Era noite de terça-feira, 12, em fevereiro de 2019. No saguão do Resort Hotel Atlantic City Náutico, 35 alunos, moradores de assentamentos, comunidades quilombolas e acampamentos, aguardavam a hora de pegarem seus diplomas. Entre as pessoas, estava Ana Karolina Santos. Aos 25 anos, com trança no cabelo e vestido azul, ansiava pelo seu canudo.
Ali estava a turma de licenciatura em Pedagogia da Terra do Piauí que, em convênio com a Universidade Estadual, na modalidade Educação do Campo, pela primeira vez formava jovens da zona rural do estado, através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – o Pronera.
Ana é filha de João Batista e Francisca Maria, agricultores e moradores do Assentamento Lagoa do Prado, perímetro rural, a 24 km de Parnaíba. Com 73 famílias, o local surgiu com a reivindicação pelo direito à terra. Ainda pequena, ela acompanhava o pai durante as infinitas reuniões para garantir a permanência de todos no local.
Hoje, graduada, a jovem lembra da época da universidade, definindo-a como a mais feliz desde o início da sua vida de estudante. “Lá, todas as pessoas que estudavam comigo tinham a mesma realidade que eu”, comenta. “Ninguém ali se sentia estranho”. Agora, alguns alunos da turma já ocupam vagas em especializações e outros estão atuando em sala de aula.
A formação da Ana em Pedagogia da Terra é baseada nos modos e direcionamentos de vida no campo, que leva em suas práticas o cotidiano e as vivências neste espaço. Os diálogos e práticas costumam ser baseados em uma relação mais harmoniosa com o planeta. No geral, é a saída do contexto habitual de professores urbanos que carregam bagagem do ensino tradicional da cidade. Esses profissionais que, com frequência, ocupam vagas nos espaços rurais, tendem a ter práticas que mais contemplam visões urbanas, desconhecendo, muitas vezes, a realidade e as necessidades de quem vive no campo.
Aos 11 anos, Ana Karolina, que sempre estudou em escola na zona rural, passou a estudar na zona urbana de Parnaíba, a 12 km da sua comunidade. Ela acordava bem cedo, caminhava até o ponto de ônibus mais próximo para pegar a condução. De segunda a sexta, o transporte seguia rumo à escola em uma estrada de piçarra. Na instituição, os alunos faziam chacotas e piadas preconceituosas com quem chegava de transporte rural.
“Sempre tem uma razão para alguém desistir de estudar, ninguém desiste do nada”, expressa a pedagoga. “Era um mundo muito distante do nosso, principalmente pra gente que, dificilmente, ia à cidade”. Ana também relata que muitos dos seus colegas de turma da época não chegaram a concluir os estudos – muitos tiveram que sair para trabalhar.
Campo não é atraso
Muitas razões impactam na evasão escolar de alunos provenientes da zona rural – a falta de investimento em políticas públicas, boa infraestrutura, acesso ao transporte para chegar até as escolas e, por fim, metodologias e práticas que contemplam a realidade de pessoas que vivem no campo – fato crucial para desenvolver o link entre estudantes e o aprendizado.
O Pronera surgiu no final dos anos 1990 com o objetivo de resolver algumas dessas limitações. Em 2010, com as pressões dos movimentos sociais e as demandas de comunidades agrárias, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina um decreto que regulamentou políticas públicas voltadas para a educação no campo.
Anos depois, o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) unificou as funções com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), fato que colaborou para a fragilidade do bem-viver no campo. Em uma canetada, o presidente Michel Temer inviabilizou um dos principais meios de políticas para a agricultura familiar.
Ana já tinha um ano de formada quando a educação no campo sofre mais um ataque. Um novo decreto, dessa vez, do governo Bolsonaro, extinguiu a Coordenação-Geral de Educação no Campo e Cidadania, responsável pela gestão do Pronera. Era fevereiro de 2020 e o país vivia o feriado de carnaval quando a política de educação do campo dava seus últimos suspiros.
Até 2015, o programa tinha sido responsável pela formação de 192 mil camponeses, da alfabetização ao ensino superior – mas até esses dados se perderam no desmonte. Com a descontinuidade, o site do Pronera foi desativado e sua base de dados, desativada.
Lucineide Medeiros, pedagoga e professora na Universidade Estadual do Piauí, é pesquisadora na área da Educação do Campo. Ela foi coordenadora do curso em que Ana se formou. A docente descreve o atual contexto da Educação do Campo como um dos mais difíceis.
A realidade do campo ainda continua sendo marcada por altos índices de analfabetismo e exclusões no sistema educacional médio e superior. Com poucas escolas de nível médio nestas áreas e a quase inexistência de ambientes universitários, o campo ainda precisa ir até a cidade para estudar. “A Educação do Campo vem nesta esteira de afirmar o território rural como um local de conhecimento e possibilidades”, afirma.
“Municípios do interior do Piauí possuem uma ou duas escolas de nível médio e estas não estão situadas no meio rural”, afirma Lucineide, completando que, além desse fator, o fechamento de escolas, problemas de transportes e a falta de professores voltados para o meio rural ajudam a piorar os índices. “São questões como estas que mostram a realidade complexa que é a educação no campo”.
O distanciamento social, medida necessária para conter a disseminação do coronavírus, afetou também uma realidade que já vinha instável. Com a pandemia, as aulas de Lucineide foram paralisadas, e o ensino remoto – dependente de equipamentos tecnológicos e uma boa rede de internet – não chegou a ser uma opção. Tudo isso intensificou a exclusão das populações do meio rural dos processos educacionais.
Contrariando as visões “urbanocêtricas” de conhecimento, a formação em Educação do Campo cria caminhos para que pessoas, vivendo em ambientes distantes do contexto urbano, tenham acesso a educação e formação, a fim de trabalhar em seus respectivos locais de moradia e em seus espaços de convívio. É a comprovação da possibilidade real de construir um novo modo de ensino, pautado pelo saber plural.
O sinônimo do campo não é atraso. “As pessoas do campo podem ter educação de qualidade”, é o que pensa Gilcineide Pereira, aos 25 anos, graduanda em Educação do Campo. Moradora da comunidade Ezequiel, em Miguel Alves, a 12 km do contexto urbano, ela está prestes a concluir o curso.
“A Educação do Campo abre as portas do campo para o próprio campo”, define, ressaltando que todas as políticas de universalização da educação pública, até aqui, vinham assegurando o direito à educação aos trabalhadores do campo – impactando diretamente nas comunidades agrícolas e terras quilombolas.
“São as pessoas desse ambiente ampliando suas ideias sobre o local onde vivem”, diz Gil. No centro da discussão de seu trabalho final, por exemplo, está o coco babaçu e seus impactos sócio-culturais, econômicos e ambientais. A sua monografia, em finalização, também discute a possibilidade de inserção deste recurso no contexto escolar.
Saberes que vêm da terra
O professor universitário Elmo Lima, professor da Universidade Federal do Piauí e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Educação do Campo (Nupecampo), explica que esta é uma modalidade de ensino historicamente negligenciada. Ela surge da luta dos movimentos sociais e da sua rica discussão sobre diversidade de sujeitos das águas, das florestas, dos quilombos, assentamentos e comunidades indígenas.
As dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas que habitam o campo, constroem necessidades específicas. “Esse ensino contribui com uma melhor compreensão do campo como um espaço de possibilidade e construção de um outro projeto de vida, mais justo e solidário”, defende.
O pesquisador diz ainda que o diálogo entre os saberes tradicionais e científicos criam caminhos para a melhoria da qualidade de vida. “Ao apropriar-se de conhecimento, eles podem ampliar a visão do seu espaço e contexto e podem implementar ações, políticas e tecnologias sociais que melhorem sua qualidade de vida”, pontua.
A partir da Educação do Campo é possível construir um novo modo de ver e pensar os variados contextos brasileiros. “Se tu não estudar, tu vai pra roça!”, era a frase que Ana costumava ouvir de populares, quando criança, em tom comumente pejorativo. Na lógica da Pedagogia da Terra, a expressão ganha outra compreensão. “Estar na roça produzindo seu próprio alimento não é um retrocesso”, comenta. Fazer as pazes com as suas origens, respeitando e aprimorando os saberes de quem pisou por essas terras antes, é o mais singelo significado de luxo e sofisticação.
1 comentário
Karla Karine · 12 de julho de 2021 às 21:07
Que matéria necessária 👏🏾 “Educação do campo é direito e não esmola!” . #forabolsonaro