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Aquilo que o povo conta

199 anos após a Batalha do Jenipapo, relatos de moradores da cidade dão novos olhares para os heróis da guerra

14 de março de 2022

Edição Luana Sena

A história da Batalha do Jenipapo, contada além dos livros de história, ganha novas nuances quando repassadas pela tradição oral dos moradores de Campo Maior. Na Rua Benjamin Constant, próximo à Praça Bona Prima, a parteira mais antiga da cidade, Iracema Santos – a Dona Ira, como é conhecida na região -, aos 97 anos, guarda na memória frágil pelo tempo poucos traços da história. Desde menina, ela ouve que o seu tataravô, João Cândido de Deus e Silva, participou da guerra. Na cidade, quem conhece detalhes da história afirma que ela é a descendente viva mais próxima de um combatente do Jenipapo. 

Na sua casa, uma recepção cuidadosa prepara Dona Ira para falar com a  reportagem de oestadodopiaui.com. Com quase 100 anos, a família evita que ela receba muitas visitas, preservando-a da Covid-19. Usando um vestido estampado, máscara facial e um semblante tímido, a conversa com a senhora é auxiliada pelo seu sobrinho, o professor Edilson da Costa Araújo. Na fagulha de memória, os que vieram antes de Iracema contam que o seu antepassado quase foi homenageado pela bravura. Mas se enganaram, e no dia da homenagem, se tratava de outra personalidade da cidade: um político que levava o mesmo nome do ex-combatente. 

A quase centenária Iracema é uma das últimas descendentes direta de combatentes da Batalha do Jenipapo. (Foto: Juliana Andrade / O Estado do Piauí)

A família, no entanto, preferiu guardar a história que vem sendo esquecida entre as gerações mais novas. Isso porque, a memória dos heróis mortos, por muito tempo foi uma lembrança triste e de luto familiar. “A água do rio ficou vermelha de sangue”, pronuncia Dona Ira, quase entre sussurros, com um olhar entristecido. 

Iracema Santos: “As águas do rio ficaram vermelhas de sangue”. (Foto: Juliana Andrade / O Estado do Piauí)

Assim como as memórias do tataravô de Dona Ira, outras histórias sobre a guerra pegaram fôlego no imaginário campomaiorense e se espalharam por todo o Piauí. Em União, um menino ouvia curioso as histórias que o pai contava sobre uma tal batalha combatida pelo povo com facões. Anos mais tarde, ele desembarcaria na cidade às margens do rio Jenipapo e acabaria se envolvendo mais ainda com as histórias sobre a guerra. Se inicialmente, para ganhar a vida, ele montou uma pequena mercearia, anos mais tarde, acabou virando coordenador local do Monumento do Jenipapo. Em toda Campo Maior, não há uma pessoa que não indique seu Miranda como um bom guia – para além de um funcionário do local, ele é o próprio guardião da história da batalha. 

Edilson Araújo: por muito tempo foi uma lembrança triste e de luto familiar. (Foto: Juliana Andrade / O Estado do Piauí)

Miranda conta que, ao longo dos anos, a sequência dos fatos tem um rumo diferente da contada por historiadores. Segundo ele, não demorou muito para as tropas de João José da Cunha Fidié abater os sertanejos, que sem estratégia militar e armas, foram rendidos facilmente. Mas acontece que, após a visível vitória, Fidié e seus homens foram comemorar. Por lá, perto do rio Jenipapo, os militares beberam até se esbaldar. Os poucos combatentes nordestinos aproveitaram o momento e roubaram as armas dos soldados portugueses, mas por não saberem atirar, jogaram tudo no rio. “Fidié ganhou a primeira, mas a gente ganhou a segunda”, conta Miranda. “Quando ele viu a gente ganhando com foice e machado, correu com medo e foi parar em Caxias”, destaca o administrador do Monumento como quem conta uma novidade.  

Outro fato novo trazido pelo guardião é sobre o número de mortos. De acordo com Miranda, os livros só contam os mortos no dia – aproximadamente 400 homens. Mas a verdade é que, dos quase dois mil homens que participaram do combate, muitos morreram só depois. Em uma época que a medicina se restringia a chá de casca de pau e muita reza, alguns homens acabaram morrendo anos depois em decorrência dos ferimentos sofridos na batalha. “As consequências dessa guerra tiraram mais de quatro mil vidas depois que tudo aconteceu”, ressalta. “Eles também são heróis”.

Antônio Miranda: o guardião do monumento. (Foto: Juliana Andrade / O Estado do Piauí)

Embora não apareçam em nenhum documento histórico, as curiosidades apontadas por Miranda – que podem se confundir com lendas ou causos da região – trazem um novo olhar sobre a própria história como a conhecemos. Sempre contada de homens e para homens, por exemplo, a participação das mulheres na guerra foi um fato que passou despercebido por muitos historiadores. Quase nada em livros de história e acadêmicos citam a participação do gênero feminino na batalha. Entretanto, em conversa com o historiador João Alves Filho, uma verdadeira enciclopédia da história campomaiorense, ele revela que as esposas e mães dos combatentes foram fundamentais para a ida dos homens ao combate. 

João Alves Filho, historiador e presidente da Academia Campomaiorense de Letras (Foto: Juliana Andrade / O Estado do Piauí)

Mais que motivadoras e apreensivas pela independência, as mulheres mobilizaram vendas de jóias e tudo que fosse rentável para garantir o sustento da casa na ausência dos homens. Também foram fundamentais para a aquisição de armas, ainda que precárias. Se não fosse por elas, destaca João Alves, não teriam tido facões e forças suficientes para a população se armar. Para o historiador, isso também foi um ato de coragem. Miranda, o guardião, também confirma essa versão da história e complementa que houve até mulher que se voluntariou para lutar com os homens. João não corrobora com esse que poderia ser um bom furo na história – mas, bem-humorado, conta que algumas mulheres, ao invés de fazer promessas para o marido voltar, rezaram para que o homem morresse por lá. “Afinal, nem tudo é perfeito”, brinca em meio a risadas, denunciando um possível exagero na história.

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Categorias: Reportagem

3 comentários

Claudete Maria Miranda Dias · 16 de março de 2022 às 07:37

Parabéns pela matéria ! O jornalismo investigativo vai além das simples narrativas ou reproduções !
Como historiadora q pesquisou a história do Piauí com mestrado e doutorado sobre a Balaiada e processo de independência do Brasil, prezo em saber de uma descendente de João Cândido!
Em meus dois livros : Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja e O outro lado da independência do Brasil, dedico especial atenção à batalha do Jenipapo, com enfoque na participação popular indo além do q a história conta nos livros !
Recomendo -os !

Anonio dos Santos · 16 de março de 2022 às 08:00

O povo piauiense deveria prestigiar mais sua história, poucas pessoas dão importância.

Alexis · 20 de março de 2022 às 22:24

E se não houverem heróis? Só gente tola brigando por um butim? E se nós continuamos prisioneiros e Fidié apenas um tolo português? Sei não, esse negócio de “Heróis do Jenipapo” é uma invenção posterior a uma luta por um butim

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