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Cadê o pasto que estava aqui?

Efeitos das mudanças climáticas podem trazer alterações irreversíveis para o agronegócio no Piauí

25 de julho de 2022

Edição Luana Sena

O vento seco cortava o rosto de Adécio Rodrigues enquanto ele caminhava a pé, na região do Vale do Gurguéia, até a cidade mais próxima. Em passos apressados, a esposa carregava um grande saco na cabeça. Uma criança tropeçava nos próprios pés, logo atrás, segurando com força a mão da mulher, na esperança de acompanhá-la. Aquela caminhada se repetia todo dia, em um trajeto de 15 quilômetros, até chegar em Gilbués. A cruzada da família era solitária: não passava uma pessoa, carro, ou animal sequer naquele lugar. Eram apenas os três, contemplando o deserto vermelho que tomava a vista por todos os cantos. “A única solução para essa terra é ter fé mesmo”, afirma Adécio.

 

Família faz jornada em região deserta de Gilbués (Foto: Reprodução do Youtube)

 

A região em que a família faz sua jornada é localizada no extremo sul do Piauí. Gilbués fica localizada quase na mesma distância de Brasília ou Teresina. São cerca de 766 quilômetros entre a cidade e a capital do estado – e 790 até a capital federal. É lá que possui uma das maiores áreas de solo desertificado do país. Sem cobertura vegetal, o solo rasgado por fendas e tomado pela vermelhidão, passou a ser chamado de “Deserto de Gilbués”.

A desertificação é um processo que acontece em duas ocasiões: natural, pela pouca quantidade de chuva e aumento da temperatura ou humana, com interferência do solo para plantações e atividades extrativistas. Mas em Gilbués, o caso é peculiar até para a ciência, que ora classifica como um exemplo clássico de desertificação, ora como degradação. 

Até o século passado, Gilbués foi palco do intenso garimpo de diamantes que avançavam com força na região. Seguido disso, atividades da pecuária e agricultura aceleraram a degradação do solo. Adeodato Ari Cavalcante, pesquisador e professor em ciências do solo, também explica que o lugar possui um solo frágil e as chuvas com energias cinéticas foram duas vezes maior do que em outras regiões do país. “O tamanho e a velocidade da gota são mais intensos do que em outros locais se não houver vegetação nativa. No entanto, houve muito desmatamento e o solo ficou sem coesão”, explica em publicação científica sobre o território. 

A erosão no lugar foi tão violenta que criou voçorocas – crateras enormes no solo, sem vegetação alguma. A área degradada corresponde a 1.760,99 km² de área degradada, quase 50% do território da cidade de Gilbués. O caso se repete nos outros municípios vizinhos, como São Gonçalo e Redenção do Gurguéia. Em Barreiras do Piauí, 60% das terras estão desertificadas, com erosões voçorocas. Essas cidades fazem parte do que foi definido como Núcleo de Desertificação de Gilbués (NDG).

 

Desde 1992, o território está na mira do Pan Brasil (Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca). No Brasil, ela compreende quatro territórios, localizados em Irauçuba (Ceará), Cabrobó (Pernambuco), Seridó (Rio Grande do Norte) e em Gilbués, no Piauí. O projeto existe para combater os males que levam o seu nome. A ideia foi criada a partir das metas instauradas pela Eco-92, primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Com o projeto, o Brasil deveria ter se tornado uma referência no combate à desertificação dos solos.  

De lá para cá, não foi bem isso que aconteceu. Em 2006, quando Marina Silva, ainda ministra do Meio Ambiente, anunciou com entusiasmo a chegada do Núcleo de Pesquisas de Combate à Desertificação do país (Nuperade). O projeto era pioneiro no mundo e serviria como projeto piloto de desenvolvimento de estudos sobre o tema. Ele ficaria sediado no Piauí, à época, em Gilbués – a área mais afetada pelo problema no território brasileiro. Hoje em dia, quem passa pela frente da sede, até se assusta em pensar que ali um dia houve palestras, cursos e pesquisas científicas para melhoramento do meio ambiente e efeitos climáticos. O lugar que era para ter sido uma referência global, agora é um imóvel perdido em meio ao matagal, com portas fechadas, salas vazias e paredes rachadas.

 

Sede do Nuperade em Gilbués (Foto: Reprodução TV Clube)

 

Em nota, o Governo do Piauí afirmou que tomaria responsabilidade pela reabertura do Núcleo. Não definiu data, mas garantiu que seria realizada ainda em 2022, com recursos próprios e de empreendedores. Há quase dois anos o lugar foi completamente desativado por falta de manutenção. O Nuperade é o único centro que estuda a recuperação de áreas degradadas em todo o mundo. 

O paradoxo do agronegócio 

A cada dia que passa, a previsão é que as consequências causadas pelas mudanças climáticas agrave ainda mais a situação. Um estudo publicado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) no ano passado, alertou que a região do semiárido terá um aumento de temperatura entre 2,3 °C a 2,5°C. As chuvas também devem diminuir de 10% a 20% nos próximos anos. Esse cenário é capaz de tornar o deserto de Gilbués ainda maior. 

O relatório também traz perspectivas desanimadoras em relação ao meio ambiente e ao Brasil. No país, um aumento de no mínimo 4°C deve ser esperado em menos de 50 anos. À medida que o país vai esquentando, as chuvas devem diminuir em 30%. 

O panorama descrito no documento evidencia essas consequências como fruto do aquecimento global – e prevê que elas devem afetar o agronegócio. Em janeiro de 2022, a Aprosoja/PI (Associação dos produtores de soja do Piauí) declarou que o Piauí dobraria a capacidade de produção agrícola do estado na próxima década. No entanto, os dados do IPCC desafiam as expectativas das colheitas de soja e carne no país. Regiões como o Sul do Piauí, onde cresce a concentração do pasto e cultura de grãos, terão de repensar o modelo de agronegócio. O cientista e professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC, Paulo Artaxo, alerta que áreas que produzem soja e carne não terão mais condições de produzir de forma competitiva nos próximos 30 anos. 

“Muitos processos já iniciados são irreversíveis”, disse Artaxo, que assina o capítulo seis do documento e é uma das maiores referências em aquecimento global no país. “A meia vida do CO2 na atmosfera é de alguns milhares de anos, ou seja, o CO2 que a gente já emitiu vai ficar lá”, explicou em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos. “A única maneira de tirar esse CO2 da atmosfera é através da fotossíntese. Mas como vamos plantar árvores onde hoje se cultiva comida? Isso traria um impacto gigantesco para a sociedade”, destaca. 

O estudo mais recente do Observatório do Clima também apontou como a atividade rural foi responsável, de forma direta e indireta, por 73% das emissões de gases do efeito estufa no território brasileiro – sendo 46% dessa geração por substâncias nocivas associadas ao desmatamento de áreas naturais. Na pandemia, enquanto o mundo apresentou uma queda de 7% das emissões de gases de efeito estufa, o Brasil aumentou em 9,5%. A emissão está relacionada ao também crescimento do setor no mesmo período. O país passava a boiada, a qualquer custo.

Leia mais: Mudanças climáticas, devastação, estruturas precárias e pobreza são algumas das heranças deixadas pelo agronegócio

Se por um lado, o avanço desenfreado da agropecuária é um dos causadores de efeitos nas mudanças climáticas, o setor é ainda um dos mais sensíveis às próprias alterações naturais pelas quais tem grande parcela de responsabilidade. O documento do IPCC é enfático ao explicar essa relação: o agronegócio brasileiro deverá sofrer cada vez mais com eventos extremos, provocando grandes estiagens no Nordeste e Centro-Oeste, enchentes no Sudeste e fortes ondas de frio no Centro-Sul do País. No Cerrado, um dos biomas com maior produtividade para o agro atualmente, a temperatura média pode subir até 5°C até o final do século. A agricultura em larga escala, se não for repensada muito em breve, terá seus dias contados. 

Flores no deserto

Aos olhos leigos, a desertificação de Gilbués parece não ter solução. Mas quando Fabriciano Corado, engenheiro agrônomo e pesquisador do seminário observa a imensidão vermelha, enxerga um lugar possível para quem vive da terra. Os estudos topográficos na área apontam que o solo de Gilbués é rico em minérios e nutrientes. A terra tem um PH rico e neutro, o qual não seria necessário correção química. Do deserto, seria possível nascer até flores.

O agrônomo rejeita a ideia de que não houve progresso nos últimos anos. Desde 2006, quando chegou o Nuperade, houve um aumento significativo de produções para bananicultura e desenvolvimento da piscicultura. Pessoas de todo país pesquisam em dissertações de mestrados e teses de doutorados, o solo e a cultura da cidade. Até mesmo nas escolas, no nível médio, a educação ambiental tem chegado para crianças e adolescentes. 

Uma das alternativas adotadas tem sido o terraceamento, utilizado pelos pequenos agricultores para não perder o solo. A técnica consiste em plantar em níveis, evitando que as águas da chuva corram livremente e arraste o que tem no solo. O método não é de hoje e teria sido utilizado por civilizações andinas, há quase cinco séculos atrás. Com ela, há uma capacidade de cultivo e a produtividade da terra em campos inclinados, prevenindo a erosão do solo e diminuindo as formações de sulcos.

O que não tem acontecido – e segue sem previsão – é o desenvolvimento em tecnologia e inovação sustentável para micro e médios agricultores. Esse percentual de trabalhadores tem apostado e desenvolvido alternativas de conservação de solo, sem agredir o território. “Essas pessoas ainda mexem com enxada, de forma artesanal, sem acesso à educação e tecnologias necessárias para fundir seus saberes à natureza”, finaliza o pesquisador.

Leia mais: Especialistas comentam a falta de políticas ambientais no estado e os impactos futuros

A esperança de Corado é que o Nuperade seja reativado para impulsionar a criação de tecnologia e inovação sustentável no campo. Ele ainda é receoso quanto à reforma prometida – e se um dia poderá ver o local rendendo frutos suficientes para combater o avanço do deserto. “O Piauí tem se tornado um estado meio confuso”, diz o agrônomo à reportagem. “A gente sabe quem vai ser o candidato ao governo em 2.100, mas não sabe o que vai ser do meio ambiente amanhã”.

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