segunda-feira, 20 de maio de 2024

Ameaça aos guardiões

No Piauí, comunidades quilombolas e tradicionais têm sido escanteadas em benefício do agro e da mineração

28 de novembro de 2022

Edição Luana Sena

“Isso não é só terra, é um pedaço de gente, é um pedaço da gente”, é o que diz Nailde Marques, quando olha para a paisagem desenhada pela caatinga. Ela é moradora da comunidade quilombola Lagoa das Emas, localizada no Sul do Piauí. Da porta de casa, toda a vista a sua volta é tomada por morros e serras, banhadas por pequenos açudes e lagoas. Enquanto isso, nos quintais, no punhado de terra herdado dos seus familiares, ex-escravizados fugidos de engenhos no Maranhão e Piauí, correm os animais que garantem a subsistência da comunidade. 

A vida em Lagoa das Emas é semelhante à dos moradores de outras 118 comunidades, integrantes do Território Lagoas, reconhecido hoje como a maior formação quilombola do Nordeste. A região se espalha por quase 15 municípios ao sul do estado. Em 2014, a iminência de uma mineradora de ferro instalar-se por ali passou a assombrar a vida pacata das quase duas mil famílias que moram na região. O paraíso coletivo de Nailde nunca mais foi o mesmo: “É o sonho da gente indo embora”. 

Comunidade das Emas (Foto: Projeto Veredas)

Lagoas, em 2009, foi reconhecida pela Fundação Cultural Palmares como um dos maiores territórios quilombolas do país. Demorou seis anos para obter a titulação definitiva das suas terras. Na época do seu reconhecimento, a mineradora São Camilo, no entorno do Morro do Mel, começou a fazer pesquisas para a instalação da empresa na área. Nenhuma comunidade do território chegou a ser consultada pela empresa ou órgãos fiscalizadores. 

As investidas de empresas de mineração e carvoaria ameaçam a possibilidade de vida das comunidades. Se, por um lado, a chegada dessas empresas vende a ideia do desenvolvimento da região, por outro, impossibilita a atividade dos habitantes tradicionais do semiárido. Desde os primeiros rumores sobre a instalação desses empreendimentos, a derrubada de árvores nobres e queimadas em áreas ambientais – sob a responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) para regularização fundiária – tem acontecido de forma nefasta. 

Entre 2014 e 2016, uma parte da serra chamada de “Morro Alto” foi cortada e escavada para investigação de instalação da mineradora na região. Desde então, segundo Cláudio Teófilo, líder do território Lagoas, a devastação não parou – e nem parece ter pretensão de cessar.  Com a chegada da mineradora para extrair ferro, estima-se que é preciso ser feito um rasgo de 40 metros de profundidade no chão – processo feito com uso de dinamites e escavadeiras de alta potência. O impacto causado pelas explosões e máquinas faria com que os animais nativos da região fugissem para outros lugares, deixando a população tradicional desabastecida. 

A escavação de exploração também pode gerar contaminação do ar, por conta da poeira levantada pelas máquinas, afetando a saúde dos quilombolas. “Eles querem tirar a serra do lugar”, destaca à reportagem. “Querem começar a explorar a serra hoje para a gente não ver mais amanhã”, complementa Cláudio. “Tudo vai virar terra, poeira e cratera”. 

Território Lagoas, em São Raimundo Nonato (Foto: Projeto Veredas)


Comunidades como São Vítor e Capim do José Macário, localizadas na cidade de Dirceu Arcoverde, ficam a menos de 10 quilômetros do lugar demarcado para instalação da mineradora. “A gente sente que além de destruir a natureza, vai destruir a nossa forma de viver”, destaca Cláudio. “Os animais vão morrer, a gente vai engolir poeira, vamos todos viver uma destruição sem tamanho”, ressalta. 

Para reverter a situação, os representantes do Território Lagoas entraram na justiça para conter o avanço da mineradora no lugar. Uma audiência com a comunidade, a Semar (Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Piauí) e os empreendedores da mineradora estava prevista para o próximo dia 6 de dezembro. Não vai mais acontecer. À reportagem, o órgão explicou que não encontraram “espaço suficiente para comportar o público”, como também “questões de logísticas necessárias para garantir ampla participação pública ao evento”. A Semar ressaltou que o evento será remarcado, mas não definiu a nova data. 

Uma outra audiência, prevista ainda para o final do mês de novembro, também precisou ser adiada. A menos de 60 dias para o governo Jair Bolsonaro (PL) chegar ao fim, o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) autorizou o licenciamento de uma grande fazenda de soja e milho na região entre o Parque Nacional Serra da Capivara e a Serra das Confusões, no município de Brejo do Piauí. Ao todo, o espaço é proporcional a 13 mil campos de futebol e se concentra no entorno do Museu do Homem Americano – instituição que preserva um dos maiores parques de pinturas rupestres do mundo.

Área de 13 mil hectares onde os cultivos serão implantados, às margens da rodovia BR-324 (PI-140). (Foto: Reprodução)

De acordo com a apuração do Estadão, a chefia do instituto rejeitou o relatório técnico feito pelo próprio órgão. O plano foi apresentado pela empresa Apesa Agropastoril Piauiense e prevê a instalação de quase seis mil hectares para  “plantio irrigado de soja e milho”. “O empreendimento proposto conflita diretamente com os objetivos de conservação almejados por implicar em perda e degradação de habitat, com efeitos sobre os grandes felinos e suas presas, e pode agravar o isolamento das populações conhecidas”, afirmam, na conclusão do relatório ao qual a reportagem teve acesso. “Recomendamos que o Instituto opine pela incompatibilidade do empreendimento”, diz o desfecho. Mesmo assim, o ICMBio entregou a licença.

A Fundação Museu do Homem Americano, instituição sediada em São Raimundo Nonato, enviou um segundo parecer técnico ao Parque Nacional da Serra da Capivara, para respaldar seu posicionamento contrário ao projeto. A fundação afirma que se trata de empreendimento “considerado altamente impactante ao patrimônio natural e cultural, e contraditório no que diz respeito aos objetivos do Parque Nacional e do Corredor Ecológico”.

Leia mais: Fazenda de soja recebe autorização do ICMBio para instalação em corredor ecológico no Piauí

À época, Daniel Marçal, secretário estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semar), explicou à reportagem que a autorização feita pelo ICMBio é apenas um dos requisitos para obter a licença ambiental. Como a fazenda está localizada em um perímetro chamado “Zona de Amortecimento”, também conhecida como “Zona de Tampão”, somente a Semar pode autorizar a instalação no local. Até o momento, o órgão tem avaliado as alternativas do licenciamento estadual para viabilidade técnica e legal da instalação no corredor ecológico. Assim como a audiência da mineradora no território de Lagoas, o assunto ficou para 2023.

Animais como o tamanduá-mirim podem sofrer risco de extinção com chegada de instalações (Foto: Divulgação/Fundham)

Marçal destaca que essas e outras pendências devem ser resolvidas já na gestão de Rafael Fonteles (PT), governador eleito. No plano de governo, o petista garantiu que as comunidades tradicionais seriam consultadas e teriam oportunidades de desenvolvimento no estado. Quando Regina Sousa (PT), atual governadora, foi empossada em abril deste ano, o discurso era parecido. O estado avançou significativamente nos processos de titulação nos últimos meses. No Piauí, a estimativa é que existam 266 comunidades quilombolas. Destas, 84 já foram reconhecidas, enquanto 61 estão em processo de titulação junto ao Incra/PI.  

Enquanto isso, comunidades rurais situadas em Monte Alegre, também no Sul do Piauí, têm sido exploradas desde 2015. João Nardes, aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL), tem recebido carta branca para mineração nesta região. Ao longo da última década, ele conseguiu quatro autorizações para explorar diamantes em uma área de 1.260 hectares na região da cidade e em outra de 468 hectares, também próxima à região. O perímetro é equivalente a sete estádios Khalifa International, o complexo esportivo onde está acontecendo a Copa do Mundo de Futebol, no Catar.

A primeira autorização aconteceu em janeiro de 2015, quando a Agência Nacional de Mineração (ANM) recebeu permissão para pesquisar diamantes por três anos na mesma área. Assim que o prazo acabou, o empresário teve anuência para dar continuidade à exploração nas áreas em Monte Alegre, com nova autorização concedida pelo governo em 2019.

No entanto, entre 2017 e 2021, a NPC foi autuada pelo não pagamento da taxa Anual por Hectare (TAH) – uma taxa que incide sobre os requerimentos de pesquisa mineral e também por problemas na apresentação do relatório de pesquisa. O período das multas revela que, mesmo não cumprindo as exigências, a mineradora continuou recebendo alvarás. 

Enquanto a flexibilização acontece, os efeitos preocupam climatologistas, como Werton Costa. “Essa autorização para ampliar a área de mineração dentro de um ecossistema já frágil vai potencializar a degradação do ambiente”, alerta Werton, sobre as áreas de extrema desertificação ao Sul do Piauí. “É uma ação que preocupa a comunidade acadêmica, científica, mas especialmente a comunidade que habita a região”, complementa.

As comunidades tradicionais já lutam para tentar conter as consequências deixadas pelo agronegócio. No Piauí, uma das zonas de conflito está na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), que abrange cerca de 18 municípios na região Sul. Em 2020, esses conflitos tiveram como consequências as casas incendiadas dos indígenas Gamela que vivem na comunidade Barra do Correntim, em Bom Jesus (635km de Teresina). Na época, a liderança indígena James Rodrigues dos Santos Gamela informou que não era o primeiro ataque violento contra seu povo.

A ideia de desenvolvimento implantada pelo agro vai na contramão do estilo de vida cultivado pelos povos tradicionais. A comunidade ribeirinho-brejeira do Salto, no município de Bom Jesus, a 616 km da capital, Teresina, foi a primeira no estado a receber um Título Coletivo de Propriedade de Terra, outorgado pela Lei nº 7.294/19, que normatiza e reconhece terras de comunidades tradicionais formadas por quebradeiras de coco, pescadores e vaqueiros. Mesmo assim, a população que ali vive é alvo constante de ameaças e intimidações de grileiros e fazendeiros, de olho na região da fronteira agrícola do país.

Leia mais: Diamantes com sobrenome

Distante dali, ao Norte do estado, na comunidade Zundão dos Camilos, próxima a União, poucas mulheres seguem na atividade de quebrar coco babaçu. Uma delas é Layane Alves, de 30 anos, a mais jovem entre as quebradeiras – a maioria sexagenárias. Ao contrário da mãe, avó e bisavó, ela não quer transmitir o legado para a filha mais nova, Lara, de apenas três anos. Isso porque o negócio, nos últimos anos, tem sido pouco lucrativo. Além da desvalorização, o avanço do agronegócio ameaça os babaçuais. “Houve uma época em que a mãe-palmeira nos dava tudo”, relembra Layane. “Mas agora estão tirando a mãe-palmeira de nós”.

Layane aprendeu com a mãe, que aprendeu com a avó – e agora ambas testemunham o sumiço dos babaçuais (Foto: Vitória Pilar)

Um estudo do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) estimou que, nos últimos anos, tenham desaparecido mais de sete milhões de hectares de florestas na região da Amazônia e no cerrado. Ao todo, mais de 300 mil mulheres quebradeiras de coco, espalhadas pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Pará, em áreas de transição entre Amazônia, Cerrado e Caatinga, são impactadas com a devastação das florestas. Sozinhas, elas movimentam a economia de mais de 270 municípios nesses estados. 

Lara, filha de Layane, na comunidade Zundão dos Camilos (Foto: Vitória Pilar)

Neste mês, a governadora Regina Sousa (PT) encaminhou para a Assembleia Legislativa do Piauí (Alepi) um Projeto de Lei que reconhece como patrimônio cultural do Piauí as atividades tradicionais de coleta e quebra de coco babaçu, assim como os seus produtos e a forma tradicional de produção. Se a lei for aprovada, o Piauí será um entre os poucos estados que avançam em reconhecer a categoria das mulheres quebradeiras de coco como comunidade tradicional. 

Nos últimos anos, terrenos de cana de açúcar têm avançado nos territórios das florestas dos babaçuais. Grandes lotes de terra são comprados e utilizados para plantar cana de açúcar, e os moradores dessas comunidades veem a floresta sumir gradativamente. A diminuição dos babaçuais também implica no sumiço das quebradeiras. Millena da Mata, pesquisadora do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural (PPGMADER) da Universidade de Brasília (UnB), destaca que a relação ambiental dessas mulheres é intrínseca à preservação das matas. “Sem floresta, não há quebradeiras de coco”, afirmou. “Mas sem as quebradeiras é bem possível que, em um futuro bem próximo, não haja sequer uma palmeira”. 

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