Vila Bom Jesus, zona Sul de Teresina, capital do Piauí. Uma casa simples de teto baixo e paredes verdes pintadas com cal. Na porta, uma criança negra brinca com um boneco sem braços. Na sala, duas cadeiras de espaguete com fios quebrados sustentam um par de senhoras: uma delas tem uma fratura no braço e está há vários meses aguardando uma cirurgia pelo SUS; a outra exibe um semblante cansado. Olhos de preocupação. Em pé, um rapaz guarda em vista o menino na porta, aflito. Ao fundo, a sombra de uma cozinha escura habitada por uma geladeira entreaberta, desligada, e alguns troncos que alimentam um fogão a lenha. Mas nenhum vestígio de comida, nem migalhas. O jantar improvisado acabou. Eles não sabem como vai ser a próxima refeição. Ou se vão ter. De longe, a visita, dona Francisca, observa a família. Inquieta, o pensamento busca possíveis soluções para amenizar o problema dos vizinhos, sabendo que esse é um retrato comum na sua comunidade. Visualmente nenhum deles aparenta a figura esquelética estereotipada, mas integram o grupo dos 34,3 % dos piauienses que passam fome, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Insegurança Alimentar, que aponta ainda que o prato vazio, apesar de não ter sabor, tem cor e gênero.
Dona Francisca Araújo é uma figura conhecida na zona Sul. Ela é mãe de um artista famoso na cidade, o cantor Preto Kedé, que já foi retratado em documentário e hoje canta as vozes da periferia pelos palcos. Mas não foi isso que lhe tornou popular na região. Seu sorriso fácil e olhar tenro escondem várias camadas de opressão. Mulher, negra, mãe, convive diariamente com conflitos de facções e a truculência da polícia em ações na periferia, que inclusive já chegou a invadir sua casa. Mas existe uma forma de violência silenciosa que também afeta sua comunidade e que a incomoda: a fome. E pelo menos nisso ela acredita que pode fazer algo, que ela considera pequeno, mas que é de grande importância para quem precisa. Periodicamente ela promove um sopão comunitário feito com alimentos que arrecada de amigos.
“Comecei fazendo festa das mães. Chamar aquelas mães, as famílias e fizemos aquele almoço. Uns levavam, outros almoçavam aqui mesmo. Gostei desse trabalho, me reuni com a comunidade para fazer algum trabalho social, né? Senti o gosto, mas nunca consegui registrar. Mesmo assim fazia, pedia, juntava, tirava mesmo do meu bolso, da minha família, meu filho também ajudava e a gente fazia aquela cooperação. Começamos a fazer o sopão aqui no fogãozinho de casa, começando a fazer o pão e foi dando certo”, explica Francisca.
A ação dela não resolve o problema, mas causa um conforto momentâneo nas famílias da sua comunidade que já são tão violentadas. E com a pandemia, a situação piorou ainda mais no Piauí, com muitas que se enquadram nessa situação, o que deixa o estado como o segundo com o maior percentual de pessoas em situação de insegurança alimentar no Nordeste, com 34,3% da população pesquisada sem ter o que comer, ficando negativamente abaixo apenas de Alagoas, com 36,7%, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
Em um contexto geral, os dados contribuem para reforçar um outro relatório produzido pela ONU, que incluiu o Brasil no Mapa da Fome da ONU, uma marca negativa que não era atingida desde a década de 1990. No documento, a queda do país se deu pela reação instável do país aos choques mundiais, como a pandemia, bem como a suspensão do Auxílio Emergencial em 2021, as eleições e o desmonte das políticas alimentares.
Já os dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil apontam que um dos principais fatores que contribuem para a situação é o desemprego e, agora, por conta da pandemia, o endividamento de algumas famílias.
E para quem não se lembra, o Brasil já foi referência internacional no combate à fome. Entre 2004 e 2013, políticas públicas de erradicação da pobreza e da miséria reduziram a fome para menos da metade do índice inicial: de 9,5% para 4,2% dos lares brasileiros. Hoje, infelizmente, o país é outro. Se a pesquisa anterior mostrava que, no final de 2020, a fome havia retornado aos patamares de 2004, em 2022 a realidade é ainda pior. De 9% dos domicílios com moradores passando fome, saltamos para 15,5% — 33,1 milhões de brasileiros/as. Isso quer dizer que, de um período para o outro, 14 milhões de pessoas passaram a conviver com a fome no dia a dia.
O que é a insegurança alimentar?
Os dados são preocupantes, mas talvez se distanciem de um estereótipo de pessoa que passa fome, aquela franzina e em situação de mendicância. A nutricionista Edna Maria Guedes Aguiar, diretora de Segurança Alimentar e nutricional/SASC, explica que a Insegurança Alimentar não é relacionada apenas com a falta de comida na mesa. “Eu posso te dizer que nem sempre a insegurança alimentar é a da comida na mesa. Ela é também sobre o tipo de comida que você tem na sua mesa. Se você está em vulnerabilidade social você não tem como comprar o alimento. Ou você compra esse alimento de um valor nutricional menor. E isso vai favorecer uma alimentação não saudável, comprometendo assim a saúde das da população”, explica.
Por conta disso, a nutricionista reforça que, devido essa qualidade nutricional, muitas pessoas podem estar com sobrepeso e se enquadrarem em uma situação de insegurança alimentar. “Não é só a falta da comida. É também quando a gente substitui alimentos que são ricos em nutrientes, ricos em vitaminas por outros mais baratos na tentativa de compensar o preço. Isso aponta para desnutrição e excesso de peso, levando a carências nutricionais porque a sua alimentação está comprometida e o seu poder aquisitivo não permite que você compre um alimento de qualidade ou suficiente. É onde surgem as doenças crônicas não transmissíveis: diabetes, hipertensão e obesidade. Isso acontece dentro das mesmas comunidades onde tem essa carência alimentar como também dentro dos mesmos domicílios”, destaca Edna.
“Não é só a falta da comida. É também quando a gente substitui alimentos que são ricos em nutrientes, ricos em vitaminas por outros mais baratos na tentativa de compensar o preço. Isso aponta para desnutrição e excesso de peso, levando a carências nutricionais”.
Edna explica ainda que a educação alimentar também influencia na escolha dos alimentos, diante de um contexto social, e é crucial para o agravamento dessa situação. “Dentro disso ainda temos esses alimentos que tem alto teor de gordura, alto teor de açúcar, alto teor de farinhas e de carboidratos apresentam um preço menor. Com isso a população vai sofrendo as consequências, que são indesejáveis. Isso traz um impacto para a saúde da população, que vê os prejuízos no desenvolvimento físico e mental”, alega a diretora.
Os dados da pesquisa apontam ainda que, além dos 34,3% de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, o Piauí ainda conta com 20% na categoria moderada e 25,8% na leve. Edna explica que a insegurança leve é quando existe uma incerteza se haverá alimento em casa para no dia seguinte ou para a semana seguinte. “É quando você nem imagina o que possa comer no dia de amanhã. E isso também é quando a qualidade dos alimentos passa a ser comprometida, porque o alimento que você adquirir vai ser dividido para toda a família, então a qualidade nutricional do alimento fica reduzida”, explica.
Já a insegurança alimentar moderada se adequa aos casos em que os pais precisam se desdobrar ou até ficar com fome para garantir a alimentação da família. “É aquele velho exemplo: a mãe deixa de comer uma refeição para dar para seus filhos. Ou seja, ela pulou uma refeição para que os seus filhos pudessem ter o alimento”, relata.
Já a a insegurança grave é quando há o comprometimento da qualidade, ou seja, o valor nutricional quando reduz a quantidade de alimento afetando todos os membros da família, inclusive crianças. “É aí que se diz que existe a experiência da fome. É o caso mais terrível que é a fome é instalada”, acrescenta Edna.
A fome tem cor
Outro ponto de destaque no Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar é que os dados apontam para um agravamento da situação quando se trata de cor de pele, com um aumento da fome na população negra de 70%. Isso porque, mesmo quando os rendimentos mensais ficam acima de um salário mínimo por pessoa, a insegurança alimentar é maior nos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara preta ou parda.
Os dados apontam que a segurança alimentar está presente em 53,2% dos domicílios onde a pessoa de referência se autodeclara branca, enquanto nos lares com responsáveis de raça/cor preta ou parda ela cai para 35%. Ou seja, 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com restrição de alimentos.
Nas residências comandadas por pessoas de cor/raça preta ou parda, a segurança alimentar teve uma redução expressiva entre 2020 e 2022, passando de 41,5% para 35%. O contrário aconteceu com a fome, que saltou de 10,4% para 18,1%.
A fome tem gênero
Além do recorte de cor, os dados ainda apontam para um agravamento em lares comandados por mulheres. A pesquisa indica que 6 de cada 10 famílias com as mães no comando convivem com a insegurança alimentar. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. Nos lares que têm homens como responsáveis, a fome passou de 7,0% para 11,9%. Isso ocorre, entre outros fatores, pela desigualdade salarial entre os gêneros.
Estes domicílios, mesmo com responsáveis com escolaridade acima de 8 anos, ainda apresentaram prevalências mais altas de insegurança alimentar moderada e grave, embora a diferença, em comparação a lares com responsável do sexo masculino, seja menor neste recorte de escolaridade. As mulheres chefiavam 14,3% dos domicílios em situação de insegurança alimentar moderada, enquanto nos domicílios chefiados pelos homens esse percentual foi de 9,2% (diferença de 5,1 pp). A insegurança alimentar grave das famílias, ou seja, a fome, mesmo diante da maior escolaridade, o percentual foi quase duas vezes maior em lares chefiados por mulheres (13,6%) versus 7,6% de Insegurança Alimentar grave em domicílios chefiados por homens.
Comparados os dados das pessoas responsáveis com menos escolaridade, os domicílios chefiados por mulheres apresentaram 1,5 vez maior prevalência de Insegurança Alimentar grave (25,8%) em relação aos chefiados por homens (16,6%). Resultados semelhantes foram encontrados para o recorte de localização urbana e rural dos domicílios.
Como amenizar o problema?
Dona Francisca não possui certificação acadêmica em nutrição – apesar das habilidades na cozinha- ou qualquer atestado formalizando suas capacidades de enxergar o problema dos outros. No entanto, ela abraça um sentimento de empatia e coletividade que lhe movem a servir sem pedir nada em troca, o que lhe rendeu um título informal de “liderança comunitária” do bairro, algo que não lhe acrescenta em nada a não ser um nome numa reportagem. Isso lhe proporciona uma visão política de uma solução que talvez não assimile perfeitamente, mas que pode ir além das obrigações de um Estado que não lhe bate à porta.
“Como você viu aquele caso daquela senhora que ainda hoje está com o braço dobrado. Foi uma queda que levou e ainda hoje está com o braço daquele jeito. Nunca conseguiu se consultar. Porque porque tudo demora, né? Mas a gente fica preocupado com essa família, com várias famílias. E aí o modo da gente ajudar, no meu caso, é assim: com cesta básica, com sopão, porque eu não tenho outro, eu não tenho outros meios. Não tenho como fazer o trabalho social que vem do estado, da prefeitura, eu não tenho aquele fixo. Aquele que diz assim: Dona Francisca, tal dia você pode pegar, você vai pegar tantas cestas [básicas], você vai fazer a sopa, é só buscar na Ceasa”, explica Francisca.
Para dona Francisca, uma possível forma de amenizar o problema seria o acesso mais fácil a itens da agricultura. E isso também é uma das fórmulas apontadas pela diretora da Sasc, Edna Maria Guedes, que traz algumas ponderações sobre o risco de distribuição de cestas básicas se tornar uma política assistencialista pobre. Para ela, o acesso aos alimentos, sobretudo nas áreas urbanas, depende do acesso à renda.
“É o que nós queremos aqui na SASC. Nossa meta é o apoio da agricultura familiar. Porque a agricultura familiar vai produzir a comida de verdade, vai gerar emprego, vai gerar renda no local. E a SASC empenha-se no apoio às famílias em segurança alimentar como um todo. Aquelas que estão em extrema pobreza têm acesso aos alimentos de forma gratuita através da cozinha solidária. Onde os produtos da agricultura familiar doados para instituições que preparam alimentos e distribuem para a população em insegurança alimentar, explica Edna.
Outra forma de amenizar o problema, segundo a nutricionista, é evitando o desperdício, principalmente com os de alto teor nutricional. “Numa CEASA ou supermercado, o alimento que seria desperdiçado porque tem um pequeno defeito, uma pequena manchinha, mas tem o valor nutricional intacto são feitas preparações como geleias, bolos, sopas. E esses alimentos eles serão doados. E famílias que estão no CadÚnicos serão beneficiadas com os cursos de cozinheiro, curso de de preparações em diversas áreas da gastronomia para que possa obter emprego e renda com aplicação dos conhecimentos”, explica.
Para a dona Francisca, que ainda corre atrás de alimentos com a própria comunidade e amigos para montar o seu sopão, qualquer ação que possa amenizar o problema é uma boa ação. No entanto, o mais importante é que aconteça. E rápido, pois como ela diz: “Quem tem fome tem pressa”.
0 comentário