quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Crime velado

Com 80% da população preta ou parda, Piauí apresenta aumento no número de denúncias por racismo

21 de novembro de 2022
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Edição Luana Sena

No estado onde 80% da população se declara preta ou parda, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o racismo de todos os dias se faz perceber no aumento das denúncias desse tipo de crime. Até setembro de 2022, o número de registros por racismo cresceu 23% no Piauí, em relação a todo o ano de 2021. 

No último ano, foram 26 ocorrências registradas pela Secretaria de Segurança Pública do Estado (SSP-PI). Para se ter uma ideia, até setembro deste ano já somavam 32 casos denunciados. Os dados disponibilizados à reportagem evidenciam uma realidade de violência e preconceito mirados na população negra piauiense. 

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Para a pesquisadora e mulher negra Assunção Sousa, pode-se entender que a maior ocorrência de denúncias resulta de uma construção de resistência da consciência negra, que busca romper com o sistema racista. “A violência racial contra a pessoa negra é sistêmica”, afirma Assunção, que investiga literaturas africanas de língua portuguesa e a literatura afro-brasileira. “As relações sociais são marcadas por uma mentalidade senhorial branca que objetifica os corpos negros como forma de manutenção de poder”, explica. A ênfase de suas pesquisas está nos estudos sobre memória, feminino, gênero, ancestralidade e relações étnico-raciais. Sobre a origem do preconceito racial no Brasil, a pesquisadora destaca: “Esse crime existe desde o momento da captura do povo africano que foi trazido para cá”. 

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Por meio do fortalecimento da consciência negra e do maior acesso à informação, a população negra vem aos poucos retomando direitos e lugares de poder de decisão. Nesse processo de resistência e luta, na busca por fazer prevalecer a igualdade e o respeito às diferenças, a compreensão e aplicação das leis é fundamental. “As leis existem para serem executadas e não negligenciadas”, afirma a professora, ressaltando ainda que, durante muito tempo, os crimes de racismo eram transformados em atos de “injúria racial” e recebiam punição mais branda por isso. “É preciso empregar o adequado nome às coisas: se é crime de racismo deve ser punido como manda a lei”, disse.

Um dos primeiros passos no combate à violência racial é reconhecer as formas como ela pode ser praticada. Injúria racial, por exemplo, consiste num crime praticado contra o indivíduo/cidadão por causa da sua raça – geralmente a pessoa negra. Em 2021, a SSP-PI registrou 243 casos de injúria racial. Até setembro deste ano, foram 180 casos.

O racismo, por sua vez, é um crime cometido contra um grupo ou classe e, no Piauí, tem sido mais denunciado. Este ano, dados relacionados ao estado passaram a integrar o relatório da Rede de Observatórios da Segurança, e os números registrados, de agosto de 2021 a julho de 2022, destacam o racismo que coloca pessoas negras como o principal alvo. Contudo, segundo o relatório, a imprensa peca por não nomear corretamente esse tipo de crime: em um ano, dos 1.765 eventos de violência registrados no Piauí, apenas sete casos apontaram como fato principal um ato definido como racismo. Nacionalmente, o levantamento identificou 21.563 eventos violentos, e apenas 158 deles foram apontados como violência racial.

A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, determina a punição aos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência nacional, em quaisquer situações. Dentre suas especificações, devem ser punidos os crimes de racismo praticados, inclusive, no ambiente profissional, que impeçam, por exemplo, que a pessoa negra seja contratada, promovida ou que afetem sua remuneração salarial. 

Edimar Leite, árbitro de futebol e negro, foi vítima de racismo enquanto apitava um jogo do campeonato piauiense, em setembro de 2019, no município de Campo Maior. Durante a gravação da partida, feita por Gustavo Cavalcante, cinegrafista da Rede Clube, é possível ouvir alguém da torcida gritar: “A autoridade é o cartão, não é conversa não. Quem quer ouvir conversa de preto?”. O árbitro não ouviu as ofensas durante a partida de futebol, mas, após ter acesso à filmagem, buscou a polícia.

O autor das ofensas foi identificado como Raimundo Nonato Costa e Silva, que foi segundo secretário do Comercial-PI, clube mandante da partida. Após a denúncia feita por Edimar, o agressor foi exonerado do cargo. À época da ocorrência, o árbitro disse ao site do Globo Esporte: “Queria que não acontecesse mas, infelizmente, a gente tem que ouvir esse tipo de coisa. Não levo mágoa, mas vou procurar os meios para resolver dentro da lei”.

A Federação Piauiense de Futebol segue acompanhando o caso que, mesmo após três anos, não teve andamento. A gravação feita pelo cinegrafista e a fala das testemunhas são peças indispensáveis na condução do processo.

Testemunhas, inclusive, foi o que faltou para que Halda Regina registrasse denúncia por injúria racial ou racismo. Episódios de discriminação não faltam em sua história enquanto mulher negra, mas em 55 anos de vida, nunca denunciou nenhum deles. À reportagem ela recorda um caso em que sofreu o descumprimento da Lei nº 7.716, que determina a punição a quem negar ou limitar o acesso a locais a qualquer cidadão por sua raça. A professora foi perseguida por um segurança em uma loja de Teresina por ser uma mulher preta. “Desconfiaram que eu seria capaz de praticar algum delito na loja por causa da minha cor”, desabafa.

Aos 55 anos, Halda relata episódios de discriminação por ser uma mulher negra (Foto: arquivo pessoal)

Ao reclamar da situação de perseguição, ela relata que o segurança a ignorou, o que despertou uma reação de indignação da professora. Após o episódio, Halda cancelou o cartão da loja como forma de boicotar compras ali. No ato do cancelamento, ao ser questionada sobre a motivação, ela disse que sofreu preconceito racial, mas a atendente recusou-se a informar a causa no relatório. 

O episódio não foi denunciado por falta de testemunhas que aceitassem colaborar com o registro e por Halda não conseguir gravar a ocorrência na época. “A gente sofre injúria racial de várias formas, até mesmo por olhares, mas, infelizmente, muitas vezes não temos como provar ou faltam testemunhas que aceitem colaborar”, conta. 

Violências raciais como as que Edimar e Halda sofreram levam a práticas cada vez mais agressivas, que podem culminar em ataques físicos ou mortes. No levantamento da Rede de Observatórios da Segurança, por exemplo, meninos negros são apontados como as principais vítimas de linchamentos, por serem vistos como suspeitos. Proporcionalmente, o Piauí é o estado que mais preocupa no que diz respeito à prática de linchamentos. Em números absolutos, São Paulo possui mais casos (39 ao todo), segundo o relatório da Rede, mas no estado piauiense, cuja população é dez vezes menor que a paulista, foram identificados 34 casos em apenas um ano.

Como mulher preta, Halda sente um peso dobrado da discriminação. Para ela, esse “duplo preconceito” dificulta que muitas mulheres ascendam socialmente, desistam na metade do caminho ou sequer ingressem em determinados espaços, como nas universidades, por exemplo. “Precisamos nos identificar como mulher negra e entender que essa é nossa forma de existir”, declara. “Mas não é fácil, pois vivemos num país racista”. Na luta contra o racismo que sofre diariamente, ela afirma que as organizações e diálogos com a comunidade negra, além da sua formação política, têm sido essenciais. Atualmente, ela faz parte do Instituto da Mulher Negra do Piauí e afirma mais confiante: “Sou uma, mas não sou só”. 

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Não basta combater o racismo com a punição dos racistas – é importante trabalhar a conscientização da sociedade para práticas antirracistas. A esperança de Halda está, especialmente, na educação das crianças. “Devemos conscientizar nossos meninos e meninas para que não cresçam com essa prática de destruir pessoas por meio do racismo”, disse. “Podemos salvar nossas crianças de praticar e sofrer esse tipo de violência”.

Alguns passos já foram dados para uma conscientização coletiva sobre a história e direitos da população negra. A Lei 10.639 determina a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio, da rede pública e privada. Entretanto, essa determinação ainda não é cumprida em muitas escolas.  Outra ferramenta legal de compensação histórica à população negra no Brasil é a Lei nº 12.711, que reserva vagas para pessoas autodeclaradas pretas – bem como às pessoas pardas ou indígenas de baixa renda. 

Leia mais: Política rumo à igualdade

Para a pesquisadora Assunção Sousa, além de políticas públicas como essas, é urgente pensar em estratégias para garantir sua execução em todos os âmbitos da sociedade, principalmente na educação, que, como destacou à reportagem, sofreu muitos estragos durante os últimos anos. “Um dos espaços de possíveis contribuições para uma sociedade mais justa e igualitária é a escola”, explica. “Precisamos de uma educação que seja libertadora, crítica, antirracista e que cultive a paz”.

Assunção Sousa, professora e pesquisadora sobre relações étnicos-raciais: “Precisamos de uma educação que seja libertadora, crítica, antirracista e que cultive a paz” (Foto: arquivo pessoal)

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