segunda-feira, 20 de maio de 2024

Política rumo à igualdade

No mês em que completa dez anos, Lei de Cotas, que garante mais pretos e pobres nas universidades, deve passar por revisão

29 de agosto de 2022

Edição Luana Sena

Quando ainda era um menino, em Valença do Piauí, no sul do estado, Luís Soares queria terminar a escola e entrar na universidade pública. A cidade com pouco menos de 20 mil habitantes não tinha opções de ensino superior, raros os cursos técnicos. A falta de oportunidades se misturava às condições limitadas da família. Nas pequenas cidades piauienses, os filhos de famílias com baixa renda que buscavam o diploma, precisavam migrar em destino à universidade. Não era tarefa fácil e significava sair da casa dos pais para viver com orçamento no limite. Fora tudo isso, sendo negro, pobre e de escola pública, o dilema era conseguir uma vaga no ensino superior.

Foi em 2013, aos 18 anos, que Luís atravessou pela primeira vez a porta da Universidade Federal do Piauí (UFPI), no campus de Picos, matriculado no curso de Enfermagem. Como muitos brasileiros negros, estudantes de escola pública durante a vida escolar, ele foi beneficiado pela Lei 12.711/12, mais conhecida como Lei de Cotas – que estabelece no país a reserva de 50% das vagas em instituições de ensino federais para grupos historicamente excluídos desses espaços. “Ali me tornei o primeiro da minha família nuclear a buscar o diploma de nível superior numa universidade federal”, relembra à reportagem. 

A lei da qual Luís se beneficiou engloba aqueles com renda familiar de até um salário mínimo e meio por pessoa, autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) e pessoas com deficiência. Em 2022, quando completa uma década, o texto da legislação prevê uma revisão obrigatória das regras para ingresso em instituições federais. 

Enquanto isso, no plenário da Câmara dos Deputados, a tramitação parece estar pronta para ser votada, mas ainda não aconteceu. A bancada esquerdista tem tentado adiar este assunto: a ideia é deixar a votação para o ano que vem, em 2023, posterior ao ano eleitoral, para evitar que as regras sofram retrocesso. A “revisão” no texto base da lei será uma análise para entender como ela funcionou até hoje para, então, discutir se deve ser ampliada, mantida como está ou “enxugada”. Caso não seja reavaliada até dezembro deste ano, na prática, nada deve mudar. 

Na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Kim Kataguiri (União-SP) explanou que, se o debate não acontecer até o final do mês de agosto, as universidades federais estarão “livres” para abandonar as cotas. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) nega a versão do deputado. E reitera: mesmo que a revisão “caduque”, a lei não deve ser extinta.

Quando foi sancionada, sua implementação não aconteceu do dia para a noite. Demorou quase quatro anos para que, pelo menos metade dos institutos e universidades, implantassem as vagas reservadas. Mesmo chegando lentamente, enquanto era inserida, o perfil dos alunos mudava. Ao cruzar dados do Censo de Educação Superior e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), os pesquisadores em educação Adriano Senkevics e Ursula Mattioli descobriram que os estudantes pretos, pardos e indígenas saltavam 10,7 pontos percentuais: a taxa saiu de 27,7% para 38,4%, entre 2014 e 2016. 

As diferenças também são observadas a depender do tipo de curso. Os cursos mais elitizados, por exemplo, passaram a receber alunos – PPI – oriundos da escola pública. Sem dúvida, para os pesquisadores, as cotas chegavam para preencher as universidades federais com estudantes da periferia. 

Conforme o estudo de Senkevics e Mattioli, a graduação de Odontologia é um desses casos mais emblemáticos: de 2012 a 2016 o crescimento foi de 64% na presença de egressos da rede pública em geral e de 125% entre os que são pretos, pardos ou indígenas. “As cotas foram responsáveis por fazerem minorias socialmente excluídas da universidade darem um passo para a ascensão social”, finaliza o estudo. 

Nos últimos anos da década de 90, a população mais empobrecida (com menos de um salário mínimo per capita) era apenas 1% dos universitários. Somente depois dos anos 2000, com políticas públicas de democratização ao acesso ao ensino superior, a situação começaria a mudar. Mas o panorama ainda é dramático: a cada 100 alunos, cinco são pobres.  

Em contrapartida, no mesmo período, de quase duas décadas, a proporção de pretos, pardos e indígenas saltou consideravelmente. Em 1999, essa categoria representava apenas 15% nas universidades públicas, segundo o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), e em 2019, tornou-se 46%. O IBGE revelou que, na última década, esse aumento chegou a 400% em alguns cursos – mas, em outros, a presensa de negros não chega a 30%. São os casos dos cursos de medicina, design gráfico, publicidade e propaganda, além de relações internacionais e engenharia química.

A graduação empreteceu, mas a ‘pós’ não

Paralelamente, na última década, enquanto a lei garantia a entrada de pessoas autodeclaradas preta, parda e indígenas nas instituições, Luís se tornava mestre e doutor. Neste ano, o menino da pacata Valença voltou à universidade onde se graduou – agora, como professor. Quando ingressou na graduação, um ano após sancionada a Lei de Cotas, presenciava as salas da universidade ficando cada vez mais diversas. Seus colegas de turma, em uma universidade interiorana, descortinava pluralidade de um Piauí que abria as portas para o ensino superior. Filhos de agricultores, donas de casa, trabalhadores autônomos preenchiam as cadeiras para serem os primeiros da sua geração com diploma. É o caso de Luís e seus contemporâneos da universidade.

Luís com a sua turma de graduação (Foto: arquivo pessoal)

A mesma coisa não aconteceu quando ingressou no mestrado, no campus de Teresina, para seguir com pesquisa sobre a saúde da criança e do adolescente. Os colegas da capital, no programa da pós, representavam ainda uma universidade que foi realidade décadas atrás, antes da obrigatoriedade legal das costas: pessoas brancas e de parte da elite. A diversidade racial diminuiu ainda mais na sala do doutorado, desta vez no Ceará, mas não somente entre os discentes: a situação era a mesma entre o corpo docente. “No meu mestrado e doutorado, não haviam políticas afirmativas e acredito que isso culminou nesse choque de diferenças que vivi na graduação na última década”, analisa o professor.

Foi somente nos últimos três anos que as cotas na pós-graduação começaram a abranger mais programas: dos 2.817 programas de pós-graduação existentes no país, 54,3% apresentaram ações afirmativas no processo seletivo apenas a partir de 2021 – basicamente o dobro do registrado em 2018 (26,8%). Significa dizer que, há cerca de um ano, uma parcela dos processos não utilizava as ações afirmativas para ingresso nos programas. Atualmente, não existem levantamentos relativos ao número de alunos, conforme levantamento no Inep.

Se por um lado as ações afirmativas cresceram nos níveis de mestrado e doutorado, ainda há obstáculos para garantir a entrada e permanência destes grupos nos programas. Os principais empecilhos costumam ser domínio de idiomas, escassez de bolsa de pesquisa e resistências em determinadas áreas de estudo. 

A Capes e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), em determinados programas, exigem que todos os alunos (cotistas ou não) terminem a graduação dominando algum idioma estrangeiro. A justificativa é promover a internacionalização das pesquisas, alcançando publicações estrangeiras. Porém, alguns programas têm exigido a fluência em outra língua no processo seletivo – em provas eliminatórias. Assim, alunos da rede pública brasileira, que muitas vezes enfrentam problemas básicos na infraestrutura das escolas, não alcançam esses critérios. 

O fomento das bolsas de pesquisa também é um problema para quem almeja uma carreira acadêmica no país. Há nove anos não há reajustes nos benefícios para bolsistas dos programas. A Capes e o CNPq pagam  R$ 1.500 para quem se dedica – exclusivamente – ao mestrado e R$ 2.200 para o doutorado. A bolsa pouco supre as necessidades básicas dos estudantes e, muitas vezes, o investimento na pesquisa – o que acaba desestimulando a parcela menos favorecida dos estudantes a continuarem nos programas. 

Contudo, um agravante desse quadro foi apontado em um levantamento do Observatório de ações afirmativas na pós. Uma espécie de afastamento do efeito das cotas se alastra em determinadas áreas do conhecimento. São os casos das ciências exatas: 

Na mira da revisão

Circulam atualmente 67 projetos de lei e projetos de decretos legislativos, registrados no Congresso Federal, com um único objetivo: sugerir mudanças, desde à ampliação a redução, na Lei de Cotas. O levantamento foi feito pela Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), com última atualização em janeiro de 2022. Entre eles, há também pedidos para adiar o debate das cotas. O principal é do deputado federal Bira do Pindaré (PSB), que pretende empurrar essa discussão para 2032. 

Quando o comitê iniciar, não se sabe como ele pode terminar. Esse é um dos receios entre entidades de ensino, como a Fundação Getúlio Vargas, uma vez que os direitos garantidos nos últimos dez anos pela população negra podem ser enxugados. 

Entre os principais pontos de discussão está a exclusão ou manutenção dos critérios raciais. Entre os projetos, circula um que prevê uma classificação por renda. O argumento é sustentado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados como uma forma de evitar fraudes e “tribunais raciais”. “Essas comissões analisam se o sujeito é negro ou não a partir do formato do beiço ou do nariz”, declarou Kim Kataguiri à imprensa. “São retrocessos que pioram o racismo e levam a constrangimentos”.

A Fundação Getúlio Vargas discorda do argumento de Kataguiri. “Raça, na biologia, realmente é um conceito que não existe. Mas ele é social: todo o nosso sistema se estrutura a partir disso”, afirmou a instituição em nota. 

Por outro lado, se há algo que a lei pode melhorar, a aposta dos pesquisadores Afro Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial) é no reforço do controle de fraudes. A Lei de Cotas hoje, como está, permite critérios de autodeclaração do candidato ou de classificação feita por terceiros. Comitês de heteroidentificação, entretanto, não compõem uma parte obrigatória da lei. Com isso, não foi incomum, eclodirem nos últimos anos casos de fraudes de alunos não-negros tentando burlar o sistema para conseguir uma vaga. 

Outro ponto que pode ser melhorado diz respeito ao investimento e políticas de permanência – auxílio refeição, moradia e benefícios estudantis no geral. Algo que até o momento parece improvável, com os contínuos cortes que as universidades federais sofreram nos últimos anos por parte do governo federal. Somente na UFPI (Universidade Federal do Piauí) e IFPI (Instituto Federal do Piauí) neste ano, o corte chegou a  R$ 7,7 milhões no orçamento – 7,2% do seu custeio anual.

Com a pandemia, os problemas se intensificaram: houve uma evasão da população mais pobre das salas de aulas. No ensino superior, esse número chegou a 18,8%, entre 2020 e 2021, conforme dados do Inep. Por isso, os especialistas apontam que dentro da revisão não seja avaliado cortes ou novas adesões na Lei, mas estratégias para fazer com que os alunos cotistas, dentro das suas realidades, possam permanecer no ensino superior. Caso contrário, histórias como a de Luís, o futuro doutor oriundo de Valência, serão cada vez mais raras dentro das universidades brasileiras.

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