domingo, 28 de abril de 2024

Uma terra sedenta

Apesar do legado de obras contra a seca no semiárido, 91,3% dos habitantes de Marcolândia dependem do abastecimento de água por carro-pipa, considerado inadequado pelo PNSB

28 de março de 2024

Em março é celebrado o Dia Mundial da Água, uma data que destaca a importância desse recurso para a sobrevivência da vida em nosso planeta. No Piauí, apesar dos esforços para melhorar o acesso à água, muitas famílias ainda enfrentam secas implacáveis em meio a fontes de abastecimento consideradas precárias ou inadequadas. No último mês, o Governo do Piauí emitiu um decreto de situação de emergência em 40 municípios devido à estiagem como medida para intensificar o acesso à água para os habitantes dessas regiões. De acordo com dados do IBGE coletados em 2022, embora a maioria da população do estado seja atendida pela rede geral de distribuição de água, que beneficia 76,91% dos habitantes, ainda existe uma parcela dependente de outras fontes de abastecimento, como poços profundos, carros-pipa e água da chuva armazenada. No entanto, devido à seca e às condições geográficas de algumas cidades, até o acesso à água dos poços e das chuvas é difícil, como é o caso de Marcolândia.

 

 

No município, localizado a 421 km de Teresina, no sudeste do Piauí, a falta de rede de distribuição de água encanada é uma realidade que obriga os moradores a recorrerem ao abastecimento por carros-pipa para suas atividades diárias. Cerca de 91,3% dos habitantes de Marcolândia dependem exclusivamente do abastecimento de água por meio de carros-pipa, é o que apontam os dados do Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com uma população de 8,5 mil habitantes, a cidade possui o terceiro maior índice entre os municípios brasileiros que mais dependem desse meio de abastecimento, e o primeiro do Piauí.

Enquanto 96,9% da população brasileira tem acesso adequado à água, seja por meio da “Rede geral de distribuição” (82,9%), “Poço profundo ou artesiano” (9%), “Poço raso, freático ou cacimba” (3,2%), ou “Fonte, nascente ou mina” (1,9%), a cidade faz parte dos 3,1% dos brasileiros que dependem de uma forma inadequada ou precária de abastecimento de água. O uso de carros-pipa é considerado inadequado pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) devido às preocupações com a qualidade da água, os custos, a sustentabilidade da prática e as limitações de transporte desse recurso essencial para a sobrevivência.

O presidente da Associação dos Pequenos Produtores, Agricultores e Criadores do Município de Marcolândia (APPACRIMA), José Welton dos Santos, explica que as alternativas para o abastecimento, além dos carros-pipas, são ainda mais inapropriadas para consumo, como a água de barreiros ou dos poços do município.  “Infelizmente, nós que moramos aqui em Marcolândia não temos água encanada. Somos 100% dependentes do carro-pipa devido a nossa localização no topo desta serra. Além disso, não possuímos nenhuma barragem de grande porte para abastecimento, sendo necessário recorrer a poços tubulares, onde a água é salgada”, relata.

Estudos da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, solicitados há mais de 30 anos pela Secretaria da Fazendo do Estado do Piauí, já destacavam que o aproveitamento de água subterrânea para o abastecimento via poços tubulares é inviável devido à posição geográfica da cidade. Localizada na região da Chapada do Araripe, Marcolândia está posicionada na borda de uma grande bacia sedimentar, onde a água naturalmente escorre em direção ao centro dessa estrutura, que está distante da cidade. A pesquisa também apontou a presença de rochas cristalinas no subsolo da região, que dificultam o fluxo da água para o interior do solo devido à baixa porosidade desses minerais, impedindo a formação de grandes lençóis freáticos.

O Projeto de Cadastro de Fontes de Abastecimento por Água Subterrânea, realizado em 2004 pelo Ministério de Minas e Energia, confirmou que, devido à falta de circulação da água, ao clima semiárido e as rochas cristalinas do subsolo em Marcolândia, os poços subterrâneos da cidade têm vazões pequenas e a água é salinizada. Assim, além do baixo potencial hidrogeológico, os poucos poços na região tem água salobra, conforme as amostras coletadas durante a pesquisa.

Árida agricultura 

Além do uso para as necessidades básicas, as dificuldades de obtenção de água também limitam a produção agrícola da cidade. “Nosso principal setor produtivo é a mandioca, e dependemos totalmente da água para realizar a produção da farinha e da goma”, destaca José Welton. No curto período de chuvas na região, entre os meses de janeiro, fevereiro e março, uma das alternativas para armazenar água são os barreiros, que funcionam como reservatórios artificiais de água construídos ao cavar o solo. A água armazenada nesses locais é usada para saciar a sede de animais e para a irrigação de culturas agrícolas, porém não é apropriada para consumo humano.

Durante os períodos chuvosos, outra alternativa para o armazenamento de água são as cisternas. Entre as residências simples do semiárido piauiense, essas estruturas se sobressaem pelo formato afunilado e pela cor branca com que são pintadas, criando um contraste marcante com a paisagem. A água da chuva coletada pelas cisternas é utilizada tanto para o consumo humano quanto para a irrigação ao longo do ano.

Apesar de úteis, essas alternativas para abastecimento de água não alteram a realidade da cidade, que ao longo do ano recebe apenas cerca de 500 milímetros de chuva, considerado um índice muito baixo. Em Teresina, por exemplo, a precipitação média anual é mais que o dobro, cerca de 1.378 mm.

Nos períodos de seca, a situação em Marcolândia piora. O presidente da APPACRIMA afirma que os reservatórios naturais esvaziam, as cisternas ficam secas e a disponibilidade de água para abastecimento, que já é pequena, fica menor. “Somos totalmente dependentes dos períodos sem chuva, não temos água para poder produzir. Nós não temos o que fazer, apenas esperar a água chegar e nos virar com o que temos”, desabafa José Werlton.

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O agricultor Agnaldo Carvalho sabe bem como é depender de um recurso tão essencial para a agricultura, mas que é escasso ou inadequado para o consumo. Ele relata que o único reservatório de água do município não é suficiente para atender às necessidades e que, na maior parte do tempo, Marcolândia depende 100% do carro-pipa, tanto na zona urbana quanto na zona rural. Ele ressalta que o custo desse fornecimento de água é elevado, e nem todos têm condições de arcar com esse tipo de abastecimento. “Casas com uma família de 4 pessoas consomem, em média, um carro-pipa de 8 mil litros por mês. O valor do abastecimento varia conforme a qualidade da água. Para água potável de boa qualidade, o preço médio é de R$300 a R$400 reais”, ressalta.

Na zona rural, o consumo é bem maior para os criadores de rebanhos, que também precisam ser abastecidos por meio do carro-pipa durante os meses mais secos do ano. Para baratear os custos, os criadores buscam água salobra para saciar a sede dos animais. “Dependendo do rebanho, o produtor utiliza um pipa por semana. Nesse caso, a água para os animais geralmente é água salobra de poços da região, com um custo médio de R$100 a R$150 reais por carro-pipa, explica o agricultor.

Defesa Civil

O clima semiárido, marcado pelas altas temperaturas e baixa umidade que predomina na cidade, contribui para a escassez de água em Marcolândia, que está localizada próxima ao centro do Polígono das Secas. A última atualização do Monitor de Seca, em janeiro de 2024, revela um agravamento da estiagem no Piauí, especialmente na região onde se encontra Marcolândia, que passa por uma situação considerada grave. No mês passado, em 16 de fevereiro, o governador Rafael Fonteles emitiu um decreto de situação de emergência, com validade de 60 dias devido à estiagem em 40 municípios no sul do estado, entre eles, Marcolândia. O decreto nº 22.756, de 9 de fevereiro, publicado no Diário Oficial do Estado do Piauí (DOE-PI), acionou os órgãos da Administração Pública, incluindo aqueles ligados à Defesa Civil do Estado, para tomarem as medidas necessárias e restaurarem a normalidade. O decreto considerou o aumento das temperaturas máximas e a diminuição da umidade relativa do ar, fenômenos frequentes nesta época do ano e agravados pela presença do El Niño, o que acelera o período de estiagem.

Segundo o diretor de resposta da Secretaria de Estado da Defesa Civil, José Inácio Sobrinho, o governo estadual atende o município com ajuda do Exército Brasileiro, fornecendo carro-pipa em todos os meses do ano. Ele destaca que esse trabalho se intensifica especialmente durante esse período de estiagem. “O Governo do Estado atendeu o município nos últimos anos com uma média de 14 carros-pipa durante o período mais seco do ano, ou seja, no segundo semestre”, relata.

Sobrevivência que vaza

Enquanto a cidade de Marcolândia enfrenta dificuldades no acesso à água, o estado do Piauí lida com um aumento nas perdas na distribuição de água. O Painel de Regionalização dos Serviços de Saneamento Básico no Brasil mostra que, em 2021, as perdas na distribuição de água no estado atingiram 45,3% do total disponível. Em 2022, esse percentual aumentou para 47,5%, representando o quarto maior índice do Nordeste, atrás apenas de Sergipe (57,6%), Maranhão (57%), Rio Grande do Norte (49,3%) e Pernambuco (48,5%).

 

 

A média de perdas nos estados nordestinos é a segunda maior do Brasil, atingindo 46,7%, ficando abaixo apenas da região Norte, que registra 46,9%. Essas perdas representam a parcela da água fornecida que não é aproveitada pelos consumidores devido a vazamentos, problemas nos medidores ou conexões irregulares.

As perdas de água são comuns em sistemas de fornecimento, mas têm sido mais debatidas recentemente devido à escassez crescente e ao risco de contaminação. Essas perdas diminuem a pressão na rede de distribuição e geram custos adicionais de energia e recursos naturais. Esses custos acabam sendo repassados aos consumidores, afetando o acesso à água potável, um direito humano reconhecido pela ONU.

Enquanto a água escorre pelos sistemas de distribuição, cidades como Marcolândia continuam sedentas por um abastecimento adequado, capaz de potencializar o desenvolvimento local e melhorar as condições de vida dos habitantes. A falta de acesso regular a uma fonte confiável de água não apenas limita as atividades diárias, mas também impede o pleno desenvolvimento econômico e social da comunidade, que sofre há décadas sem uma transformação efetiva na forma como \ população tem acesso a esse recurso de importância fundamental.

domingo, 28 de abril de 2024

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