Alavancado pelos impactos econômicos da pandemia, o desemprego ganha camadas de dificuldades ainda maiores quando o assunto é inclusão e diversidade. Um levantamento da Pulses, plataforma de soluções de clima organizacional, mostra que menos de 10% dos colaboradores das empresas brasileiras fazem parte de algum dos grupos considerados minoritários, como negros, LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência (PcDs). Essa realidade pode ser tanto a causa quanto a consequência da falta de representatividade no mercado de trabalho.
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Sendo vivenciada em todo o país, a exclusão das minorias inspirou a criação do “Guia para uma Contratação Diversa”, desenvolvido pelo comitê de Diversidade e Inclusão do IAB Brasil. Elanne Vitório, recrutadora da Carreira RH, agência de recrutamento em Teresina, observa que no Piauí há um atraso em relação ao restante do país quanto à pauta da representatividade. “É como se o nosso mercado de trabalho ainda estivesse em 2017”, disse. “As empresas ainda têm ideais pouco inclusivos”.
Seu trabalho de recrutamento é focado no estado piauiense, mas também atende empresas de outros estados – como Maranhão, Ceará e São Paulo. Para Elanne, ainda é raro encontrar empresas que incluem de verdade.
Na contramão do cenário estadual, a própria empresa de recrutamento, aliás, é formada e dirigida por mulheres, como destaca Elanne. “Quando falamos que a agência possui uma equipe 100% feminina, que trabalhamos com um olhar mais humanizado, as empresas de fora ficam surpresas porque não é a realidade da maioria”, explica.
De acordo com a recrutadora, no Piauí e em outros estados onde a empresa atua, os grupos minoritários mais contratados costumam ser mulheres (incluindo mulheres negras), pessoas do grupo LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência (PcDs). Porém, Elanne considera o número ainda insuficiente para o patamar da equidade. Pessoas indígenas, por exemplo, ainda não são uma realidade no mercado de trabalho atendido pela agência.
Além de ser um direito dos trabalhadores, a inclusão no mercado de trabalho é benéfica para as empresas. É o que explica Gleyciane Viana, analista de Recrutamento e Seleção da Carreira RH. “Empresas que têm diversidade como um dos pilares de sua cultura estão à frente no mercado”, disse. Um dos benefícios práticos de uma cultura organizacional mais inclusiva, segundo ela, é o engajamento da equipe: “Colaboradores que se sentem incluídos são mais engajados, o que gera um ambiente saudável de mais conexão entre os funcionários e as demais pessoas”. Outro resultado positivo da inclusão no ambiente profissional é a diminuição dos conflitos. Gleyciane ressalta que “empresas que focam em diversidade e inclusão garantem ambientes mais respeitosos, com menos conflitos e disputas por espaço”.
Criatividade e inovação também são fatores trazidos pela inclusão, segundo a recrutadora, uma vez que empresas que contam com equipes mais diversas são capazes de produzir ideias mais autênticas, variadas e inovadoras, possibilitadas por diferentes contribuições trazidas pelos próprios funcionários.
Além desses benefícios, Gleyciane destaca que empresas mais inclusivas vivem um cenário de menos rotatividade de funcionários. “Essa é uma vantagem incontestável”, observa. “Os colaboradores conseguem permanecer no time, construindo suas carreiras, crescendo profissionalmente e gerando resultados positivos, o que diminui o número de demissões”, explica.
Vitória Luna Oliveira, mulher negra e trans, sente na pele os desafios da inclusão no mercado de trabalho. Atualmente, ela não possui um emprego formal – faz panfletagem e dá aulas de reforço para pagar as contas ao passo que cursa Jornalismo na Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Vitória ainda não procurou trabalho na área, mas o sabor da rejeição já é algo que experimentou. “Eu me sinto extremamente insegura com relação ao mercado de trabalho aqui”, desabafa. “Me deixa ansiosa não saber como eu vou ser vista e lida por causa da minha identidade de gênero”.
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Vitória retificou o nome de nascimento no começo do ano e percebeu que isso tornou o processo de busca por emprego menos difícil. À reportagem ela explicou que um dos fatores mais prejudiciais às pessoas trans na busca por um emprego é a não realização do processo de retificação – mesmo que se apresentem pelo nome social, é comum que contratantes insistam no tratamento pelo nome de registro, ou mesmo rejeitem diretamente candidatos ou candidatas trans.
Logo depois da retificação, Vitória conseguiu um trabalho remoto em uma agência de outro estado, no qual permaneceu por 6 meses. Ela afirma que é mais fácil, hoje, conseguir emprego fora do Piauí quando se é uma pessoa trans. “A contratação de pessoas trans ainda funciona como cotas: se um entra, isso é mais que suficiente”, pontua. “Mas ainda há muitas outras que precisam de espaço”, segue dizendo. “Não nos dão nem a oportunidade de tentar, nem mesmo numa entrevista”.
As enormes e frequentes dificuldades para se inserir no mercado de trabalho levam a população transexual e travesti a buscar outras saídas. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 90% das pessoas desse grupo tinham a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência em 2020.
Dentre suas experiências de rejeição no mercado profissional, Vitória relembra um episódio do último ano, enquanto ainda cursava Ciências Sociais. “Entrei nesse curso para ser professora e cheguei a me candidatar a uma vaga de estágio numa escola, junto com colegas do curso”, conta. “Até hoje a equipe da escola não me deu retorno, já a maioria das minhas colegas foram selecionadas”, completa. Sentiu-se discriminada. “As escolas não querem nenhuma pessoa trans, seja como professora, auxiliar, diretora e afins”, ressalta.
A representatividade no mercado profissional também deixa a desejar para a população indígena brasileira. Para Joselane Dias, indígena do povo Tabajara de Piripiri (norte do estado), a autodeclaração indígena desperta preconceito e constrangimentos frequentes. Graduada em História, aos 45 anos, Joselane nunca conseguiu um trabalho com carteira assinada e desabafa: “Procurar emprego sempre foi muito difícil para mim”.
De 2016 a 2018, ela chegou a dar aulas para uma turma de estudantes indígenas em uma escola estadual de Piripiri, por meio de um contrato com a Seduc (Secretaria de Estado da Educação). Essa foi a única experiência profissional fora da lavoura que ela relatou à reportagem – mesmo que tenha sido sem carteira de trabalho assinada. “Dar aula para essa turma foi resultado de muita luta”, lembra. “Acham que, por eu ser uma mulher indígena, não tenho potencial nem estudo. Vêem os indígenas como preguiçosos”, conta.
Na busca por trabalho, durante a faculdade e em em diversas situações e lugares, a indígena compartilha que percebia o preconceito e discriminação até mesmo por olhares, seguidos de um afastamento. A grande maioria dos indígenas que ela conhece e vivem no Piauí também está, atualmente, sem emprego formal.
Uma das soluções de combate ao desemprego entre a população indígena, para Joselane, é o investimento do governo nas próprias comunidades indígenas, principalmente no que diz respeito à agricultura de subsistência, principal atividade e fonte de sustento das comunidades. “Como nosso trabalho é para o próprio sustento, percebo que o governo não se interessa em nos ajudar”, destaca.
Outros grupos minoritários, como as mulheres, pessoas com deficiência e a população negra também assumem esforços hercúleos para conseguir um trabalho. Em sua atuação de recrutamento para empresas, Elanne costuma olhar com atenção para mulheres, principalmente mães ou mães solo. Em um dos processos seletivos mais recentes, ela recrutou uma mulher para participar de uma seleção cuja vaga costuma ser majoritariamente ocupada por homens. “Na última etapa, a candidata me perguntou se tinham homens concorrendo e se ela era a única mulher, porque se fosse, ela já sabia que seria descartada”, lembrou à reportagem.
Mesmo com os desafios, os indicadores da Carreira RH apontam que as mulheres entre 25 e 45 anos são o grupo mais contratado por meio dos recrutamentos da agência – boa parte delas são mães. Entretanto, o avanço ainda se revela a passos lentos: dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mostram que, em mais de 10 anos, a taxa de participação de mulheres no mercado de trabalho do Brasil cresceu 1,7%.
A população negra também enfrenta exclusão no mercado profissional, principalmente com a onda de desempregos provocada pela pandemia da Covid-19. Três milhões de pessoas negras, que estavam empregadas antes da pandemia, não conseguiram voltar a trabalhar. O dado é de um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e traz uma comparação entre o primeiro trimestre de 2020 e o segundo 2021.
Já a população não negra que permanecia desempregada mais de um ano após o início da pandemia totaliza 1 milhão de pessoas – um terço do número de pessoas pretas desempregadas. O estudo aponta que a população negra está mais exposta à precarização das relações de trabalho.
Para as pessoas com deficiência, ganhar espaço no mercado também é difícil, entretanto, ao contrário dos outros grupos, há amparo formal da Lei no que diz respeito à reserva de vagas. A medida para contratação desse grupo é prevista na Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência nº 8.213/91. Mesmo assim, a Lei possui baixa efetividade no Piauí. Segundo pesquisa desenvolvida por Leida Iade Araújo, no curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), a Lei só alcança 30% de eficácia. O estudo, intitulado “Mercado de Trabalho formal para Pessoas com Deficiência (PcD): Uma análise por setores, atividades econômicas e tipos no Piauí”, analisou o período de 2000 a 2019 no Piauí e utilizou dados do IBGE, apontando cerca de 180 mil pessoas nos parâmetros da Lei.
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