sábado, 27 de abril de 2024

A justa forma de amor

A polêmica da votação de projeto conta o casamento de pessoas do mesmo sexo acendeu o alerta de pessoas LGBTQIA+ para mais uma onda de violências e o medo da perda de direitos

18 de outubro de 2023

Na canção que viera a se tornar quase um hino pela igualdade e respeito a todo tipo de afeto, Lulu Santos, reforça que se vai à luta e conhece a dor, considerando justa toda forma de amor. No mesmo embalo, hoje milhares de casais pelo país estão levantando a bandeira colorida do amor contra o risco de um projeto de Lei que quer proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, já permitido no país desde 2011, e agora que passou com facilidade por uma das comissões da Câmara dos Deputados em uma manobra da ala conservadora com discurso de defesa de uma família desenhada por uma bíblia. No entanto, mais do que uma família tradicional retratada em propagandas de margarina, muitos casais homoafetivos têm um interesse comum na inserção do Estado nas suas relações: garantia de direitos básicos historicamente assegurados a casais que estão dentro dos padrões heteronormativos, como colocar o parceiro ou parceira como dependente no plano de saúde, de adoção, herança, entre outros. No geral, só querem respeito às suas identidades, que requer um processo longo e que pode ser interrompido com discursos de ódio alimentados pelo atual projeto.

Júnior e Kamila, Igor e Shirliane, Leonor e Lívio são casais heterossexuais que formalizaram suas relações diante do Estado. São casados civilmente e gozam de direitos garantidos por lei. Constituem família e podem manifestar o amor livremente, sem olhares tortos de terceiros ou o risco de serem agredidos. O direito de estarem juntos ou até mesmo de serem o que são não é contestado. No entanto, isso não é o mesmo para Marcelo e Matheus, Nelson e Marques, Maria e Júlia, Ana e Carla. Apesar de desfrutarem do mesmo tipo de amor, de respeito, de afeto, de construção de uma trajetória plural, estão inseridos em um grupo que há décadas luta para ser reconhecido como cidadãos plenos de direito à custa de muito suor e sangue.

Atualmente o tema é discutido em todo o planeta, a mudança na legislação de países mais progressistas. No entanto, com o fortalecimento da extrema direita em todo o mundo e, consequentemente, os discursos conservadores, alguns países estão entrando em retrocesso quanto às suas leis, fomentando o ódio contra a população LGBTQIA+. Um dos últimos casos é o de Uganda, na África, cujo presidente Yoweri Kaguta Museveni, em meio a declarações homofóbicas, promulgou uma das leis mais severas para as relações homossexuais, que hoje no país podem ser punidas até mesmo com a pena de morte, ou penas de até 20 anos caso a pessoa seja flagrada por “promover” a homossexualidade.

De acordo com dados da Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA, em inglês), atualmente 17% dos países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) reconhecem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Isso corresponde a 34 países, a maioria deles na Europa Ocidental e nas Américas. Em outros, são permitidos acordos de união civil, como ocorria no Brasil até 2011, quando o Supremo Tribunal federal (STF) entendeu que a união estável entre pessoas do mesmo sexo é igual à heterossexual. Em 2013, foi aprovada uma resolução que obrigava os cartórios a celebrarem casamento civil homoafetivo.

Com a obrigatoriedade dos cartórios em reconhecer a união, muitos casais resolveram oficializar o amor e os números só cresceram. Em 2013, foram 3.700 celebrações, enquanto em 2022, os números já representavam 12.987, que corresponde a 0,02% das uniões, de acordo com a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais. Em 10 anos, o Brasil já havia contabilizado 76.430 uniões civis entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, depois de quatro anos de um governo conservador e a herança de uma bancada de extrema direita no congresso, o tema voltou ao debate tendo em vista que o direito não é regulamento pela legislação de forma específica.

Apesar da jurisprudência do STF, na Câmara dos Deputados tramitam dois projetos de lei sobre o assunto: o PL nº 580/07, que regulamenta a união homoafetiva; e o projeto nº 5167/09, que proíbe, no Código Civil, a união homoafetiva. Este último foi analisado e aprovado no último dia 10 de outubro pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família, apesar de parecer contrário da OAB, alegando que a proposta é inconstitucional e discriminatória, violando o direito fundamental à igualdade ao negar a pessoas do mesmo sexo o direito ao casamento civil.

Plenário lotado no dia de votação do projeto na comissão da Câmara. Foto Vinicius Loures / Agência Câmara de Notícias

A proposta ainda será analisada nas comissões de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial; e de Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ). Se for aprovada, seguirá para o Senado. Entretanto, existe uma expectativa positiva para o arquivamento do projeto proibicionista, tendo em vista que na primeira comissão, presidida pela deputada Luizianne Lins (PT-CE), foi definida a relatoria para o deputado Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), cujo perfil é progressista. Já a pauta da CCJ está a cargo do deputado Rui Falcão (PT-SP), presidente do colegiado, que segue a mesma linha.

A pauta do projeto no Congresso é considerada pela OAB como um ativismo legislativo, com desperdício de tempo e dinheiro público, tendo em vista que é inconstitucional. No entanto, mesmo com o risco de não passar, o debate reascendeu a polêmica em torno do tema e, principalmente o ódio contra pessoas LGBTQIA+, com discursos exaltados de deputados da ala conservadora contra os de militantes de esquerda em defesa do casamento homoafetivo.

O funcionário público Nelson Muniz vive um relacionamento de 20 anos com Marques Damasceno. Muito antes do reconhecimento do STF, eles já dividiam as lutas e compartilhavam o afeto sob o mesmo teto. Eles só resolveram casar em 2018, sob o clima de perseguição contra pessoas LGBTQIA+ reforçada pelo ex-presidente, mas com um significado muito forte.

Nelson e Marques durante a celebração do casamento no TJ. Foto: Arquivo pessoal

Para Nelson, não é só um papel assinado com garantia de direitos da vida civil, mas uma comprovação de aceitação social reconhecida. “Muda no aspecto mesmo da aceitação. Porque eu lembro que no dia do nosso casamento, no cartório, mais formal, com solenidade, aquela coisa de ‘você aceita’ e tal, quem fez isso aí na ocasião foi o juiz. E ele fez uma, vamos dizer assim, tipo uma preleção, em que falava o seguinte: que o reconhecimento da união de pessoa do mesmo sexo, antes de mais nada, é o reconhecimento da sociedade de que aquela união é legítima. Então não é somente a lei ou a justiça que nos reconhece, mas a nossa rede de amigos, as nossas famílias que nos reconhecem enquanto um casal, que envolve o afeto, que envolve o respeito. Respeito, que envolve os direitos”, destaca.

E é exatamente sobre o respeito envolver direitos que está o temor de Nelson com a volta do debate ao Congresso, com a bancada conservadora que tenta deslegitimar a união com argumentos religiosos de construção da família. “Nem cristão eu sou, pelo menos eu não me reconheço como. Mas eles também jogam para aquela base mais alinhada, mais conservadora, mais reacionária, que é a base. No ano que vem tem eleição e isso aí também tem uma questão política por trás disso. Eles sabem que essa pauta não vai passar em todas as instâncias, mas não duvidemos. A gente está vivendo um movimento do ultraconservadorismo no mundo todo, e aqui no Brasil é forte”, destaca, argumentando que a ideia é apenas o fortalecimento dos discursos contra a população LGBTQIA+ para ganhar apoio da população mais conservadora para os próximos pleitos.

Para Nelson, com a garantia do direito de união na justiça fica assegurado o direito à existência. “À existência social mesmo, sabe? Esse é o perigo de uma ação dessa. Porque em alguns países que a homossexualidade foi institucionalizada como crime, que é o caso, por exemplo, do país Uganda, na África, que é um país cristão, de maioria evangélica, e que lá conseguiria provar recentemente a pena de morte. Pra você ver como isso é perigoso… A intenção do governo anterior [no Brasil] era que, se fosse reeleito, [o ex-presidente] iria aparelhar o STF com pessoas terrivelmente evangélicas, que são contrárias a essa pauta”, ressalta.

Apesar de todo ódio, principalmente propagado nas redes sociais e reforçado por alguns representantes no congresso, ou o contrário, muita gente que vive uma relação heteronormativa enxerga que o amor é livre, com uma regra clara sobre todo esse embate, algo que se assemelha a uma frase que circulou nas redes sociais afirmando que “aceitar ou não o casamento gay deve ser uma escolha apenas de quem foi pedido em casamento. Então pare de se sentir o noivo (a)”.

Esse é o caso da doutora em biologia Shirliane Araújo, casada há 6 anos com Igor e mãe do pequeno Ian. Para ela, não existe achismo sobre essas questões. “Essa intromissão acontece em todos os contextos da sociedade, infelizmente. Por exemplo, pessoas que não têm deficiência traçando e definindo leis pra pessoas com deficiência; pessoas que não são negras e que não tem situação de vulnerabilidade opinando sobre cotas raciais e bolsas socias… a sociedade precisa entender que vivemos num regime democrático e que somos uma sociedade diversa, em todos os sentidos, desde a formação do nosso povo, que é altamente miscigenado. Uma pessoa hétero, como eu, não precisa “achar” ou opinar nada sobre o casamento homoafetivo, eu só preciso aceitar e respeitar”, destaca.

[…] a sociedade precisa entender que vivemos num regime democrático e que somos uma sociedade diversa, em todos os sentidos, desde a formação do nosso povo, que é altamente miscigenado. Uma pessoa hétero, como eu, não precisa “achar” ou opinar nada sobre o casamento homoafetivo, eu só preciso aceitar e respeitar.

Para a pesquisadora, é uma perda de tempo opinar ou discutir leis que afetam a vida privada e direitos já adquiridos. “Precisamos opinar sobre ações que comprometam a vida de um povo e não sobre ações que versam sobre direitos de um cidadão. Sou a favor do casamento homoafetivo e de todas as formas de amor e, enquanto for viva vou lutar para que essas manifestações sejam respeitadas como direitos dentro de uma sociedade. Temos problemas mais urgentes para nos preocupar; como o fato de mais da metade dos nossos jovens estarem fora do ensino superior; como a miséria que assola boa parte das regiões do país; como a saúde mental do nosso povo que é pouco assistida… isso sim é preocupante!”, finaliza.

Enquanto o projeto ainda está em pauta, os casamentos entre pessoas do mesmo sexo ainda podem ser oficializados no país. Para efetivar o casamento civil é necessário que os noivos, acompanhados de duas testemunhas –maiores de 18 anos e com seus documentos de identificação–, procurem um cartório de registro civil para dar entrada na papelada. Eles devem levar certidão de nascimento (se solteiros), de casamento com averbação do divórcio (para os divorciados), de casamento averbada ou de óbito do cônjuge (para os viúvos), além de documento de identidade e comprovante de residência.

E as festas felizes de casamento também continuam, com os casais, como dizia Lulu Santos, plugados na vida, vivendo de curar a ferida, sabendo que os parceiros conhecem o que é ser assim, só que dessa história ninguém sabe o fim. Apenas que consideram justa toda forma de amor.

sábado, 27 de abril de 2024

Diego Iglesias

Jornalista, mestre em comunicação pela Universidade Federal do Piauí.

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