sábado, 1 de fevereiro de 2025

Coleção de resistências

Nayara Fernandes, mulher, negra, com deficiência e universitária: “Sou a linha tênue entre o voo e a volta por cima”

20 de novembro de 2021
por Redação

Edição Luana Sena

A vida é o dever que trouxemos para fazer em casa, é aquilo que reúne o todo de cada história em suma possibilidade: coexistência e convergência entre o impossível, o provável e a probabilidade em ser total fracasso. Uma vez que o mundo gosta das pessoas neutras, mas respeita somente as que têm atitude. Àquelas pelas quais a dependência de independência é soma de múltiplas versões, papéis e protagonismos.

O ano era 1988 e o diagnóstico, descoberto posteriormente, paralisia cerebral (PC). Originado pela falta de oxigenação durante o parto, o qual teve como características principais o comprometimento permanente e irreversível dos membros superiores e inferiores esquerdos, além da fala. Cientificamente comum na primeira infância, ao passo que 87% das pessoas sobrevivem até os 30 anos e quase 85% que ultrapassam os 20 anos sobrevivem até os 50 anos a priori, paralisia cerebral é uma lesão neurológica causada por falhas ocorridas no cérebro em desenvolvimento, afetando aspectos como movimentos, postura, tônus muscular e habilidades motoras. 

Ao longo das 35 semanas de gravidez de minha mãe, nasci com 1,600g e perspectiva de um ano de vida, à vista disso aos três meses início uma longa caminhada pelas clínicas de reabilitação. Aos quatro anos arrisco meus primeiros passos de menina arteira. Para muitos seria um destino inaceitável a uma criança que, teoricamente, desfrutaria um futuro brilhante, uma vez que o discurso de igualdade é válido somente quando há compatibilidade. Ou seja, quanto mais comum um indivíduo é, mais dentro do meio permanece. No entanto, homem algum nasce diferente e vai se assemelhando. O homem nasce diferente e vai se destacando pela dissemelhança. Todavia, diante de uma sociedade medíocre, quem afirma que igualdade cresce no terreno do respeito pelas diferenças nunca soube o verdadeiro sinônimo de capacitismo. 

Entre uma batalha e tantas, aos 12 anos daria início a uma verdadeira guerra chamada depressão. Foram anos de tratamento em meio a algumas pausas, de maneira que deixei de estudar ainda naquele primeiro ano. Era terrível imaginar que uma cirurgia reparadora, a qual melhoria minha marcha ao andar, seria o que identificaria o título de cadeirante. O que ninguém pensava era o quanto o diagnóstico de paralisia cerebral (PC) ainda poderia variar àquela altura, de modo que minha massa óssea não acompanhou as diversas transformações do corpo na adolescência. O que resultou numa mudança significativa de vida, onde antes caminhava mesmo com dificuldades a uma pessoa que agora dependeria de auxílio quase em absoluto. Mais um ano terminava intervalando acompanhamento psicológico, neuropsiquiatra e atenuantes sem êxito, mais uma vez a opção mais viável era parar, restabelecer e retornar ainda que doente. Agora numa instituição de ensino público, metodologicamente mais leve e condizente com o quadro. Em contrapartida, completamente despreparada desde a acessibilidade à coerência dos professores ao receber uma aluna deficiente. De modo que poucos nesta vida ouviram da boca de um educador, em plena classe, que você deveria estar em casa descansando e não numa sala de aula ocupando o espaço que outro aluno poderia aproveitar melhor.

Ele mal sabia que a aprendiz de estorvo carrega, a contar de pequena, uma vasta noção de tudo e um conhecimento de quase nada, à medida que desde miúda soube afinar silêncios. Enquanto prece da revolução de uma preta, mãe solo e analfabeta fundamental, a quem graduada pelos dias a ensinou desde o princípio tomar ciência dos seus objetivos e batalhar honestamente em busca do próprio espaço. Luta diária na qual entre o cadafalso e fio da navalha as marcas são várias, mas a falta de assistência paterna nunca foi um problema. No entanto, recursos financeiros em troca de uma vida mais confortável sem dúvidas. Tanta humilhação hoje é redenção — até meu jeito é o dela.

O capacitismo, visto como a intolerância e o preconceito contra Pessoas com Deficiência (PcD), começa nesta rasa ilusão entre o padrão e o diferente, onde a estratégia de interação não é um traço de competência, mas uma combinação de aparências. É certo como dois e dois são quatro que sábios nunca dizem o que sabem, assim tempos antes era alfabetizada entre cinco e seis anos debaixo de um limoeiro, tendo como “professora” minha própria irmã, numa brincadeira que reunia todas as crianças do quarteirão onde até hoje moro. Iniciando minha trajetória estudantil em 1997, aos sete anos, formando as primeiras sílabas. 

Cerca de 17,3 milhões de pessoas (8,4% do total) têm pelo menos um tipo de limitação relacionada a algum nível de deficiência no Brasil. Os dados traçam um perfil de desigualdade acentuada em relação àqueles sem nenhum tipo de deficiência. Segundo pesquisa do Censo Escolar (Inep) cerca de 14,2 têm o ensino fundamental completo, 17,7% têm o ensino médio completo e 6,7% têm o ensino superior completo — deste total 61,1% sem instrução e fundamental incompleto. A Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada pelo Ministério da Saúde, revela que desde 2019 o Piauí é o quinto estado brasileiro com maior percentual de pessoas com deficiência. Ou seja, 9,7% da população a partir dos dois anos de idade possui algum tipo de comprometimento físico ou cognitivo. Apesar dos índices superiores à média brasileira, é correto afirmar que as políticas públicas em torno da educação inclusiva e o acesso ao mercado de trabalho ainda caminham a passos lentos.

Uma vez que inconsciente do próprio destino, revestido de infância, surgiram as primeiras mal traçadas linhas de uma semente que viraria um fascínio. Eu sou caneta, papel e coração ou simplesmente “Asas de pedra” livro autoral: o mundo tem o tamanho dos meus olhos / olhos vagabundos [imundos dos sonhos] / abrigam-se nas brigadas das realidades / exército esperançado sobre um coração de fé. Ser poeta não é dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre todas as outras, diria Mário Quintana. É um hábito sem consciência do ato. Mulher negra e deficiente, subjugada e sistemática. Sou a linha tênue entre o voo e a volta por cima. Exceção das exceções, ruptura do sistema e discente da rede federal de ensino. Talvez, até agora, um dos maiores e mais difíceis objetivos alcançados.

O curso de Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Repare: sentiu o peito cheio de satisfação? Todos os meus amigos foram graduandos do campus Teresina, à medida que ouvia muitas histórias sempre carregadas de paixão e entusiasmo. O desejo de ser jornalista nasceu pelo domínio da escrita e, consequentemente, adequação em relação à mobilidade e limitação motora. Porém, ingressar na UFPI era mais do que seguir o rebanho, uma vez que todos os horizontes seriam ampliados. Foram cerca de nove anos tentando ingressar através do sistema de cotas, até conquistar a intensamente desejada aprovação em 2019. Hoje sou a primeira e única filha universitária, de forma que nunca havia amadurecido tanto quanto nos últimos (quase) três anos.

Entre 2017 e 2018 o número de estudantes com deficiência matriculados nas universidades cresceu mais de 70%, de acordo com o Censo Superior da Educação. Segundo os dados, o número de matriculados PcD ultrapassa a cota de 2.962, em 2017, para 5.053, em 2018. Apesar do crescimento, as pessoas com deficiência ainda representam apenas 0,52% do total de matriculados em cursos de graduação do Ensino Superior com 43.633 alunos em 2018. Embora ainda existam lacunas entre o proposto em leis e convenções e a vivência real. Ou seja, tornar espaços e experiências acessíveis representa driblar uma série de barreiras que, em maior ou menor grau, persistem na vida social. Enquanto estudante do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Piauí, ressalto a importância da Lei das Cotas como porta principal para ensino superior. À medida que, embora 6,2% da população brasileira tenha algum tipo de deficiência, considerando as deficiências auditiva, visual, física e intelectual, o percentual de PcD nas universidades não chega a 1%. 

Visto que somente através da educação surgirá maior valorização no mercado de trabalho, à medida que as dificuldades ultrapassam as barreiras do ingresso ao Ensino Superior, atingindo as empresas tanto a falta de acessibilidade quanto de estrutura física e de acolhimento, é um dos grandes entraves às pessoas com deficiência. Ainda que atualmente toda empresa com 100 ou mais funcionários seja obrigada a ter de 2% a 5% dos seus cargos preenchidos por pessoas com deficiência (PcD). O artigo 93 da Lei nº 8.213/91, conhecida como Lei de Cotas, completa 30 anos em vigor com a marca de cerca 372 mil pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

Quanto custa o que esperam de você? Custa sua lucidez mental e reais sentimentos, seu reflexo diante do espelho e o lugar a que verdadeiramente pertence, à medida que vivem nos condenando a uma perfeição inexistente. O poder que uma ideia carrega tem uma força quase intransponível, de forma que a domesticação dos obstáculos não surge quando você conta até dez, mas quando aprendemos a converter o coração e redirecionar o olhar. É necessário reiniciarmos nosso amor próprio vezes entre vezes até reconhecermos quem somos. Reza que a alma precisa ser educada pelo espírito e o coração precisa saber dos compromissos da consciência. Eu? Sou Nayara Fernandes, poeta piauiense e estagiária em oestadodopiaui.com. Minha chegada até aqui começa num certo pedido de oportunidade enviado pelo LinkedIn, após um compartilhamento coletivo de um pseudo-currículo. Afinal, eu morro de vontade de viver arriscando.

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Categorias: Reportagem

1 comentário

Diego Noleto · 20 de novembro de 2021 às 13:37

Parabéns, Nayara Fernandes! O que você escreve é um exemplo de vida, e que seu texto possa trazer reflexões e fazer os outros também sentirem esse amor por tudo aquilo que se deseja ser. Lindo!

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