domingo, 24 de novembro de 2024

Coração de Lurdinha

Maria de Lourdes criou casa que acolhe mais de 200 crianças no bairro Satélite: “O segredo sempre foi acreditar nas pessoas”

06 de maio de 2022

Edição Luana Sena

Maria de Lourdes Oliveira, a Lurdinha, surge aos risos na cozinha da casa na Rua Urânio, zona Leste de Teresina. Vestida de branco dos pés à cabeça, enquanto fala, a mulher baixinha fica enorme. A todo momento surgem pessoas – no celular ou na porta – querendo falar com ela. O tom, para todos, é carinhoso e preocupado. O cadeado do portão não fica fechado, para facilitar o vai e vém constante na casa batizada de Caca (Centro de Atendimento à Criança e ao Adolescente), no bairro Satélite. É tanta coisa acontecendo ao redor de Lurdinha que quase não sobra tempo para se despedir de quem vai saindo. Mas, antes de uma das voluntárias ir embora, ela grita: “Minha filha, não esquece de levar suas torradas e o seu almoço”. Lurdinha é assim: gigante.

Lurdinha e a neta Luara: casa aberta para centenas de crianças (Foto: Vitória Pilar)

Sentada em uma cadeira do escritório improvisado, suas pernas ficam balaçam no ar enquanto fala. Ela convida para visitar o espaço. Um corredor estreito e comprido revelam a cozinha. Quase tudo no local foi doado ou obtido através de bingos e sorteios. Por ali, pela manhã, tarde e noite, mais de 200 crianças do bairro fazem refeições, brincam, dançam, praticam esporte e leitura. A área é grande e tem espaço para tudo: quadra, salas de música, leitura, oficinas, um palco improvisado e uma biblioteca repleta de livros. O lugar não possui dormitórios – pelo menos, não ainda. É um grande sonho de Lurdinha poder abrigar as crianças em tempo integral. Enquanto isso não acontece, a casa segue sem pausas para o silêncio e de portões abertos. As gargalhadas das crianças se misturam com as de Lurdinha. 

Hoje, tudo por lá é colorido,  mas nem sempre foi assim. Em 1995, enquanto o bairro Satélite era conhecido por ser dominado por facções locais, a igreja católica reunia moradores para tentar fazer trabalho voluntário na comunidade. Naquela época, gangues e violência tomavam conta da região. Os vizinhos não sentavam na calçada e sabiam, pouco a pouco, de crianças e adolescentes, cada vez mais, em situação de vulnerabilidade. 

Lurdinha trabalhava como técnica de enfermagem na Maternidade Evangelina Rosa – profissão que desempenhou por três décadas. Filhas biológicas, só teve duas, mulheres – hoje adultas, que também ajudam no projeto. Desde jovem, Lurdinha é devota de Santa Dulce. Na padroeira dos pobres, a mulher reconhecia a sua própria história – mas foi durante a assembleia comunitária que ela teria recebido o “chamado”. Dali em diante, assim como Dulce virou mãe dos que mais necessitam, Lourdinha se transformava na figura de mãe para mais de 1.000 crianças no bairro Satélite.  

Caca: assistência e brincadeira tiram crianças das ruas (Foto: Marcelo Cardoso)

O primeiro ano do Caca começou debaixo de uma árvore – o frondoso “pé de Amêndoa”. Eram 12 crianças, todos meninos. Eles passavam o dia na rua, sem supervisão dos adultos e dispersos à mercê da criminalidade. Lurdinha fazia de tudo para chamar atenção dos garotos e incentivá-los à leitura. Deu certo, e depois daquele primeiro ano, mais pais e crianças foram chegando para conhecer o que a técnica de enfermagem fazia para ganhar a atenção dos meninos e tirá-los das ruas. “O segredo, minha filha, sempre foi acreditar nas pessoas”. 

Aos 64 anos, Lurdinha não pensa em parar. Um dia, no futuro, ela acredita que outras pessoas poderão tomar de conta do legado do Caca. “Somos uma gota no oceano que move o mundo”, diz. Para cumprir esse trabalho, ela conta com doações de órgãos como o Mesa Brasil – uma Rede Nacional de Bancos de Alimentos que atua contra a fome e o desperdício – e uma série de voluntários que ajudam como podem: doando comida, realizando bazar, prestando serviços. Ela já tentou pedir ajuda para órgãos do estado e prefeitura, sem sucesso. Indiretamente, calcula que já tenha recebido ajuda de uma centena de pessoas. O projeto tem seguido assim, há mais de 30 anos, quando só era Lurdinha e sua fé descomunal subindo e descendo as ruas com nome de planetas em busca de crianças.

Hoje, tudo por lá é colorido – e quase tudo foi doado ou obtido através de bingos e sorteios (Foto: Vitória Pilar)

Entre os voluntários está Ilmar Silva que, há quase 10 anos, atua como professor de canto e auxiliar administrativo do Caca. Ele conheceu Lurdinha na igreja e conta que, generosamente, foi acolhido – não pelo projeto, mas pela doçura da mulher. “Eu via o esforço dela, queria poder ajudar de alguma forma, com a voz ou habilidades de informática”, conta o instrutor. “ Desde então, nunca fui embora”.

Quase ao meio-dia, Ilmar, outros voluntários e a maioria das crianças já tinham ido embora com as barrigas forradas de lanchinhos para retornar à tarde, quando haveria ensaio para as danças de festas juninas. Uma preocupação no radar de Lurdinha, naquele dia, era sobre como enfeitar as crianças para as quadrilhas. Conta que fará o possível para que, na noite de São João, a rua possa ser invadida pelos pequenos. “Deus vai me ajudar”, conta sem perder o sorriso.

Ilmar Silva: voliuntário há 10 anos como professor de canto e auxiliar administrativo do Caca (Foto: Vitória Pilar)

Por mais de uma vez, a entrevista precisou ser pausada para que Lurdinha pudesse atender alguém na rua ou no telefone. Fomos até a casa ao lado, onde mora um senhor chamado Gregório Silva e o neto, Tiago, de nove anos. O senhor trabalha consertando e montando móveis, mas ultimamente os negócios não andam muito bem. A família passa por dificuldades. Lurdinha até conseguiu várias carteiras escolares para Gregório consertar, mas não teria como bancar o serviço. Resolveu então doá-las para a família, para que pudessem vender e apurar alguns trocados. Lurdinha sabe que precisa de mais assentos para acomodar as crianças, mas naquele momento, a família em situação de vulnerabilidade precisava mais.

Da porta da casa, Tiago, o menino, olhava encantado o gesto da mulher, agradecido, meio tímido, sem muito dizer. Quem passava na rua, parava para falar com Lurdinha. Ela, prontamente, avisava da quadrilha como uma grande festa que o Caca realizaria após quase dois anos de pandemia e restrição de aglomerações. Parecia incomum a forma com que ela falava com tantas pessoas ao mesmo tempo, mas, mesmo  assim, não tirava os olhos de Tiago, que lhe retribuía a atenção. Antes de ir embora, fez questão de ir pedir para o menino não faltar aos encontros de crianças. Voltou para casa sorrindo, sem parar, e cantando. Lurdinha é assim: gigante. 

domingo, 24 de novembro de 2024
Categorias: Reportagem

1 comentário

Maria Eduarda · 6 de maio de 2022 às 20:01

Que matéria boa!! O trabalho da Lurdinha é incrível, atitude maravilhosa.

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