quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Afroempreender é ancestral

Negócios criados por mulheres negras fortalecem o mercado dentro da própria comunidade

03 de setembro de 2021

No fim do ensino médio, Lara Danuta da Silva, 22 anos, e a amiga Andréia Bacelar, 21, procuravam uma forma de terem a própria renda. As duas afroempreendedoras queriam unir a necessidade de um retorno financeiro, com alguma coisa que já sabiam fazer. A ideia também deveria carregar um simbolismo importante: tinha que ser algo que as duas se identificassem. Juntas, criaram uma loja especializada na venda de material voltado à produção de tranças e penteados para cabelos crespos e cacheados.

“Eu já utilizava tranças  desde a infância e também via essa falta de espaços em Teresina que trabalhassem com isso, porque aqui não era algo tão comum”, comenta Lara. “E a Andréia já tinha proximidade com a questão do comércio pelo fato da mãe dela ser comerciante”, acrescenta.

O nome também não vem por  acaso: Dandara Fibras. Ele faz alusão à Dandara dos Palmares, uma importante guerreira que lutou pela libertação de negros e negras escravizados no período colonial brasileiro. “Nós queríamos alguma mulher negra que trouxesse representatividade”, conta Lara.

Lara Danuta da Silva e Andreia Bacelar inauguraram a loja física Dandara Fibras em 2020 (Foto: Arquivo Pessoal)

As tranças estão presentes na vida da Lara Danuta desde muito antes e não se limitam apenas a uma questão estética. O  contato com os penteados e toda a importância da prática para a população negra se entrelaçam na sua vida desde a infância. “Com oito anos, a minha mãe já trançava o meu cabelo e a medida que ia trançando, ia me contando um pouco da história das tranças, que é uma tradição passada de mãe para filha e que as tranças carregam um significado para nossa cultura”, lembra Lara, ao reforçar que a questão da estética negra e da construção da identidade racial sempre estiveram presentes na sua vida. É uma atividade que vem de seus ancestrais, passada de uma geração para outra. 

A loja começou de forma online, com vendas pelas redes sociais e, no final de 2020, inaugurou um ponto físico no bairro Dirceu, zona sudeste de Teresina. Além das fibras para cabelos, elas também vendem acessórios afro. Pela falta de espaços com a oferta desse tipo de produto, o trabalho das duas mulheres negras gera curiosidade e estranhamento para quem passa no Centro Comercial do bairro. Tanto por conta dos produtos, quanto pelo fato da loja ser administrada por pessoas tão jovens. Mas, ao mesmo tempo, tudo isso se converte em inspiração para outras mulheres negras. “É muito representativo porque quando eu vejo meninas e mulheres negras passando em frente a loja e se identificando, admirando, às vezes entram só para parabenizar, a gente vê o tamanho dessa representatividade”, diz Lara. “Nós estamos ali ocupando um lugar que também é nosso por direito e trazendo um pouco mais desses espaços para o nosso povo”, acrescenta.

Com cinco anos de existência, a loja hoje é a principal fonte de renda das duas amigas. O reconhecimento veio também com o Prêmio Pretas Empreendedoras de 2020/2021, realizado pela Central Única das Favelas (CUFA), do qual a Dandara Fibras foi uma das vencedoras. “O prêmio reforça que vale  a pena continuarmos a contar a nossa história, lembrando sempre da nossa ancestralidade, de onde viemos e pensando em um futuro com perspectivas melhores para a população negra, principalmente para as mulheres negras”, finaliza Lara.

 

Uma puxa a outra

O afroempreendedorismo, para além de gerar uma renda para quem tem o próprio negócio, cria uma rede de conexão entre pessoas negras. Uma iniciativa puxa a outra dentro do ciclo do mercado afro.

Negócios como o Dandara Fibras, que trabalha essencialmente com a venda de fibras, veem na oferta de outros serviços associados ao seu nicho, uma possibilidade de criar essas redes. Como não oferece o serviço de aplicação, a afroempreendedora criou uma rede de contatos de trancistas de Teresina para indicar as clientes. “Com o tempo as pessoas começaram a perguntar sobre cuidados com o cabelo natural e, então, passamos a procurar pessoas que trabalhassem com isso”, conta. Entrou aí mais uma rede de mulheres que trabalham com outro nicho. “Fizemos uma parceria com o espaço Filha da Maria Capilar e começamos a indicar outros como o Mesquita Afro”, comenta. E quando as clientes perguntam sobre roupas, Lara indica o Atelier Chica Baiana. “A gente começa a ter essa rede e não somente indicar, mas também consumir, o que vai gerando e fortalecendo uma renda entre nós mesmas”, finaliza.

A rede é uma estratégia de fortalecimento da comunidade negra. “Não faz sentido só a Dandara Fibras crescer. O intuito é que outras mulheres negras possam estar sendo protagonistas e que o afroempreendedorismo se torne cada vez mais comum”, comenta Lara. 

Para fortalecer a rede de afroempreendedoras e contribuir com a visibilidade de serviços e  produtos feitos por mulheres negras no Piauí, desde 2019 é realizada a Feira Preta na capital, que já está em sua segunda edição. A proposta surgiu a partir de uma ideia de apresentar trabalhos que representem a produção de pessoas negras em diferentes segmentos. “A feira que visa justamente o fortalecimento dos negócios dessas mulheres”, comenta a administradora Fran Abreu, integrante da comissão organizadora da Feira Preta Piauí. O evento também se converte em uma forma de fazer com que o dinheiro circule dentro da comunidade negra.

Além disso, o afroempreendedorismo não se limita apenas a prática de se empreender e abrir um negócio, mas está estritamente ligado a ancestralidade do povo negro. Desde muito antes, as mulheres negras criam tecnologias a fim de gerar renda para suas famílias, dentro de um contexto em que esse grupo é historicamente excluído da sociedade e do mercado formal.

A Feira Preta é realizada no Piauí desde 2019 e já está em sua segunda edição (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Mulheres negras empreendem por necessidade

Mulheres negras movimentam cerca de 700 bilhões de reais por ano no Brasil, segundo levantamento do Instituto Locomotiva. Mas essa economia gerada está relacionada a um fator específico: as mulheres negras empreendem por necessidade. Abrir um negócio, para a maioria delas, não é fruto de uma das escolhas que surgem no percurso do caminho profissional, mas é a única alternativa para conseguir sobreviver.

Algumas das causas apontadas pela pesquisa “Saúde financeira das mulheres negras em tempos de Covid-19” estão relacionadas ao fato de que essas mulheres não conseguem ser absorvidas pelo mercado e apresentam uma taxa de 50% de vulnerabilidade ao desemprego maior do que as mulheres não-negras, mesmo possuindo escolarização e habilidades adequadas para diversos cargos.

“A pessoa negra, o homem negro, principalmente a mulher negra, tem mais obstáculos de conseguir crédito nas instituições financeiras do que qualquer pessoa, imagine empreender”, comenta a administradora e afroempreendedora Fran Abreu. O estudo aponta que, ao considerar a discriminação racial tão forte no país, é possível constatar que as mulheres pretas, dentro do grupo racial negro, são ainda mais rechaçadas no mercado de trabalho.

Para Larissa Santos a Afro Tranças foi uma forma encontrada para sustentar a família (Foto: Arquivo Pessoal)

Para a trancista Larissa Santos, 25 anos, empreender foi uma forma encontrada para sustentar a família. “O meu pai tem um trabalho mas não está conseguindo manter a  casa como antes, a minha mãe é dona de casa e a minha irmã é estudante. Então, basicamente o grosso de pagar conta sou eu que faço”, conta. O que sabe hoje, foi descobrindo na prática. “Eu aprendi na marra e agora estou buscando formalizar a empresa e expandir cada vez mais”, conta Larissa. 

A Afro Tranças, empresa especializada na aplicação de tranças e cabelos em pessoas negras, surgiu informalmente, unindo a necessidade financeira com o reencontro com a prática de trançar o cabelo tão presente na infância da trancista e com o anseio em buscar identificação e liberdade para os cabelos. “Foi um encontro comigo mesma”, comenta. “Comecei a fazer tranças em mim e na minha irmã na época que entrei na universidade e as pessoas ficavam curiosas. Até que algumas começaram a se interessar pelo serviço”. 

De lá para cá, a prática foi sendo aprimorada e o negócio se concretizou de fato em 2018. “Mas isso surgiu de forma natural, eu nunca pensei que um dia seria uma afroempreendedora e poderia gerar cursos e oportunidade de emprego”, conta Larissa. Para dar conta da quantidade de clientes, acabou absorvendo outras mulheres negras que também estavam precisando de emprego. Ao todo, já passaram pelo negócio pelo menos seis pessoas e atualmente conta com duas. 

Além da aplicação de tranças, a Afro Tranças também oferta cursos para outras mulheres negras (Foto: Arquivo Pessoal)

Além da aplicação de tranças, o negócio se expandiu e passou a ofertar cursos que ensinam as técnicas para que outras mulheres possam oferecer o serviço. Para Larissa, a sensação de passar o conhecimento para outras pessoas é gratificante e está ligada também a um legado da negritude. “Essa sempre foi minha vontade. Ver mais pessoas se identificando e buscando se aprimorar nessas técnicas ancestrais e que trazem muito significado para o nosso público é satisfatório. E não tem rivalidade”, conta.

O aprendizado vai sendo repassado de uma para outra, o que faz o ciclo girar sempre dentro da comunidade negra, estimulado, sobretudo, pelo afroempreendedorismo – uma das principais formas de reinserir pessoas negras no mercado de trabalho e uma maneira de reafirmar que qualquer lugar pode ser ocupado. “O afroempreendedorismo contribui também para reduzir as desigualdades”, afirma Larissa. “Mostra que podemos estar em empregos que, um dia, achamos que seria inalcançável”, finaliza.

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Categorias: Reportagem

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

1 comentário

Lara Danuta · 3 de setembro de 2021 às 15:37

Que matéria incrível! Parabéns Aldenora!

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