sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O saber que vem do campo

Pronera formou 192 mil camponeses, da alfabetização ao ensino superior, até ser extinto em decreto do governo no ano passado

09 de julho de 2021

Era noite de terça-feira, 12, em fevereiro de 2019. No saguão do Resort Hotel Atlantic City Náutico, 35 alunos, moradores de assentamentos, comunidades quilombolas e acampamentos, aguardavam a hora de pegarem seus diplomas. Entre as pessoas, estava Ana Karolina Santos. Aos 25 anos, com trança no cabelo e vestido azul, ansiava pelo seu canudo.

Ali estava a turma de licenciatura em Pedagogia da Terra do Piauí que, em convênio com a Universidade Estadual, na modalidade Educação do Campo, pela primeira vez formava jovens da zona rural do estado, através do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – o Pronera.

Ana é filha de João Batista e Francisca Maria, agricultores e moradores do Assentamento Lagoa do Prado, perímetro rural, a 24 km de Parnaíba. Com 73 famílias, o local surgiu com a reivindicação pelo direito à terra. Ainda pequena, ela acompanhava o pai durante as infinitas reuniões para garantir a permanência de todos no local.

Hoje, graduada, a jovem lembra da época da universidade, definindo-a como a mais feliz desde o início da sua vida de estudante.  “Lá, todas as pessoas que estudavam comigo tinham a mesma realidade que eu”, comenta. “Ninguém ali se sentia estranho”. Agora, alguns alunos da turma já ocupam vagas em especializações e outros estão atuando em sala de aula.

A formação da Ana em Pedagogia da Terra é baseada nos modos e direcionamentos de vida no campo, que leva em suas práticas o cotidiano e as vivências neste espaço. Os diálogos e práticas costumam ser baseados em uma relação mais harmoniosa com o planeta. No geral, é a saída do contexto habitual de professores urbanos que carregam bagagem do ensino tradicional da cidade.  Esses profissionais que, com frequência, ocupam vagas nos espaços rurais, tendem a ter práticas que mais contemplam visões urbanas, desconhecendo, muitas vezes, a realidade e as necessidades de quem vive no campo.

Aos 11 anos, Ana Karolina, que sempre estudou em escola na zona rural, passou a estudar na zona urbana de Parnaíba, a 12 km da sua comunidade. Ela acordava bem cedo, caminhava até o ponto de ônibus mais próximo para pegar a condução. De segunda a sexta, o transporte seguia rumo à escola em uma estrada de piçarra. Na instituição, os alunos faziam chacotas e piadas preconceituosas com quem chegava de transporte rural.

“Sempre tem uma razão para alguém desistir de estudar, ninguém desiste do nada”, expressa a pedagoga. “Era um mundo muito distante do nosso, principalmente pra gente que, dificilmente, ia à cidade”. Ana também relata que muitos dos seus colegas de turma da época não chegaram a concluir os estudos – muitos tiveram que sair para trabalhar.

Campo não é atraso

Muitas razões impactam na evasão escolar de alunos provenientes da zona rural – a falta de investimento em políticas públicas, boa infraestrutura, acesso ao transporte para chegar até as escolas e, por fim, metodologias e práticas que contemplam a realidade de pessoas que vivem no campo – fato crucial para desenvolver o link entre estudantes e o aprendizado. 

O Pronera surgiu no final dos anos 1990 com o objetivo de resolver algumas dessas limitações. Em 2010, com as pressões dos movimentos sociais e as demandas de comunidades agrárias, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva assina um decreto que regulamentou políticas públicas voltadas para a educação no campo. 

Anos depois, o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) unificou as funções com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), fato que colaborou para a fragilidade do bem-viver no campo. Em uma canetada, o presidente Michel Temer inviabilizou um dos principais meios de políticas para a agricultura familiar. 

Ana já tinha um ano de formada quando a educação no campo sofre mais um ataque. Um novo decreto, dessa vez, do governo Bolsonaro, extinguiu a Coordenação-Geral de Educação no Campo e Cidadania, responsável pela gestão do Pronera. Era fevereiro de 2020 e o país vivia o feriado de carnaval quando a política de educação do campo dava seus últimos suspiros. 

Até 2015, o programa tinha sido responsável pela formação de 192 mil camponeses, da alfabetização ao ensino superior – mas até esses dados se perderam no desmonte. Com a descontinuidade, o site do Pronera foi desativado e sua base de dados, desativada. 

Lucineide Medeiros, pedagoga e professora na Universidade Estadual do Piauí, é pesquisadora na área da Educação do Campo. Ela foi coordenadora do curso em que Ana se formou. A docente descreve o atual contexto da Educação do Campo como um dos mais difíceis.

A realidade do campo ainda continua sendo marcada por altos índices de analfabetismo e  exclusões no sistema educacional médio e superior. Com poucas escolas de nível médio nestas áreas e a quase inexistência de ambientes universitários, o campo ainda precisa ir até a cidade para estudar. “A Educação do Campo vem nesta esteira de afirmar o território rural como um local de conhecimento e possibilidades”, afirma. 

“Municípios do interior do Piauí possuem uma ou duas escolas de nível médio e estas não estão situadas no meio rural”, afirma Lucineide, completando que, além desse fator, o fechamento de escolas, problemas de transportes e a falta de professores voltados para o meio rural ajudam a piorar os índices. “São questões como estas que mostram a realidade complexa que é a educação no campo”. 

O distanciamento social, medida necessária para conter a disseminação do coronavírus, afetou também uma realidade que já vinha instável. Com a pandemia, as aulas de Lucineide foram paralisadas, e o ensino remoto – dependente de equipamentos tecnológicos e uma boa rede de internet – não chegou a ser uma opção. Tudo isso intensificou a exclusão das populações do meio rural dos processos educacionais.

Contrariando as visões “urbanocêtricas” de conhecimento, a formação em  Educação do Campo cria caminhos para que pessoas, vivendo em ambientes distantes do contexto urbano, tenham acesso a educação e formação, a fim de trabalhar em seus respectivos locais de moradia e em seus espaços de convívio. É a comprovação da possibilidade real de construir um novo modo de ensino, pautado pelo saber plural. 

O sinônimo do campo não é atraso. “As pessoas do campo podem ter educação de qualidade”, é o que pensa Gilcineide Pereira, aos 25 anos, graduanda em Educação do Campo. Moradora da comunidade Ezequiel, em Miguel Alves, a 12 km do contexto urbano, ela está prestes a concluir o curso.

“A Educação do Campo abre as portas do campo para o próprio campo”, define, ressaltando que todas as políticas de universalização da educação pública, até aqui, vinham assegurando o direito à educação aos trabalhadores do campo – impactando diretamente nas comunidades agrícolas e terras quilombolas.

“São as pessoas desse ambiente ampliando suas ideias sobre o local onde vivem”, diz Gil. No centro da discussão de seu trabalho final, por exemplo, está o coco babaçu e seus impactos sócio-culturais, econômicos e ambientais. A sua monografia, em finalização, também discute a possibilidade de inserção deste recurso no contexto escolar. 

Saberes que vêm da terra

O professor universitário Elmo Lima, professor da Universidade Federal do Piauí e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Educação do Campo (Nupecampo), explica que esta é uma modalidade de ensino historicamente negligenciada. Ela surge da luta dos movimentos sociais e da sua rica discussão sobre diversidade de sujeitos das águas, das florestas, dos quilombos, assentamentos  e comunidades indígenas.

As dimensões sociais, culturais, políticas e econômicas que habitam o campo, constroem necessidades específicas. “Esse ensino contribui com uma melhor compreensão do campo como um espaço de possibilidade e construção de um outro projeto de vida, mais justo e solidário”, defende.

O pesquisador diz ainda que o diálogo entre os saberes tradicionais e científicos criam caminhos para a melhoria da qualidade de vida. “Ao apropriar-se de conhecimento, eles podem ampliar a visão do seu espaço e contexto e podem implementar ações, políticas e tecnologias sociais que melhorem sua qualidade de vida”, pontua.

A partir da Educação do Campo é possível construir um novo modo de ver e pensar os variados contextos brasileiros. “Se tu não estudar, tu vai pra roça!”, era a frase que Ana costumava ouvir de populares, quando criança, em tom comumente pejorativo. Na lógica da Pedagogia da Terra, a expressão ganha outra compreensão. “Estar na roça produzindo seu próprio alimento não é um retrocesso”, comenta. Fazer as pazes com as suas origens, respeitando e aprimorando os saberes de quem pisou por essas terras antes, é o mais singelo significado de luxo e sofisticação. 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024
Categorias: Reportagem

Joseph Oliveira

Graduando em jornalismo na Universidade Federal do Piauí.

1 comentário

Karla Karine · 12 de julho de 2021 às 21:07

Que matéria necessária 👏🏾 “Educação do campo é direito e não esmola!” . #forabolsonaro

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