segunda-feira, 20 de maio de 2024

“Que doença é essa, meu deus, que agora a gente anda embrulhando os nossos?”

Exaustos, profissionais relatam suas rotinas após mais de um ano no enfrentamento à pandemia

08 de junho de 2021

Há pouco mais de um ano ouvíamos falar pela primeira vez em um vírus altamente transmissível e cujas consequências a ciência estava longe de saber. A pandemia do novo coronavírus, decretada oficialmente no dia 11 de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde, trouxe desafios e transformações para todas as populações ao redor do mundo. Novos desafios e sutilezas cotidianas passaram a fazer parte de uma nova rotina, preenchida pela insegurança, pela esperança e pelo medo. 

Medo, aliás, é o sentimento que acompanha os profissionais da saúde que, durante todo esse tempo, encaram dia após dia o tratamento de pacientes infectados. Entre rondas, plantões, assistências e terapias, essas pessoas tiveram que passar a conviver também com protocolos redobrados de higienização, monitoração de leitos, hospitais improvisados e o exercício da medicina em condições limite, além do exílio da família e a lida cotidiana com a frustração de perder pacientes: o luto agora é ordinário.

Em sua reportagem de estreia, O Estado do Piauí colheu relatos pessoais de médicas e médicos, enfermeiras, técnicas em enfermagem, fisioterapeutas, psicólogas e intensivistas que atuam na linha de frente do combate à Covid-19 no Piauí. Os depoimentos foram dados às repórteres Aldenora Cavalcante, Geysa Silva e Luana Sena entre abril e maio de 2021, através de chamadas telefônicas ou trocas de mensagens pelo celular. As fotos são de Lina Magalhães, que corajosamente arriscou-se por corredores de hospitais, trazendo um pouco do que o fotojornalismo é também capaz de contar. 

A Covid-19 já matou mais 474.614 pessoas em todo o Brasil. No Piauí, 6.116 pessoas morreram – 17 delas nas últimas 24 horas.

Amanda Murielle, enfermeira. (foto: Lina Magalhães)

“5h50. Levanto, faço meu café me preparando para mais 12 horas dentro de uma UTI Covid. Depois de mais de um ano trabalhando nesse ambiente, a tensão e o estresse pré-plantão não mudaram. Tomo banho, peço o Uber já preocupada em não me atrasar, pois o colega da noite com certeza terá que correr para o próximo plantão. No caminho, vou olhando no grupo de whatsapp da UTI notícias sobre a taxa de ocupação, atualizadas a cada duas horas. A fila da regulação está cheia e qualquer vaga é preciosa. Ao checar o celular, me deparo com dois óbitos em menos de uma hora, o que me faz pensar que o plantão vai ser daquele jeito. Muitos pensam que depois de um ano enfrentando a gente se acostuma, mas o que vejo são meus amigos comentando: “poxa perdemos dois hoje, fizemos de tudo”. “Nossa você viu aquele paciente jovem sem comorbidades em estado grave?” Nós sentimos, sentimos muito e sentimentos cada vez mais. Porque fomos formados para salvar, e não para ver tantas mortes como vemos hoje em dia. Antes, ao entrar em uma UTI, eu encontrava, no pior dos plantões, cinco pacientes de 10 intubados e em estado grave. Hoje, em uma UTI Covid você encontra oito pacientes intubados em estado gravíssimo e os outros dois já evoluindo para intubação – isso, no melhor dos cenários. Essa é uma realidade que dói. Recebo o plantão às 7h e as notícias não são legais: um paciente aguardando tubo, dois em que já realizaram tudo o que foi possível. Mas hoje um milagre aconteceu: um paciente com grave comprometimento conseguiu sair de alta para a Enfermaria Covid – uma vitória do paciente e da equipe. Depois de tantas frustrações, uma vitória tem valor diferente. No plantão esquecemos de beber água, esquecemos de comer. Só não podemos esquecer que a Covid não se esquece de ninguém. Uma das horas mais difíceis é relatar o boletim médico para as famílias. Psicóloga e médico falam da gravidade, usam termos técnicos, mas ao final quem os escuta só tem uma pergunta: “ele não tem risco de morrer não é, doutor?” A verdadeira resposta nem sempre é a que se deseja ouvir. 12h depois de entrar por aquela porta, passo o plantão para a colega da noite. A ida pra casa é sempre uma mistura de cansaço, tristeza e também gratidão: um dia em que se devolve um paciente à família é um dia feliz”.

Amanda Murielle,
enfermeira na UTI Covid do Hospital Getúlio Vargas.

 

“6h. Acordo, preparo o café para mim, meu esposo e meu filho. Faço tudo numa correria só, pois o dia será longo com plantão Covid-19 no Hospital Universitário (HU) e na UBS do Angelim, onde trabalho. Saio da zona Sul e levo cerca de 40 minutos no trânsito. Para o Angelim atravesso a cidade inteira. A primeira parte do meu dia é sempre a mais estressante. Contato direto com pacientes infectados, alguns em estado mais leve, outros mais graves – até intubados. Lembro que quando comecei a trabalhar no HU tive dias de plantões mais leves, os intensos eram mais raros. Hoje, não existe mais plantão leve. Há um ano sinto que estamos andando em círculos. A responsabilidade aumentou e o estresse é contínuo. Ao meu redor, todos os profissionais estão exaustos. Entre as coisas mais duras eu destaco o fato de trabalhar com medo. Medo de levar o vírus para casa, de transmitir à minha família. Temos poucas folgas e ainda precisamos nos isolar de todos. Como a correria é intensa, o tempo voa – sinto que o plantão está passando muito rápido. As pessoas não têm a menor noção do que acontece dentro de uma UTI Covid – se tivessem, não brincariam com a doença. Na maioria das vezes é ela que vence. Dar a notícia da morte ou desenganar algum paciente é sempre muito doloroso. Sempre penso nos meus e imagino: “e se fosse alguém da minha família?”. Trabalho em hospitais há muitos anos, mas essa está sendo a maior experiência da minha vida: passar por tudo isso mantendo o equilíbrio mental. Tenho tido crises de ansiedade e passei a tomar remédios. Sigo otimista e em oração para que tudo passe logo”.

Caroline Araújo,
técnica em enfermagem no Hospital Universitário e na UBS do bairro Angelim.

 

Lorenna Barradas, psicóloga (foto: Lina Magalhães / O Piauí)

 

“Minha ficha caiu quando vi o Brasil contando 300 mortos, bem no início. Eu morava com a minha mãe, de 54 anos, e minha tia, de 69. Naquele momento tive receio por elas, pois sabia que muito em breve o meu local de trabalho teria pessoas doentes de Covid. Tive que sair de casa para não contaminá-las – fiz uma mudança às pressas e há um ano estou morando sozinha. Essa é uma decisão que a gente deveria tomar quando quer dar um novo passo, construir a própria vida. O coronavírus decidiu por mim. O medo estava se instalando, as pessoas estavam visivelmente assustadas. Nem hesitei quando o estado lançou um processo seletivo para trabalhar no enfrentamento a Covid-19, embora nunca tivesse vivido a experiência de trabalhar em meio a uma pandemia. Quando entrei no setor isolado pela primeira vez, inteiramente paramentada – o avental de plástico fazendo barulho quando eu caminhava, o som da minha respiração dentro da máscara, o faceshield embaçando com minha respiração – o medo me consumiu. Meus braços não se mexiam, fiquei completamente em tensão. Com o tempo, o medo do vírus foi se diluindo diante da necessidade de amparar aquelas pessoas, enfrentando suas perdas e seus lutos. Com pacientes sedados e intubados, meu trabalho inicial é sempre com as famílias. Elas são só angústia por não poderem ver seus parentes, talvez a parte mais cruel dessa doença. Algumas vezes precisei mediar a comunicação entre família e paciente. Eu já trabalho com a tristeza, mas isso foi bem mais do que eu estava acostumada. Uma vez a esposa, em processo de separação, pediu para falar com o marido internado em estado bem grave, em uma ligação – em viva-voz, aproximei o celular do ouvido dele. Ela dizia: “Meu amor, se recupere, e lhe darei a chance que pediu”. Engoli o choro – o que não consegui fazer dias depois ao comunicar o falecimento dele. A vida não deu uma nova chance”.

Lorenna Barradas,
psicóloga no Hospital Getúlio Vargas.

 

“Hoje eu só chego em casa às sete da noite, depois de 24h de plantão – começou ontem às sete da manhã na semi-intensiva, na enfermaria Covid. De lá vim para a UTI Covid, um setor de alta complexidade. Teve uma parada cardíaca durante a madrugada, em uma paciente que já estava em estado muito grave. É  sempre bastante tenso: junta toda a equipe, médicos, fisioterapeutas e enfermeiros para reanimar. Também teve muita VNI (Ventilação Não-Invasiva), um procedimento que só o fisioterapeuta faz e que serve para livrar o paciente da intubação. Ninguém conseguiu dormir, e aí eu já saí do plantão cansado. No geral, meu trabalho é fazer um diagnóstico fisioterapêutico e tratar os pacientes de acordo com a sintomatologia que apresentam. Como atuo em dois setores, minha rotina é sempre bem pesada. UTI e enfermaria estão sempre cheios. A demanda por leitos nunca diminuiu –  a maternidade teve que colocar mais leitos para atender no pico da doença, em março e abril deste ano. De lá para cá estamos operando na capacidade máxima o tempo todo. Por mais que nossa equipe conte com excelentes profissionais, essa doença é perigosa e muito difícil de lidar. O que fazemos, como profissionais, é apenas tentar reduzir os sintomas e reduzir o sofrimento de certas situações. Temos perdido muitos pacientes. Mas a UTI é um lugar de vida. É importante escrever isso: muitas pessoas precisam ir para a UTI para poder ser salvas. Em abril do ano passado eu tive Covid, quando concluía a graduação. Um mês depois já comecei a trabalhar, e vivo pensando na reinfecção. Por mais que esteja paramentado com os EPI’s, nós, fisioterapeutas, trabalhamos diretamente expostos aos aerossóis, com VNI (ventilação mecânica não-invasiva), em contato direto com o paciente – tem que pegar, tocar, o contato é mais íntimo. Tem dias que saio do plantão e é só o tempo de tomar banho para assistir as aulas do cursinho –  faço pré-vestibular para medicina. Eu chego em casa morto”. 

Wennas Alves,
fisioterapeuta na Maternidade Evangelina Rosa.

 

Luana Chaib, médica (foto: Lina Magalhães / O Piauí)

“Desde 2015, quando voltei a Teresina terminando minhas residências, já iniciei no hospital da Unimed como médica prescritora. O mais difícil foi conciliar minha rotina de trabalho, sempre muito corrida, com minha vida pessoal e meus filhos. Para dar conta de tudo, sempre tive o hábito de dormir poucas horas por noite, no máximo seis. E tenho paixão por pacientes graves – mas nunca passou pela minha cabeça, um dia, atuar em uma pandemia! O hospital se tornou um lugar triste – essa doença não permite que as pessoas estejam próximas de seus familiares em um momento de pura angústia e desespero. Distância é sinal de proteção. O que não quer dizer que não signifique solidão. É estranho perceber como o tempo passa paradoxalmente diferente por ali: para mim é onde produzo, cuido e exerço o que sei fazer de melhor. Passa rápido. Para os pacientes, no entanto, cada minuto é uma eternidade. Não consigo me conformar com a perda de nenhum paciente. Um turbilhão de pensamentos e sentimentos toma conta de mim. Sofro relendo mensagens que trocava com pessoas que foram a óbito. Hoje a doença tem atingido uma população de jovens – e neles evolui com maior gravidade. Em casa não desligo: trabalho praticamente 24h em função dos pacientes. Desde o começo da pandemia estou a fundo nisso. Hoje me sinto muito mais cansada, não tive a chance de ter nenhum descanso – a pandemia não deu trégua. Mas me sinto mais esperançosa e com mais conhecimento sobre a doença. Vacinas serão nossas aliadas – nossa pequena grande dose de esperança”.

Luana Chaib,
médica no hospital Unimed – Primavera em Teresina.

 

“Acabo de completar um ano de formado – algumas turmas, como a minha, anteciparam a formação para atender a demanda por profissionais em Parnaíba, cidade onde vivo. Tenho 24 anos e sou da 1ª turma de medicina da Universidade Federal do Delta do Parnaíba, a UFDPar. Eu comecei transitando entre Maranhão e Piauí, em rotinas muito corridas. 60 horas de plantão não é incomum na dinâmica médica, principalmente se você está vivendo uma pandemia. Nunca me passou pela cabeça estrear na medicina nesse cenário. Eu não conseguia ver nenhum horário descoberto, sempre colocando o interesse coletivo acima dos meus próprios. Até perceber que eu estava querendo compensar o sistema. E aí decidi reduzir minha carga horária, porque você só está bem para os outros quando está bem para si. Já dei plantão em enfermarias de maior e menor complexidade e em UTI – mesmo não tendo formação nem capacitação para tal. O médico intensivista faz cinco anos de residência, que eu ainda não tenho, mas antes eu com alguma experiência do que não ter ninguém, né? Porque era essa a realidade que se vivia. Em uma UTI Covid você toma decisões difíceis o tempo inteiro: “E aí, nós vamos investir tudo ou nada nesse paciente?”. Passamos a escolher quem vai pelo menos ter a chance de lutar para viver. Para se ter uma ideia, em tempos normais, entrar em uma UTI e ter um paciente com sara grave (sigla para síndrome da angústia respiratória aguda) era um acontecimento – a gente tinha curiosidade de ver como era feito o procedimento porque não se sabia em quanto tempo poderíamos ter um caso assim de novo. E, agora, a surpresa é entrar em uma UTI e ver algum paciente que não esteja de bruços. Era grave e muito raro e se tornou muito comum com essa doença. Acompanhei um paciente por cinco dias, aquela angústia, com uma indicação de intubação muito difícil, no limite. Jovem, 41 anos. Fomos segurando um pouco mais. E então um dia você chega e ele não é mais um paciente, é um corpo. Comecei a chorar. Você vai ressignificando a morte a cada novo contato com ela. Mas é sempre alguém que importa pra alguém, né? Na correria do dia, não temos tempo para processar todos os sentimentos envolvidos. Você vai suprimindo. E, quando para pra sentir, vem tudo de uma vez”.

Vinícius Peixoto,
médico do Hospital Estadual Dirceu Arcoverde, em Parnaíba.

 

Silvana Nascimento, técnica em enfermagem (foto: Lina Magalhães / O Piauí)

“Ontem acompanhei dois pacientes graves. Um de 46, outro com 70 anos. O mais novo tinha menos tempo internado mas, com o comprometimento do pulmão, precisou ser intubado para colocar o pulmão em repouso na tentativa de melhorar a inflamação e não cansar a musculatura. Eu trato cada paciente como se fosse um parente meu – como eu gostaria de ser tratada caso ali estivesse. Gosto de conversar, dar apoio, guio exercícios de respiração como uma meditação: puxe o ar pelo nariz e solte pela boca lentamente, relaxando. É bom para a ansiedade porque é desesperador você tentar respirar e ficar procurando o ar. Manter o paciente higienizado, cheirosinho e arrumado no leito também é um capricho meu, para além da obrigação. Prezo por isso na assistência. O HGV recebe muitos pacientes do interior, gente da roça mesmo. E, apesar do hospital dar os produtos básicos, como o óleo de girassol e outros, muitas vezes tiro do próprio bolso para comprar um hidratantezinho. Antes da pandemia eu também trabalhava com acompanhamento domiciliar de uma pessoa idosa. Um dia desses, no hospital, encontrei um colega que trabalhava como motorista no mesmo condomínio em que eu trabalhei por cinco anos. Ele estava lá para se internar e eu disse a ele que tudo ia dar certo, que ele ia ficar bom. Três ou quatro plantões depois ele foi intubado e era eu que estava em sua assistência. Foi um procedimento difícil, ele quase não relaxou e tivemos dificuldade para sedá-lo. No sábado, a esposa foi lá levar alguns itens pessoais e insistiu para vê-lo, ainda que de longe. Avistou o marido por uma janela de vidro, se acabando de chorar. E, depois dessa despedida, ele morreu. Justamente no meu plantão – saber da morte de um amigo é muito diferente de ver ele morrendo na sua frente. E então fui fazer “o pacote” pensando: “Que doença é essa, meu deus, que agora a gente anda embrulhando os nossos?”. 

Silvana Nascimento,
técnica de enfermagem/enfermeira no Hospital Getúlio Vargas.

 

 

segunda-feira, 20 de maio de 2024
Categorias: Reportagem

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

2 comentários

R0naldo Alves · 8 de junho de 2021 às 17:47

Parabems pelo conteudo

    Giselda Lobato · 9 de junho de 2021 às 16:57

    Parabéns pela reportagem. Depoimentos muito emocionantes e reais, de quem vive, na prática, a luta entre vida e morte, diretamente no front dessa guerra contra a pandemia.
    Abraço fraterno.

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