Em junho do ano passado, oestadodopiaui.com entrava no ar com a reportagem especial “Paramos pra chorar”. Ansiosos pela vacina ou pela descoberta de uma implacável cura, ouvimos relatos em primeira pessoa de profissionais da saúde que atuavam na linha de frente no combate à pandemia. Aquela altura, o vírus cujo comportamento havia sido pouco desvendado já tinha matado mais de seis mil piauienses – e quase meio milhão de brasileiros.
Apesar de tristes, os relatos eram também sobre esperança. A Covid-19 nos deixou em suspenso e nos fez reinventar maneiras de viver seguindo novos protocolos, quase que no automático. Encaramos um luto coletivo – as perdas de vida e as vidas não vividas enquanto esperamos tudo passar.
No último mês, o Piauí alcançou a marca de 73,20% da população imunizada com as duas doses da vacina. O estado é o segundo no Brasil que mais aplicou a segunda dose e o primeiro do Nordeste em vacinação. Com avanço da imunização, podemos voltar a sonhar?
Nos últimos dias de 2021, pedimos para alguns profissionais fazerem um balanço de ano novo. Profissões impactadas pela crise econômica causada pela pandemia, outras sobrecarregadas pelas demandas emocionais. Os relatos foram colhidos pelas repórteres Juliana Andrade e Vitória Pilar e as artes são de Aline Santiago. O resultado você lê abaixo – projetos, aprendizados e planos de gente que, apesar de tudo, não perdeu a capacidade de sonhar.
“Eu saio de casa cinco horas da manhã, todos os dias, faça chuva ou faça sol. Ali, na praça do Esplanada, na Zona Sul, você me encontra até em feriado e final de semana. No Natal mesmo eu estava lá. Tô nessa profissão de mototaxista faz muitos anos, mas desenhar, eu desenho desde menino. Eu desenhava com meu primo – eu parei, mas ele continuou. Comecei a riscar no papel e a inventar história desde os 12 anos. E detalhe: eu sempre desenhei por prazer. Nunca vendi uma história, acredita? Meu serviço e meu sustento estão em cima da minha motinha. Mas aí, na pandemia, quando tava tudo muito forte (o confinamento obrigatório), eu deixei de trabalhar. Passei cinco meses só desenhando. Desenhava história, sem parar. Passava o dia todo riscando no papel. Em 2017, eu comecei a fazer uns heróis. Eles se chamavam “Filhos do tempo”, mas, nesse período, eu fazia só três folhas. Esse ano, eu consegui fazer mais de 200 páginas desses heróis. Sabe, eu sei que a pandemia foi uma coisa ruim, mas eu comecei a desenhar tanto dentro de casa que eu não quis mais parar. Voltei para a praça e, lá, debaixo da sombra, eu comecei a desenhar mais ainda. As pessoas deixaram de andar de moto táxi. O povo tem medo de botar o capacete na cabeça. Por causa disso, fico mais tempo esperando do que fazendo corridas. Os meninos que trabalham comigo me ajudam a inventar umas histórias. O povo que passa na calçada, eu boto no papel. Meu desenho é tipo assim… povão mesmo. Meus personagens não são esses de outros países. Os meus heróis, por exemplo, são bem aqui de Piracuruca. E de lá, eles decidem se querem ir para Marte, Saturno ou Teresina… Eu já desenhei o Troca-troca, já botei eles para destruir a Ponte Estaiada – mas eles reconstruíram depois. Lutam ali na Ponte Juscelino Kubistchek, como quem vai pro Jockey. Eles são daqui, nenhum vem de São Paulo, não. E aí neste ano, um rapaz que eu já conhecia me deu a ideia de publicar no Catarse. Eu tô esperançoso que vá vender. Nunca tive esse plano durante a minha vida toda e agora essa oportunidade apareceu. E olha, eu tenho muita história. Eu tenho história de 15 folhas, de 30 folhas, de 50 folhas. Rapaz, se eu conseguisse vender…era bom, viu? Deixa o ano virar. Eu quero ver o que a vida vai me mostrar”
Luis Celso Damasceno,
mototaxista e desenhista
“Quase dois anos após o início da pandemia, algumas situações ainda são comuns na rotina de um plantão: pacientes com síndrome gripal e a necessidade de esclarecer melhor os sintomas para seguimento adequado. Os números estão caindo drasticamente, seja casos confirmados, sejam pacientes internados. Após diversos obstáculos, a ciência vence dia após dia com o avanço da vacinação trazendo bons resultados – percebidos na prática por qualquer profissional de saúde. O cenário mudou bastante, e positivamente: desde o início da primeira onda, os plantões eram bastante assustadores, afinal de contas, estávamos lidando com uma doença totalmente desconhecida, sem tratamento específico e sem cura. Depois de alguns meses, as medidas sanitárias mostraram-se eficientes e conseguimos contornar a situação. Infelizmente, pouco tempo depois, tivemos uma nova explosão de casos – dessa vez, um número muito maior, com casos mais graves, os protocolos usados antes não tinham tanto efeito em alguns pacientes. Hoje, os plantões são bem mais leves! Apesar do aumento dos casos de síndrome gripal, poucos pacientes positivam de fato. E, os que testam positivo, evoluem com a forma leve da doença, em sua maioria. É muito gratificante poder acompanhar os pacientes e dizer após o término do isolamento: parabéns, você venceu a Covid-19. Devolver o paciente para o seu ambiente familiar, trabalho e amigos é uma experiência inexplicável. Muitos desafios ainda precisam ser contornados, principalmente com o surto de gripe disseminando-se através do mundo. O clima de um novo ano que se inicia permite-nos ter muita esperança e luz para o futuro. Que possamos seguir um 2022 mais leve, regado de saúde, amor, paz e empatia. Que possamos ser resilientes diante das situações de dificuldade e florescer no meio das rochas”
Flávio Luis dos Santos Sousa
médico no Hospital Prontomed Adulto e Hospital Mariano Castelo Branco
“Acordei bem cedo na véspera de Natal. Chamei meu marido que me ajuda nas entregas – já tinha bastante encomenda para deixar nas casas de algumas clientes. Depois fui à casa da minha mãe mostrar alguns produtos para a família comprar, presente do amigo-oculto que acontece todos anos mas, infelizmente, ano passado não aconteceu. Ao chegar na casa de minha mãe coloquei as roupas em cima da cama e tive uma boa conversa com minha cunhada sobre o alívio de ter vendido boa parte das confecções. O Natal do ano passado foi duro, pouquíssimas vendas e sem poder estar próximo de todos aqueles que amamos. Mas, me lembro bem que na virada do ano o que eu mais pedi foi para que em 2021 pudéssemos estar todos juntos e com saúde, independente da dificuldade financeira, porque isso nós corremos atrás. E não é que Deus me deu a felicidade das vendas crescerem e de poder reunir a família do jeito que gostamos e sempre fazemos todos os anos? Sei que a Covid ainda está aí, e que os cuidados devem ser realizados para proteger quem amamos, mas ver a família reunida dá uma pontinha de esperança de dias melhores. 2022 não vai ser fácil, eu sei, mas também sei que por muito pior já passamos. O começo de um novo ano traz consigo uma pontinha de renascimento, como se tudo fosse um grande e bonito recomeço. E eu creio que é. Acredito que este ano vou conseguir colocar minha loja física e tudo vai ser bem diferente”
Cassandra Maria
profissional autônoma – atua como sacoleira
“2021 foi um ano de extremo desafio. Me arrisco a dizer que foi ainda mais desorganizador que 2020. Isso porque ano passado fomos atravessados pelo medo e as mortes em massa, claro. Esse ano, além destes dois fatores, as pessoas começaram a sair mais de casa e a lidar de perto com as perdas e os sintomas de ansiedade e tristeza. Percebi, enquanto psicóloga, que o sofrimento existencial estava potencializado. Pessoas que antes não conheciam a psicoterapia se viram em tal busca, o que particularmente considero benéfico. Conheci muitos enlutados que viam no espaço do meu consultório um lugar para aprender a lidar com uma dor que antes era desconhecida ou mesmo pela forma da morte. As mortes repentinas, abruptas, sofridas – muitas vezes perdas múltiplas, em que mais de uma pessoa da mesma família falecia. Tudo o que aconteceu em 2020 foi refletido em 2021. Profissionalmente falando, o cansaço, o medo, a responsabilidade com o cuidado às pessoas em sofrimento foi, sem dúvidas, o meu maior desafio. Momentos em que a necessidade que um cliente tinha de ouvir uma palavra de conforto se convergia com a minha própria necessidade em acreditar que tudo o que estava acontecendo ia passar. Entretanto, o contraditório também fez parte do meu crescimento. Porque os meus medos me ajudaram no autocuidado. Não foi fácil. Vi pessoas, profissionais, pacientes, doentes, crianças sentirem medo, raiva, mas também vi esperança brotando. 2021 foi desafiador, nos tirou de zonas de conforto importantes ao nosso crescimento. Quando chegou a vacina, as esperanças se renovaram e foi-se possível perceber a incrível potência resiliente que somos. Eu vi nos atendimentos que a frase “ainda bem que eu me vacinei” foi uma constante. Acreditar que há uma razão pra continuar faz todo sentido, com isso certamente os desejos e planos começaram a ser reconstruídos, até mesmo para aqueles que perderam familiares, amigos e emprego. Percebi que há sim esperanças. Com tudo isso, as metas para o ano seguinte estão atravessadas pela ótica do autocuidado ainda maior e sobretudo o cuidado ao outro, uma vez que as pessoas estão se permitindo ir à terapia. Percebo que é uma espécie de corrente, onde um vai levando o outro sempre que pode. É importante, e talvez a situação do medo e das angústias vividas auxiliaram nessa escolha saudável. Vejo de perto o sofrimento das pessoas e percebo também, através do autocuidado, o desejo que elas têm de melhorar, o que me deixa claro que é possível sonhar, acreditar e realizar, mesmo tendo passado por essa tempestade. Sartre afirmou que o que importa não é o que aconteceu comigo, mas sim o que eu faço do que me aconteceu – e nesse ponto, a ideia de ajudar as pessoas a ressignificar tamanhos sofrimentos me impulsiona a continuar na profissão. Ajudar pessoas a voltarem a ver sentido em suas vidas”
Luana Estevão
psicóloga e tanatóloga
1 comentário
Adriana de carvalho · 3 de janeiro de 2022 às 20:31
Achei o conteúdo muito importante , e esclarecedor , nos conforta a certeza que dias melhores virão.