicação: a superlotação dos cemitérios. Há pelo menos quatro anos, o fato é conhecido pelo município. O Plano Plurianual desenvolvido pela Secretaria Municipal de Planejamento e Coordenação (Semplan) para os anos de 2018 a 2021 – desenvolvido ainda na gestão do ex-prefeito Firmino Filho – aponta o déficit e a necessidade de ampliar e disponibilizar mais vagas de jazigos. Na época, o relatório contabilizava 13 cemitérios municipais – hoje a prefeitura de Teresina soma 12 cemitérios públicos.
Com a pandemia, o número de sepultamentos na cidade cresceu. Das 6.308 mortes contabilizadas no ano passado, 1.229 foram em decorrência da Covid-19 – de acordo com dados do Plantão Funerário. A maior média móvel (balanço dos últimos sete dias) no período analisado registrou o alcance de 21 óbitos e o maior índice de mortes na faixa etária entre 20 a 49 anos (60,7%).
Diante da situação de calamidade pública e insuficiência de covas, a gestão anterior da Prefeitura de Teresina realizou uma concessão com os cemitérios privados da cidade para utilização de 10% dos jazigos – um benefício garantido por Lei – sob a condição da construção de sepulturas pelo município – jazigos estes que poderiam ser reutilizados até cinco anos. Contudo, a administração do Cemitério Jardim da Ressurreição, localizado na zona sudeste da cidade, relata que a prefeitura não cumpriu o acordo da construção dos jazigos, o que além do prejuízo gerou certo constrangimento. “Nós chegamos a atender uma grande demanda, sem nenhum custo, para a prefeitura, só que depois de alguns anos este cliente terá que comprar o local ou os restos mortais serão exumados”, explica Maria das Dores Rocha, gerente do local.
Desde o início da pandemia, o Cemitério Jardim da Ressurreição apresentou aumento de 150% no número de atendimentos. A média mensal de mortes, até antes de uma das maiores tragédias da história, era de 49 sepultamentos – mas a equipe do local chegou a realizar até 300, nos períodos mais agravantes de alastramento da doença. A diretora menciona que a situação foi atípica para todo o setor: “É totalmente diferente”, analisa. “A gente trabalhava em um ritmo normal e durante a pandemia tivemos que nos adequar, sem contar o desgaste emocional”, completa.
Com a chegada das vacinas e o processo de imunização, o número de óbitos passou a diminuir, assim como a taxa de transmissibilidade no estado que, atualmente, está abaixo de 1, sinalizando um potencial de baixa contaminação. Dados divulgados na última semana pela Fundação Municipal de Saúde (FMS) também apontaram uma redução de 36% no número de óbitos pela doença. Apesar das estatísticas positivas, especialistas ainda fazem o alerta para o perigo do retorno das altas taxas de mortes, caso a vacinação da maior parte da população não aconteça em ritmo suficiente para barrar a mutação dos vírus. Explicamos mais sobre essa possibilidade na matéria “Covid pega no ar”.
Em caso de uma terceira onda da Covid-19, o Plantão Funerário, o setor mantido pela prefeitura, responsável por orientar pessoas que precisam sepultar alguém e saber a disponibilidade de vagas nos cemitérios, informa que não há capacidade para novos sepultamentos. Com exceção na zona norte, onde existem projetos de ampliação e abertura de novos cemitérios, quase nenhum outro cemitério na cidade, seja público ou privado, está preparado para novas ondas de mortes em grande volume.
Trabalhando com a morte
O aumento de mortes impactou até mesmo a rotina daqueles que já estavam acostumados a encarar rituais de luto. Desde que a cidade de Teresina decretou também o seu “Estado de Calamidade Pública”, em abril de 2020, principalmente, profissionais que trabalham com serviços pós-óbito (transporte, guarda-corpo, colocação no caixão e sepultamento), tiveram suas jornadas ampliadas – maio e julho do ano passado, bem como março e maio desde ano, foram os períodos de trabalhos mais intenso.
Para alguns, a pior parte de encarar pessoas morrendo numa velocidade assustadora, era ter que enfrentar também comentários descrentes sobre a mortalidade da doença. “Até uma pessoa que costumava visitar um ente querido só começou a acreditar que o risco era real quando um parente morreu”, conta Antônio Cruz, coveiro há 22 anos.
Diariamente ele e os companheiros, Thiago Barbosa e Anderson Campos, olham o painel disponibilizado pela administração para ver quantos sepultamentos acontecerão no dia. Depois eles seguem para o preparo da gaveta e organização do cerimonial para as famílias enlutadas – que, no período da pandemia, só podem permanecer no local por no máximo trinta minutos.
Desde a chegada do primeiro corpo de vítima do vírus – há quase um ano e meio – novos treinamentos, protocolos e uniformes foram adquiridos para o trabalho, que inicia às 7 horas da manhã e vai até às 7 da noite, a céu aberto. Apesar do aumento de dispositivos de segurança, ainda assim, muitos profissionais foram infectados: “Todos nós pegamos esta doença, era quase inevitável não pegar”, diz Thiago Barbosa, também coveiro. “Faz parte do serviço”. Eles, trabalhadores considerados essenciais, nunca tiveram a chance de parar.
Por causa do risco de contaminação, os rituais de luto para as famílias, que incluem a despedida no enterro, também passaram a ser diferentes. De acordo com o Guia para o Manejo de Corpos no Contexto do Novo Coronavírus (Covid-19), elaborado pelo Ministério da Saúde, orienta que a cerimônia de sepultamento aconteça em áreas ventiladas com a limitação de 10 pessoas, além, é claro, das medidas de distanciamento social. Durante todo o velório o caixão deve permanecer fechado para evitar qualquer contato com o corpo, o que, para muitos, é motivo de bastante sofrimento. “Tem gente que não entende”, diz Thiago. “Algumas famílias questionavam, sendo até difícil explicar para alguns o motivo das urnas ficarem fechadas”, diz, relembrando uma situação marcante para ele: após três dias do enterro de um parente, uma família voltou para abrir o mesmo jazigo e enterrar mais uma pessoa.
No Jardim da Ressurreição, onde eles trabalham, uma área foi reservada apenas para o sepultamento de vítimas da Covid-19. Além de conviver com a morte, eles também são o termômetro para amigos e familiares. “Aviso sempre ‘Olha, a coisa tá feia, cuidado aí’ ou ‘Agora está um pouco mais tranquilo’”, explica Anderson Luis, coveiro há 6 anos.
Uma vaga para o descanso eterno
A Lei Municipal Nº 4.916/2016 prevê que pessoas com renda per capita igual ou inferior a meio salário mínimo e inscritas no CadÚnico podem solicitar o auxílio funeral, que compreende o custeio de despesas com urna funerária, velório e sepultamento em cemitério público.
Apesar da prática, os órgãos informam que não há instrumento legal específico regulamentando a concessão de jazigos e construção de gavetas em cemitérios para pessoas que são público-alvo do auxílio. A captação de vagas acontece de forma informal por profissionais junto aos administradores dos cemitérios. A Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas – SEMCASPI, informou por meio de nota que há “necessidade urgente em regulamentar tal procedimento, no sentido de uniformizar o atendimento, dividindo-se as cotas entre cemitérios públicos e privados, compartilhando igualmente as responsabilidades entre estes, sobretudo com a finalidade de garantir tal direito em conformidade com as normativas legais”.
Cinco ou três anos após o sepultamento é possível reutilizar o jazigo para outro sepultamento – um recurso utilizado durante a pandemia por conta da falta de vagas.
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