sábado, 23 de novembro de 2024

Aprender com as diferenças

70% das escolas públicas não têm condições adequadas para uma educação inclusiva

14 de janeiro de 2022

“Eu conheci a poesia através da escola”, diz Jaelton Alcides. “Sinto falta dos professores e dos meus amigos”. Ele é um poeta de 28 anos e faz parte dos 45 milhões de pessoas classificadas pelo IBGE como “brasileiros que possuem algum impedimento de médio ou longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial”. Jaelton tem Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).  

O autismo costuma ser caracterizado por um déficit na comunicação social – ou seja, na socialização – e no comportamento (interesse restrito ou hiperfoco). “Desde os 14 anos eu passei a gostar de poesia, através de uma professora”, conta Jaelton. A escola foi fundamental no processo de inclusão e na autonomia dele. 

O acesso à educação e o direito à aprendizagem são garantias constitucionais universais, ou seja, previstas a todos os brasileiros como dever do Estado e da família. A diversidade de experiências, habilidades, contextos e capacidades entre estudantes é uma realidade que deve ser celebrada através de práticas educacionais inclusivas.

Esta semana, a mãe do pequeno Calebe, de seis anos, denunciou nas redes sociais uma escola particular de Teresina, alegando que a instituição de ensino recusou a matrícula do filho por conta do seu diagnóstico de autismo. De acordo com ela, a criança já havia realizado o processo seletivo e passado em todos os testes exigidos pela instituição. Desde o princípio, a mãe disse ter deixado clara a condição da criança. 

“Isso aconteceu depois de todos os processos”, relata Elisângela Oliveira. “Me chamaram na escola dizendo que não poderiam aceitar meu filho por ele ser autista”, segue contando ao oestadodopiaui.com. “Eu não sei como tive forças de levantar da cadeira e ir embora, fiquei devastada”, relembra. Sob orientação de advogados, ela move agora, na Justiça, uma ação de indenização por danos morais.

A educadora Nadja Oliveira, estudante de neuropsicopedagogia, afirma que as escolas piauienses não estão preparadas para o ensino inclusivo. Para ela, uma educação que se propõe universal deve ter o compromisso de incluir a diversidade, fugindo de modelos padronizados que não respeitam as realidades dos estudantes e de suas famílias, promovendo cenários de exclusão e fracasso escolar.

Incluir significa juntar, inserir, fazer parte de um certo grupo”, define. “A inclusão é uma oportunidade de convivência com a diversidade, para todos os alunos”, explica a educadora. “A maioria das escolas piauienses não tem formação sobre o assunto e acabam tendo práticas capacitistas”.

Capacitismo é o termo que caracteriza a desvalorização e desqualificação das pessoas com deficiência com base no preconceito em relação à sua capacidade corporal ou cognitiva. A educadora chama atenção para algumas práticas cotidianas que não só professores, mas a sociedade, em geral, acabam transmitindo.

“Partimos da ideia do ser incapaz. Você subestima a capacidade intelectual e física da pessoa porque ela tem uma deficiência”, explica, ressaltando que isso costuma acontecer em repetidas situações, como nas atividades diárias. “Você está na rua, encontra uma pessoa com deficiência executando uma tarefa normal e oferece ajuda”, exemplifica.

 

Educação inclusiva x educação especial

Quando se fala em educação inclusiva, é comum associarmos somente a técnicas para a aprendizagem de pessoas com deficiência – mas o fato é que, promover a aprendizagem de uma forma inclusiva é algo importante para todas as pessoas, sejam elas com ou sem deficiência – sobretudo crianças no início de seu processo de sociabilidade. 

A educação especial é uma abordagem de ensino direcionada para o desenvolvimento de habilidades específicas de indivíduos com algum tipo de dificuldade de aprendizagem ou deficiência, seja ela física, intelectual, auditiva ou visual. Já a educação inclusiva, por sua vez, é uma metodologia pedagógica que relaciona noções da educação regular com a educação especial. O objetivo é promover a integração entre todas as crianças do grupo, promovendo uma modalidade de ensino onde todos reconheçam e valorizem as diferenças – sem barreiras, sem preconceito.

Na contramão, em 2020, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto tornando pública a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), que incentiva a segregação de estudantes com deficiência. Em dezembro do mesmo ano, no entanto, a medida foi suspensa pelo STF em uma decisão individual do ministro Dias Toffoli, depois ratificada pelo plenário — após o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrar com uma ação alegando que a nova política é inconstitucional.

Até pouco tempo atrás, o sistema educacional brasileiro mantinha dois tipos de escola: a regular e a especial. Alguns alunos, mesmo com limitações brandas, eram direcionados para a educação especial e privados do contato diversificado com os estudantes regulares.

Leia Mais: Fala de Ministro sobre estudantes com deficiência é retrocesso, diz especialista

Com a educação inclusiva, todos os alunos são acolhidos na escola regular, que agora deve dispor de meios adequados e recursos diferenciados para oferecer apoio no processo de aprendizagem de todos os indivíduos. Essas mudanças no panorama educacional estão previstas na legislação. 

O Plano Nacional de Educação (PNE) é aprovado pela Lei nº 13.005/2014, que tem como meta a universalização da educação básica. Sendo assim, pessoas de 4 a 17 anos que apresentam algum tipo de deficiência, transtorno global do desenvolvimento ou altas habilidades têm direito à educação na rede regular de ensino e ao atendimento educacional especializado.

 

Desatando nós

De acordo com Nadja Oliveira, o trabalho em busca de uma educação inclusiva ainda é um grande desafio. “Temos um caminho longo pela frente, desatando nós de preconceitos e exclusão amarrados na sociedade desde sempre”, diz a educadora.

O desafio de ter um sistema educacional capaz de integrar os estudantes com deficiência não é exclusivo do Brasil. Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de 15% das crianças com deficiência no mundo não têm acesso à educação inclusiva de qualidade.

No Brasil, com base nos dados do Censo Escolar de 2019, mais de 70% das escolas públicas de ensino fundamental não têm dependências físicas nem formações de educadores adequadas para incluir pessoas com deficiência. Esses dados demonstram que, mesmo sendo um direito fundamental, a educação ainda está longe de ser universal e acessível para todos.

As principais ações que os especialistas comentam para melhorar a questão da educação inclusiva são a capacitação de professores e a implementação de infraestrutura mais acessível nas escolas. Outros pontos são a elaboração de diretrizes pedagógicas para direcionar os professores, que precisam de orientação.

A proposta do PNEE é investir em instituições públicas e entidades como Apaes, que quiserem adotar a política. Contudo, para os especialistas, o recurso precisa ir para as escolas regulares, pois muitas escolas públicas não têm estrutura para proporcionar a inclusão.

“Eu, como educadora, defendo a bandeira de mais políticas públicas para formações não só de professores, como também de zeladores, secretários, pais e todas as pessoas que fazem parte da instituição escolar”, diz Nadja, que além de professora é também mãe de uma criança com autismo. “Precisamos colocar isso em prática urgentemente nas escolas, pois esse não foi o único caso e nem vai ser o último”.

sábado, 23 de novembro de 2024
Categorias: Reportagem

2 comentários

MÁRCIA DO REGO OLIVEIRA DA COSTA · 14 de janeiro de 2022 às 20:09

FUI EDUCADORA POR 27 ANOS….E INCLUSÃO SEMPRE FOI UM GRANDE TABU.FICO FELIZ PQ MUDANÇAS COMO ESTAS ESTÃO ACONTCENDO.MAS É PRECISO FAZER VALER DE VERDADE.PARABENS PROF LAÍS NADJA PELA LUTA E PELOS ESCLARECIMENTOS.

Karen Ribeiro · 15 de janeiro de 2022 às 17:44

Muito bom, parabéns!

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