Resquício do passado que assombra a sociedade, o trabalho análogo à escravidão é uma realidade contemporânea com raízes fincadas na herança escravocrata do Brasil. A crescente desigualdade econômica também desempenha um papel significativo na persistência dessas condições de trabalho degradantes. Recentemente, os casos de trabalho análogo à escravidão observados no estado demonstram como esse panorama histórico continua a deixar marcas profundas em nossa sociedade.
Millor Fernandes escreveu que “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. A frase desafia a noção de um “país do futuro” ao confrontar a memória das violências históricas da colonização brasileira. A viabilidade do progresso encara a necessidade de um olhar para trás em busca de mudanças.
Jornadas extenuantes e cruéis, remunerações ínfimas, humilhação, descanso negado e um cenário opressor que sussurra a memória de um passado violento. Essas situações poderiam remeter a tempos distantes, contudo, a realidade confronta, revelando que tais circunstâncias não são apenas vestígios do passado, mas sim a vigência dos dias atuais. Em 2021, cerca de 28 milhões de pessoas ao redor do mundo sofreram essas condições de exploração. É o que aponta o Relatório de Estimativas Globais da Escravidão Moderna. Tendo em vista o combate dessa realidade, o Piauí atualizou o Plano de Combate ao Trabalho Escravo.
Segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o trabalho análogo à escravidão engloba situações em que alguém é submetido a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou condições degradantes, além de ter sua locomoção restringida devido a dívidas com o empregador. É importante ressaltar que a vigilância ostensiva no local de trabalho e a retenção de documentos ou objetos pessoais também configuram violações aos direitos fundamentais do trabalhador.
No Brasil, a escravidão contemporânea é uma realidade que se estende por todas as regiões. Dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas apontam que, de 1995 a 2022, foram resgatados 57.772 trabalhadores em condições análogas à escravidão.
Entre os casos que ganharam notoriedade em todo o Brasil, o resgate de mais de 270 trabalhadores rurais em condições de exploração de mão de obra semelhante à escravidão alertou para a contemporaneidade do problema. As vítimas, resgatadas em fevereiro deste ano na cidade de Bento Golnçalves (RS), sofriam violência física e psicológica, além de serem obrigadas a consumir alimentos estragados.
O Piauí também enfenta uma preocupante realidade no que diz respeito à exploração do trabalho. O estado ocupa a terceira posição no ranking de empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo, elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Dados do Radar SIT – Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, divulgados pela plataforma Smartlab, apontam que 1.485 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo no Piauí entre 1995 e 2022.
A subnotificação de casos de trabalho análogo à escravidão é um problema significativo, muito ocasionado pela falta de conhecimento por parte dos próprios trabalhadores. Muitos deles não estão familiarizados com os diferentes tipos de crimes e práticas irregulares realizadas por empresas, o que dificulta a identificação e denúncia dessas situações. Nos últimos meses, têm sido observados casos alarmantes de trabalho doméstico em condições semelhantes à escravidão que confirmam essa triste realidade. Um exemplo é o caso de Janaína dos Santos, uma jovem que foi mantida em cárcere privado e explorada no trabalho doméstico por mais de 10 anos. Outro caso, mais recente, é o da trabalhadora doméstica de 44 anos resgatada em Teresina na última sexta-feira (16), após 30 anos de trabalho em condições análogas à escravidão no bairro Mocambinho. Diante dessa realidade, é necessária a adoção de medidas efetivas para garantir a proteção dos trabalhadores vulneráveis.
Além do resgate
O Piauí atualizou o Plano de Combate ao Trabalho Escravo, elaborado pelo Fórum Estadual de Erradicação do Aliciamento de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo no estado. A Gerente de Combate ao Trabalho Escravo da Sasc, Graça Ferreira, explica que as medidas previstas pelo Plano reafirmam a luta contra a exploração dos trabalhadores. “O Plano representa o esforço conjunto do poder público e da sociedade civil organizada em reafirmar o compromisso e vontade política na erradicação ao trabalho escravo contemporâneo, que se apresenta como um problema de natureza social e econômica. As ações do plano envolvem o monitoramento de políticas públicas, a qualificação profissional dos trabalhadores resgatados e o fomento de atividades produtivas rurais e industriais do país, visando combater essa prática criminosa”, ressalta.
Entre as medidas vinculadas ao plano, está o apoio aos trabalhadores após o resgate. Graça destaca que a Sasc já iniciou o acompanhamento da mulher de 44 anos mantida em condição análoga à escravidão resgatada na última semana. “A trabalhadora resgatada foi encaminhada para um abrigo onde está recebendo apoio psicológico e social. Imediatamente, ela começa a receber 3 meses de seguro desemprego e a justiça do trabalho está providenciando os outros trâmites legais de direitos trabalhistas negados por todo este período que a mesma passou por esse regime de escravidão”, informa.
Além dessas ações, Graça conta sobre a importância de inserir o tema do trabalho escravo na escola como forma de incentivar a prevenção. “Estamos indo aos municípios que apresentam maior incidência de migração forçada ou que existe trabalho escravo dentro do nosso estado. Em nossas visitas são realizados seminários sobre o que caracteriza um trabalhador em regime análogo a escravidão e também colhemos as informações locais sobre a realidade de cada município e dali tiramaos os encaminhamentos para solucionar o problema. Também mobilizamos gestores municipais e a sociedade civil para a realização das oficinas no intuito de introduzir o tema trabalho escravo na escola formal na sua transversalidade”, explica.
Riscos da informalidade
Os casos recentes de trabalho análogo à escravidão observados em Teresina ocorreram especificamente sobre prestadoras de trabalho doméstico. A informalidade e a falta de registro em carteira assinada ainda são uma realidade para muitos que trabalham no setor, resultando na ausência de benefícios e na vulnerabilidade a abusos e exploração.
Segundo dados do IPEA, a informalidade atinge cerca de 76% dos profissionais domésticos, que não possuem carteira assinada. A presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticos(as) do Estado do Piauí, Maria Luiza Araújo, explica que a regularização do vínculo empregatício é uma forma de proteger os direitos da classe. “O fato de já estar na informalidade já deixa o trabalhador vulnerável. Por quê? Como ele vai provar o vínculo com aquela família, com aquela residência? Então, a partir do momento que a carteira do trabalhador não é registrada, que ele já está trabalhando informalmente, esse trabalhador, além de prejuízos por não ser registrado, terá dificuldades para provar o vínculo”, ressalta.
Essa situação precária evidencia a urgência de medidas que combatam a informalidade no setor e garantam a dignidade e a segurança dessas trabalhadoras. Maria Luiza destaca alguns prejuízos que o trabalho informal pode ocasionar. “Ainda há muitos trabalhadores na informalidade, sem os seus direitos sendo cumpridos, principalmente quando chega naquela parte da questão das horas extras, adicionais noturnos, salário família. Nós acreditamos que um dia ainda podemos dizer que os nossos direitos são garantidos, mas ainda não é o caso de dizer que somos contemplados com todos os direitos cumpridos do trabalhador doméstico”, desabafa.
Marcas históricas
No dia 6 de setembro de 1770, Esperança Garcia, uma jovem escravizada de 19 anos, escreveu uma carta ao presidente da província de São José do Piauí denunciando maus-tratos e reivindicando seus direitos. Nascida na fazenda Algodões, próxima a Oeiras, ela lutava por uma vida digna. Em sua carta, Esperança denunciou os abusos físicos cometidos contra ela e o próprio filho após ser forçada a trabalhar como cozinheira na casa de seu feitor. A pesquisadora em africanidades e história do Piauí, Débora Cardoso, lembra de Esperança Garcia ao comentar as raízes históricas do trabalho análogo à escravidão no Piauí. “Rememorando a personagem histórica Esperança Garcia, podemos fazer essa ligação entre escravidão e a exploração nesses espaços domésticos, pois em sua carta ela ressalta a violência desse ambiente, se tornando um dos motivos para a solicitação da mesma em sua petição”, comenta.
Desde a colonização portuguesa, o trabalho doméstico escravizado foi uma das principais formas de exploração da mão de obra. Débora explica que o trabalho análogo à escravidão tem muitos resquícios desse período. “Teremos assim, uma ligação fortíssima dessa raiz escravagista com a condição atual de muitos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras e piauienses, que ainda vivenciam relações de trabalho próximas, em ambientes privados, mas que trazem essa pecha escravagista marcada no cotidiano”, relata.
[Leia mais: Primeira advogada brasileira foi uma mulher negra, escravizada no Piauí]
É necessário reconhecer que a desigualdade de gênero e o racismo estrutural desempenham um papel central e alarmante na manutenção dessas condições de exploração e violação de direitos. De acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2019, o setor de serviços domésticos no Brasil envolveu mais de 6 milhões de pessoas, sendo que cerca de 92% delas eram mulheres. O perfil traçado também revela que a maioria dessas trabalhadoras são negras, possuem baixa escolaridade e provêm de famílias com baixa renda. O pesquisador e membro do Núcleo de Pesquisas sobre Africanidades e Afrodescendência – IFARADÁ, Solimar Oliveira Lima, explica como a atual exploração do trabalho nesse setor é marcada pelo passado colonial brasileiro. “O trabalho doméstico escravizado pautou para os anos pós-libertação a base de inserção de negras e negros no mercado de trabalho, sobretudo o urbano. Em verdade, o mundo do trabalho pós 1888 manteve a população negra nas mesmas condições de cativeiro, incluindo apenas as reduzidas remunerações e as precárias formas de ocupações”, informa.
Como denunciar
É de extrema importância encorajar e facilitar a denúncia de casos de trabalho análogo à escravidão. O Ministério Público do Trabalho do Piauí disponibiliza diversos canais para que as denúncias sejam feitas de maneira segura e confidencial. Por meio do site www.prt22.mpt.mp.br/ e do e-mail prt22.dapi@mpt.mp.br, é possível relatar as situações de exploração. Além disso, o WhatsApp (86) 99544-7488 e o telefone (86) 3214-7500 estão disponíveis para receber informações e testemunhos de segunda à sexta-feira, das 08h às 14 horas .
Para aqueles que preferem o contato presencial, a sede da Procuradoria do Trabalho do Piauí, localizada na Av. Miguel Rosa, 2862, Centro de Teresina, está aberta para receber denúncias pessoalmente.
O aplicativo Laudelina, desenvolvido pela Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos em parceria com a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), também é um canal para que as trabalhadoras domésticas denunciem casos de trabalho análogo à escravidão em todo o país. O aplicativo pode ser acessado tanto por dispositivos móveis quanto por computadores e fortalece a capacidade das trabalhadoras em denunciar abusos e violações às autoridades competentes. É por meio dessas denúncias corajosas que garantem uma sociedade mais justa, onde todos os trabalhadores sejam protegidos e respeitados em seus direitos fundamentais.
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