quinta-feira, 2 de maio de 2024

Autorização para devastar

Dificuldades na gestão do desmatamento legal ameaçam o Cerrado. Em 2023, metade da devastação foi legalizada; o Piauí será prioridade na força-tarefa nacional para conter a destruição do bioma

12 de abril de 2024

Sob o céu aberto, as fileiras de soja se alinham num mar verde que se estende até o horizonte distante. No entanto, por trás dessa paisagem aparentemente serena, também cresce a destruição. Esses campos monocromáticos hoje ocupam o lugar onde as matas do Cerrado cresciam em uma profusão de vida; agora, são as monoculturas dos campos agrícolas que se destacam. O avanço do agronegócio tem sido uma das principais causas da destruição da biodiversidade do Cerrado. Por conta dessa realidade, uma força-tarefa foi criada pelo governo federal para frear o crescente desmatamento do bioma.

A iniciativa faz parte do Plano de Ação Contra o Desmatamento do Cerrado (PPCerrado), retomado neste ano. Os esforços incluem a integração das bases de dados estaduais com o governo brasileiro, visando revitalizar o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O foco está nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, conhecidos como Matopiba, que formam a fronteira agrícola onde ocorre cerca de 75% do desmatamento no Cerrado. O Piauí foi escolhido como alvo prioritário para a força-tarefa nacional, considerando a gravidade da situação na região. A colaboração entre os estados e o governo pode resultar na alocação de de até 20% dos recursos do Fundo Amazônia para ações de monitoramento e controle em outros biomas, como o Cerrado.

De acordo com a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Estado do Piauí (SEMARH), a previsão é de que a força-tarefa será coordenada pelo IBAMA. “Até o momento, a SEMARH ainda não foi consultada pelo órgão federal para discussão de estratégias, definição de escopo e atribuição de tarefas”. Apesar disso, seguindo o modelo de outras forças-tarefa similares, o papel da SEMARH será atuar como agente repressora no combate ao desmatamento ilegal nas áreas mais impactadas, além de contribuir com o planejamento das ações com informações colhidas pela secretaria”.

O RG das fazendas

O CAR é um registro eletrônico obrigatório para propriedades rurais, estabelecido pelo Código Florestal de 2012. Ele é como um “RG” das propriedades rurais, fornecendo dados sobre ocupação das terras e o papel da agricultura nessas áreas. O governo utiliza esse registro para garantir que os proprietários rurais estejam em conformidade com a Lei de Proteção da Vegetação Nativa do Brasil e mantenham a porcentagem exigida de vegetação original, variando de acordo com o bioma. De acordo com o Código Florestal, os proprietários rurais têm a obrigação de preservar uma percentagem da vegetação nativa em suas propriedades, denominada Reserva Legal (RL). Nas áreas de floresta amazônica, a cota é de 80%, enquanto nas áreas de cerrado na Amazônia Legal é de 35%, e no restante do país é de 20%.

Por ser um registro autodeclaratório, o CAR requer uma verificação minuciosa dos dados fornecidos, incluindo a localização precisa e a demarcação de rios, para determinar se as áreas estão dentro de reservas públicas ou terras indígenas. No entanto, essa análise tem sido dificultada pela antiguidade dos dados cadastrais e as divergências de informações. Com a integração das bases de dados estaduais com o governo brasileiro, pretende-se revitalizar o CAR e aprimorar a qualidade dos dados, corrigindo registros desatualizados e lacunas no sistema. Essa medida visa melhorar a gestão ambiental do país, fornecendo informações precisas e facilitando a formulação de políticas eficazes, além de auxiliar na identificação e fiscalização de áreas desmatadas.

Desmatamento legal

A força-tarefa organizada pelo governo é uma resposta ao aumento de 43% no desmatamento no Cerrado em 2023 em comparação ao ano anterior. Essa taxa representa o maior aumento da área devastada desde o início dos registros do Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Inpe. Somente entre agosto de 2022 e julho de 2023, o bioma perdeu 11.011,7 km² de vegetação nativa, conforme divulgado pelos dados do PRODES Cerrado. A região do Matopiba foi a mais afetada, respondendo por aproximadamente 75% do total perdido. Segundo os números revelados pelo PRODES Cerrado, os estados mais impactados pelo desmatamento foram Maranhão, com 2.927 km², seguido por Tocantins, com 2.235 km², Bahia, com 1.971 km², e Piauí, com 1.127 km². Além do desmatamento ilegal, um dos maiores problemas é o desmatamento legal e a falta de gestão do mesmo. Dados da Secretaria Extraordinária de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial apontam que cerca de 50% do desmatamento registrado em 2023 no bioma foi feito de forma legal.

Um estudo da organização Climate Policy Initiative (CPI/PUC- Rio) revela deficiências no monitoramento do desmatamento legal no Matopiba. O principal meio de supervisionar o desmatamento legalizado é a Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), cujos dados são registrados no Sistema Nacional de Controle da Origem de Produtos Florestais (Sinaflor). Os pesquisadores observaram uma série de lacunas nesse sistema que dificultam o desempenho eficaz da gestão e controle do desmatamento autorizado. O estudo aponta que apenas algumas ASV estão devidamente cadastradas e atualizadas. Adicionalmente, os estados enfrentam dificuldades na utilização do Sinaflor, afetando a integração das bases estaduais de gestão de ASV ao sistema federal.

O aprimoramento e integração das bases de dados do Cadastro Ambiental Rural deve contribuir para regular o desmatamento legal. Essa medida pode melhorar o controle da emissão de autorizações para desmatamento, o cumprimento das regulamentações ambientais e a garantia da transparência dos dados. De acordo com projeções feitas durante a primeira reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de 2024, se o ritmo de desmatamento observado no segundo semestre de 2023 persistir nos primeiros meses deste ano, a taxa anual de desmatamento pode atingir 12 mil km², equivalente a cerca de 8 vezes a área de Teresina.

Dados: PRODES Cerrado

MATOPIBA

No Cerrado, a maior parte do desmatamento ocorre em propriedades privadas. De acordo com o Prodes, 63,4% dos 11 mil km² desmatados recentemente ocorreram nessas áreas. Ao contrário da Amazônia, onde o desmatamento se concentra em terras públicas invadidas por grupos criminosos, no Cerrado há muitos casos autorizados pelas secretarias ambientais estaduais.

Desde os anos 70, o Matopiba tem estado na mira do agronegócio. Esse interesse cresceu quando agricultores do Sul do país se mudaram para a região devido ao preço baixo das terras. A partir de 2005, houve um rápido crescimento da agricultura nessa fronteira agrícola com o surgimento de fazendas monocultoras, como as de soja. 

Segundo a pesquisa Projeções do Agronegócio do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), nos últimos 10 anos, houve um crescimento significativo na produção de grãos no Matopiba, com um aumento de 93,0%. Em 2013/14, a região produziu 18 milhões de toneladas, enquanto em 2022/23 esse número subiu para 35 milhões. Para os próximos 10 anos, a pesquisa realizada pelo MAPA estima que os quatro estados atinjam uma produção total de grãos de 48 milhões de toneladas, cultivados em uma área de 11 milhões de hectares até 2032/33. Os municípios de Ribeiro Gonçalves e Santa Filomena, no Cerrado piauiense, deverão liderar o crescimento na produção de grãos na fronteira agrícola do Matopiba. Estima-se que a produção de Ribeiro Gonçalves crescerá 44,7%, atingindo 1 milhão de toneladas de grãos na safra 2032/2033, enquanto Santa Filomena terá um aumento de 39,9%, alcançando 343 mil toneladas. 

Dados: Projeções do Agronegócio’ do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA)

O estudo avaliou a perspectiva de crescimento da produção agrícola dos 15 principais municípios do Matopiba, que é a quarta maior produtora de grãos do país e abrange parte dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Entre os cinco municípios com melhores resultados, três são do Piauí e dois da Bahia. Além disso, outros municípios piauienses também apresentarão crescimento significativo: Bom Jesus terá aumento de 38,9%, Uruçuí de 35,9% e Baixa Grande do Ribeiro de 31,7% em sua produção de grãos nos próximos dez anos.

O aumento significativo na produção agrícola implica em uma maior pressão sobre os recursos naturais, resultando em mais desmatamento, degradação do solo, redução da biodiversidade e alterações nos ciclos hidrológicos. O avanço da agricultura em áreas anteriormente cobertas por vegetação nativa pode levar à perda de habitats de espécies nativas, aumentando o risco de extinção e desequilibrando todo o ecossistema do Cerrado. Além disso, o uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes pode contaminar os recursos hídricos e comprometer a qualidade do solo, afetando a saúde humana e a segurança alimentar.  

No cerrado piauiense

Enquanto o desmatamento legal continua sendo uma preocupação, o desmatamento ilegal permanece como uma forte ameaça à biodiversidade e à sustentabilidade do Cerrado. Nesta luta contra a destruição ambiental, uma série de iniciativas e políticas estão sendo implementadas para conter a perda de vegetação nativa. A SEMARH está elaborando o Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento Ilegal no Estado do Piauí – PPCDI (Fase 01: 2024-2026). Em fase de consulta pública, o plano tem como objetivo reduzir em 80% o desmatamento ilegal até 2026, em comparação com os números de 2022. Essa iniciativa está alinhada aos compromissos do Brasil no Acordo de Paris e às políticas estaduais voltadas para a mudança climática e o combate à pobreza.

De acordo com a secretaria, o Plano Estadual de Prevenção e Combate ao Desmatamento Ilegal (PPCDI) contempla um conjunto de 10 ações distribuídas em três grandes temas: Prevenção, Responsabilização e Monitoramento. Cada uma dessas ações possui indicadores específicos para medir sua eficácia e contribuição para alcançar a meta estabelecida. Em 2026, essas ações serão avaliadas, o que resultará em uma revisão do plano e na elaboração de sua segunda fase, que visa alcançar o desmatamento ilegal zero até 2030.

Atualmente, a SEMARH conduz a Operação Cerrado Vivo, investigando relatos de desmatamento ilegal no cerrado do Piauí, inclusive em terras indígenas como as dos Akroá Gamella em Uruçuí. Durante as sete fases das Operações Cerrado Vivo, mais de 90 propriedades rurais foram fiscalizadas pela SEMARH, concentradas nas áreas onde ocorre mais de 90% do desmatamento ilegal no estado. Além disso, houve um aumento de 1.000% na quantidade de multas e embargos aplicados pela secretaria em 2023 em comparação com o ano anterior.

Operação Cerrado Vivo da SEMARH, com apoio da Polícia Civil, realiza fiscalização no sul do Piauí e efetua apreensões de equipamentos utilizados em atividades ilegais de desmatamento (FOTO: SEMARH)

Segundo a SEMARH, o combate ao desmatamento deste ano no estado está sendo abordado sob três eixos: aumento e aprimoramento do uso de tecnologias, planejamento e aumento das operações. A Secretaria tem se beneficiado da adesão à Rede Brasil MAIS, coordenada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que proporciona acesso a imagens de satélite de alta resolução, juntamente com alertas diários de desmatamento. “Outro avanço diz respeito ao uso de drones por parte dos auditores fiscais. Neste ano, foram adquiridos mais 14  novos drones, além da realização de treinamento dos auditores para seu manuseio. A utilização destes equipamentos torna mais ágil o trabalho fiscalizatório”.

Em 2023, a equipe de geoprocessamento e fiscalização da SEMARH conduziu um monitoramento que identificou áreas prioritárias para intervenções da secretaria, resultando na elaboração de um plano de trabalho e metodologia para a execução de ações presenciais e remotas. “Um dos frutos mais relevantes deste estudo diz respeito, ao cruzamento de áreas com vegetação suprimida com aquelas cujo desmatamento foi devidamente autorizado pela SEMARH, resultando apenas naquelas cujo desmatamento ocorreu de forma ilegal. Com isso, as operações já foram direcionadas aos imóveis onde foram identificados estes desmatamentos ilegais”.

 

quinta-feira, 2 de maio de 2024

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