quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Sob um teto de estrelas

População de rua cresce 60% em Teresina; pesquisadores acreditam que oferta de dormitórios e alimentação não resolve

14 de fevereiro de 2022

No dia 4 de janeiro de 2021, Dr. Pessoa, prefeito recém eleito, chegou em carro aberto no Palácio da Cidade, acompanhado do vice, Robert Rios. O primeiro dia de trabalho do novo gestor foi marcado pela entrada do prefeito acompanhado de pessoas em situação de rua. Na ocasião, a sua primeira fala à imprensa foi exatamente sobre a população em vulnerabilidade social.  “Pessoas que ficam nas praças não sentem o sabor da cidadania”, disse o político. “Por isso, meu primeiro ato vai ser um ato social para os vulneráveis”.

No dia 1 de governo, prefeito prometeu governar pela população em vulnerabilidade (Foto: ascom PMT)

Um ano depois dessa fala, a realidade é que o número de pessoas em situação de rua aumenta consideravelmente em Teresina. A Secretaria de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas (Semcaspi) – órgão municipal que realiza trabalho de apoio a esse grupo – evidenciou um aumento de 60% das pessoas em situação de vulnerabilidade, em comparação aos últimos dados de 2020.  

O Centro de Referência, localizado na região Centro-Sul de Teresina, é o espaço disponibilizado pela prefeitura para que pessoas em situação de rua possam tomar banho, realizar refeições, usar lavandaria e, caso necessitem, podem ser encaminhadas para benefícios sociais ou atendimento de saúde. Comparado ao ano passado, esses atendimentos aumentaram cerca de 280% em Teresina. Para se ter uma ideia, entre janeiro e dezembro de 2021, 817 pessoas passaram por esse local, conhecido como Centro Pop.

No Brasil, as estimativas do número total de pessoas em situação de rua é de aproximadamente 221.869 pessoas, de acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em pesquisa publicada em março de 2020. Os dados mostram uma realidade nada animadora em relação ao progresso das políticas públicas destinadas à população em situação de rua no Brasil. A análise constatou que a maioria da população de rua (81,5%) está em municípios com mais de 100 mil habitantes, principalmente das regiões Sudeste (56,2%), Nordeste (17,2%) e Sul (15,1%).

O que pesquisadores na área chamam a atenção é sobre as políticas públicas voltadas para assistir a essas pessoas, seja por parte do estado ou do município – apesar da realização de alguns programas sociais, poucas políticas públicas são desenvolvidas para solucionar esse problema. Para eles, o desinteresse do estado influencia diretamente no comportamento da sociedade, haja vista que os moradores de rua são tratados, ora com compaixão, ora com repressão, preconceito, indiferença e violência. Há pouca ou quase nenhuma política que atue não somente em serviços de distribuição de alimentos e outros objetos, proporcionando dignidade para todos os habitantes. 

No estudo “População em situação de rua em tempos de pandemia: um levantamento de medidas municipais emergenciais”, o Ipea mapeou, por meio dos sites oficiais, as principais medidas de assistência adotadas pelas prefeituras, nas capitais do Nordeste e Sudeste. Entre as 13 capitais dessas regiões, as ações mais reportadas são: abrigamento (12), higiene (9) e alimentação (8). Menos frequentes são ações como centros emergenciais de serviço (2) e atividades específicas de orientação (6) para usuários de álcool e outras drogas, pessoas com transtornos mentais e iniciativas específicas para crianças e adolescentes em situação de rua.

Apesar das ações emergenciais que as prefeituras realizam, o estudo alerta para o aumento do contingente em situação de rua durante a pandemia – a desocupação crescente e mais intensa provocada pela crise econômica a curto e médio prazo. “Com o avanço da pandemia, essas pessoas enfrentam mais dificuldades de acesso à higiene, além de água e alimentação”, diz o sociólogo e pesquisador do Ipea, Marco Antônio Natalino, que assina o trabalho. “E, mesmo que quisessem deixar as ruas, não existiria abrigo para todos”.

Ele destaca que é urgente buscar alternativas para o aumento temporário da capacidade de acolhimento, mas também pensar em políticas públicas a longo prazo. “O trabalho deve ser realizado além de oferecer as necessidades básicas”, aponta. “A população em situação de rua não tem como motivo apenas a falta de dinheiro, às vezes o abandono familiar, casos de violência doméstica, entre outros fatores”, segue explicando. “O papel do estado é tornar essas pessoas cidadãs”.

(Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome)

No aniversário de 169 anos da capital, o prefeito de Teresina, Dr. Pessoa, inaugurou o Centro de Valorização para População em Situação de Rua. O centro tem o objetivo de ampliar a capacidade de atendimento de pessoas em situação de rua. Antes, a Casa do Caminho tinha 50 vagas para abrigar este público e, agora, dobrou a capacidade. A nova unidade também diz oferecer acolhimento, atendimentos de assistentes sociais, psicólogos e educadores sociais.

Quem são essas pessoas? 

A situação das pessoas que vivem nas ruas no Brasil está tão à margem das políticas públicas que até mesmo dados básicos são desconhecidos ou de difícil acesso. A análise mais recente sobre o perfil das pessoas em situação de rua é de 2008, apontada pela pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua – desenvolvida pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, foi essa a primeira e única pesquisa do tipo realizada no Brasil.

(Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome)

Maria Aperecida, 54 anos, já foi doméstica, atendente de bar e, após o falecimento do marido, entrando em profunda depressão, viu nas drogas um refúgio. Atualmente, ela encontra-se em situação de rua. Cida, como prefere ser chamada, faz parte de uma minoria de mulheres que vivem nas ruas. 

No Brasil, as mulheres representam apenas algo entre 15% e 20% dessa população – o percentual varia em cada cidade e não existem dados estaduais ou municipais. Mas, não é por ser minoria, que Cida não enfrenta desafios até maiores do que os homens na mesma situação. “Eu costumo dormir perto de postos de gasolina, pois tenho medo de fazerem algo comigo, ser morta, ou abusada”, revela.

A mulher é mais uma entre as que receiam virar estatística. Dados do Ministério da Saúde, divulgados em 2020, apontam que o Brasil contabilizou 17.386 casos de violência contra pessoas em situação de rua – quando o número é analisado com recorte de gênero, constata-se que 50,8% das agressões são com mulheres. O número inclui apenas ocorrências em que a motivação principal era o fato da pessoa estar em situação de rua.

Cida conta que já teve acesso ao Centro Pop – passou algumas noites e não gostou muito, resolvendo voltar a dormir pelas ruas. “Eu deito onde tiver como me proteger da chuva e do sol”, comenta. Procurada, a Semcasp explicou que o serviço de busca de pessoas em situação de rua na capital tem o papel de abordar essa população e tentar convencê-los a aderir o serviço – no entanto, a abordagem não pode ser impositiva: a pessoa precisa aceitar o serviço e ter a liberdade de sair quando quiser. 

Flávia Araújo, pesquisadora na área de assistência social, acredita que essa discrepância entre homens e mulheres nas notificações de violência ocorre por conta da reprodução da cultura machista também no ambiente das ruas. “Quando estagiei em uma casa de assistência em Teresina, muitas mulheres relataram que, ao perceber que elas recebiam algum dinheiro, os homens utilizavam da força física para obrigá-las a entregar a eles”, revela.   

Com base em sua vivência no centro de assistência, a pesquisadora analisa que o perfil da mulher moradora de rua no município diverge do perfil masculino. Em média, elas usam menos drogas ilícitas e dormem mais em albergues. Além disso, as mulheres são mais agredidas por outros moradores de rua, enquanto os homens costumam apontar membros das polícias como seus principais agressores. 

Propostas de soluções

As políticas públicas,  quanto à assistência social para a população em situação de rua, são de responsabilidade do governo federal, dos estados e dos municípios. As garantias constitucionais de dignidade da pessoa humana e do direito à moradia já colocariam essa responsabilidade ao estado, mas também foram feitas leis específicas para essa população.  

A principal delas foi a Política Nacional para População em Situação de Rua. Implementada em 2008, traz uma série de determinações, como a capacitação de profissionais do direito, a oferta de serviços de assistência social, a inclusão da população na intermediação de empregos, na criação de alternativas de moradia, entre muitas outras. 

Exemplos de políticas públicas possíveis são as da cidade de São Paulo, durante a gestão de Fernando Haddad. Em 2015, foi criado o Centro Público de Direitos Humanos e Economia Solidária, que visava fomentar a criação de cooperativas de pessoas em situação de rua.

Também foi criado o Programa Operação Trabalho PopRua, cujo objetivo era fornecer emprego à população de rua com acompanhamento individual de cada participante. Por quatro horas de atividades diárias, os moradores de rua recebiam uma bolsa de R $615,88, mensalmente. 

Algumas das atividades são: a criação de hortas e viveiros urbanos, oficinas sobre alimentação, cultura e direitos humanos, oficinas de fotografia, jardinagem, pintura de obras e eletricidade – algumas dessas atividades costumam ser “estágios” para cursos profissionalizantes, tais como jardinagem e eletricidade. 

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Categorias: Especial

1 comentário

George Wellington Rodrigues Silva · 14 de fevereiro de 2022 às 21:07

Excelente reportagem. Muito boas as informações.
Parabéns!👏👏👏

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