segunda-feira, 6 de maio de 2024

Justiça para elas

Apesar dos pequenos passos, a representação feminina nos cargos importantes da justiça ainda anda longe do ideal

24 de abril de 2024

O Piauí ostenta com orgulho o fato de ser o estado com a primeira “advogada” do Brasil, uma mulher. E negra. Isso já foi motivos para pomposas homenagens, com busto, livros e espaços públicos rememorando Esperança Garcia. No entanto, o destaque da figura feminina nas quatro linhas da lei fica por aí. O estado ainda segue distante do modelo de representatividade da mulher em muita coisa, seja nos cargos mais importantes da gestão pública e até mesmo na área jurídica, com a participação tímida nos cargos de juízes e quase inexistente nas cadeiras de desembargadoras. Na última nomeação para esse cargo, baseada pelos critérios de antiguidade e merecimento, além de votação aberta que ocorreu no começo de abril, por mais que houvesse expectativa de mulheres no cargo, a vaga seguiu a tendência nacional mantendo-as de fora dos cargos mais importantes.

Agora, tema deve voltar a ser debatido com a sanção de lei que cria duas novas vagas de desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí (TJ-PI), assinada pelo governador Rafael Fonteles. Isso porque o pleno passa a ter 22 desembargadores, o que pode abrir vaga para mais mulheres. A lei foi publicada no Diário Oficial do Estado desta segunda-feira (22).

Além da questão da desigualdade de gênero, outro ponto que pode se levantar é a questão de subjetividade no julgamento de processos com o peso de uma estrutura social machista, principalmente nos casos de instância superior que servem de jurisprudência para outros.

O Brasil se mantém sustentado por uma estrutura machista no topo dos três poderes. Por mais que existam campanhas e projetos para um aumento da participação feminina no executivo e legislativo, elas ainda estão longe de alcançar uma participação igualitária em números. E no judiciário, a coisa é ainda mais complicada. Apesar do número de advogadas ser maior do que o de advogados, a quantidade de mulheres no topo dos cargos, como juízas, desembargadoras e ministras é bem menor, seguindo uma ordem decrescente a cada instância superior.

Para se ter uma ideia, segundo o site da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, atualmente o Brasil conta com 717.094 mil advogadas e 673.271 mil advogados, mas a representatividade delas é bem menor nos cargos superiores. Segundo o relatório “Justiça em Números”, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), referentes a 2022, as mulheres ocupam apenas 38% dos cargos entre 18 mil magistrados do país. Enquanto no primeiro grau elas chegam a 40%, na segunda instância o percentual fica em 25%. Além disso, os dados apontam que havia 13 tribunais no país sem desembargadoras e ministras mulheres. Já em 2023, os Tribunais de Justiça, contam apenas com 23% de presidentes, vices e corregedoras. Os números mais positivos para a participação feminina são nos tribunais do trabalho, com 41,25% de presidentes.

Na maior instância jurídica do país, o Supremo Tribunal Federal – STF, em 132 anos de história, foram 168 ministros homens e apenas 3 mulheres, sendo que a primeira magistrada a ocupar uma cadeira só chegou ao tribunal 109 anos após a instalação do Supremo.

No Piauí, segundo dados da OAB, a composição de advogados identificados como do sexo masculino é maior, mas com uma diferença muito pequena, com 8.290 mulheres e 9.181 homens. No entanto, quando se faz um comparativo de gênero entre juízes, a situação muda, pois o estado conta com a representação feminina de 26%, com 51 mulheres e 139 homens. Nos cargos de desembargador, em 118 anos do Tribunal de Justiça do Piauí, apenas duas mulheres ocuparam as cadeiras e recentemente apenas uma ocupa o cargo.

A advogada Noélia Sampaio é uma militante na causa e já escreveu livro tratando dos desafios de ser mulher. Para ela, ainda há um longo caminho a percorrer, mas principalmente a se conquistar. Segundo ela, nos levantamentos de 2018 a 2023, os números da participação feminina estão estagnados, sendo necessária a alteração de uma resolução para que os tribunais observem a participação igualitária de forma proporcional, usando a perspectiva interseccional, na medida do possível, respeitando a questão de gênero, raça e etnia. “A participação de mais mulheres no mundo jurídico é primordial, isso não só impacta nas pautas de gênero, como se promove literalmente o que se busca há séculos: a palpável igualdade. promover ações para reverter a sub-representação feminina não se trata de promoção especial ou uma excepcionalidade, mas a garantia da real democracia”, destaca.

Para Noélia, decisões de juízes podem ser influenciadas por um machismo subjetivo

Para a advogada, apesar do orgulho de ter uma mulher piauiense negra como uma pedra fundamental da advocacia, isso ficou apenas como uma coincidência histórica, tendo em vista que, apesar dos avanços nas questões de gênero em todo o mundo, que contribuíram para a quebra de paradigmas, ainda há uma resistência com relação à representatividade feminina nos tribunais. “Aliás, passou a ser obrigatória desde 03/2023, com determinação do CNJ, através do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que traz diretrizes e mecanismos para incentivar a participação de mulheres em cargos de liderança, assessoria e atuação institucional, bem como determina que em julgamentos, seja levado em consideração por magistrados e magistradas, as especifidades das pessoas envolvidas, a fim de evitar preconceitos e discriminação por gênero, raça e/ou outras características. Para que alcancemos o objetivo determinado pelo CNJ e cumprimento da agenda do ods-5 (ONU), é preciso que o tribunal do Piauí, por exemplo, se utilize de mecanismos como lista exclusiva somente de mulheres, para que seja dado um passo mais significativo”, reclama Noélia.

Além da dificuldade do acesso aos cargos mais importantes, ainda existe a questão da subjetividade do machismo enraizada nas sentenças que, em muitas vezes prejudica a mulher, seja em um julgamento relacionado a casos de paternidade à casos complexos de assédio moral ou sexual. “Devido ao machismo arraigado em nossa sociedade e, principalmente, com uma onda de retrocessos que estamos vivenciando, poderia não ser tão diferente uma decisão judicial com relação a assédio, seja de um juiz ou juíza. O assédio sempre esteve integrado na sociedade, disfarçado de “brincadeiras”, comportamentos e costumes. Porém, as mulheres, certamente, têm mais sensibilidade e empatia, para lidar com as questões de gênero. Portanto, uma análise de assédio na relação de trabalho, sob a visão de uma magistrada, com certeza terá outro enfoque. Por essa razão, o CNJ criou o protocolo para julgamento com Perspectiva de gênero, sendo de uso obrigatório pelos Tribunais, que com o passar do tempo, torcemos que com sua devida aplicabilidade, irá impactar fortemente, combatendo essa cultura do machismo estrutural existente na sociedade”, explica a advogada.

Agora, a expectativa é que, pelo menos num novo momento seja ampliada a presença feminina nos cargos de desembargadores, tendo em vista que foi sancionada Lei Complementar Estadual 266/2022, que dispõe sobre a organização judiciária, o que prevê o aumento do número de desembargadores de seu quadro de pessoal de 20 para 22.

De berço à retrocesso: de Esperança Garcia à esperança

A discussão traz à tona um ato considerado como uma das primeiras cartas de direito que se tem notícia no país, redigido por uma piauiense: Esperança Garcia considerada a primeira advogada do Brasil. O documento é datado de 6 de setembro de 1770 e era endereçado ao governador da capitania do Piauí. A carta era uma denúncia contra as situações de violência que ela, as companheiras e seus filhos sofriam na fazenda de Algodões, em Nazaré do Piauí.

A escrava, que aprendeu a ler e escrever português com os padres jesuítas catequizadores, transformou o documento em um símbolo de resistência e ousadia na luta por direitos em um Brasil escravocrata no século XVIII.

O documento só veio à tona em 1979, encontrado no Arquivo Público do Piauí e, em setembro de 2017, após solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, Esperança Garcia foi reconhecida como a primeira advogada piauiense.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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