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Deixa a gira girar

Lavagem das escadarias da Igreja São Benedito celebram os 115 anos da umbanda

15 de novembro de 2023

“Meu pai veio da Aruanda e a nossa mãe é Iansã. Oh, gira, deixa a gira girar”.

Todo dia 15 de novembro, há pelo menos 25 anos, os versos da canção de 1970 do grupo baiano Os Tincoãs ressoam no adro da igreja católica São Benedito, na avenida Frei Serafim. Além de marcar o feriado nacional da Proclamação da República, a data celebra o Dia Nacional da Umbanda, reconhecido oficialmente em 2012 pela ex-presidente Dilma Rousseff. É durante essa data que os grupos umbandistas de Teresina realizam a tradicional lavagem das escadarias da igreja São Benedito e uma multidão de senhoras vestidas de branco perfumam o espaço com água de cheiro e varrem as escadas, exaltando um axé que move, ou melhor, que gira.

Na cerimônia, os toques de atabaque e as cantigas de fé ressoam pela Frei Serafim e pelos arredores da Praça da Liberdade, clamando pelo respeito à diversidade religiosa e destacando a celebração das raízes ancestrais da umbanda, que em 2023 completa 115 anos. Pai Dailton de Osaguian, do centro religioso Ilê Oyà Tade, é um dos responsáveis por manter a tradição viva. Ele descreve a lavagem das escadarias da Igreja São Benedito como uma celebração de luta que marca a resistência do povo negro e das religiões de matrizes africanas. “A data é uma homenagem ao dia da umbanda, mas também é um movimento. É um movimento social, é um movimento político, é um movimento cultural, é um movimento religioso”, relata.

A cerimônia de lavagem da escadaria se destaca pela percussão dos atabaques em reverência às entidades como pretos velhos e caboclos na umbanda (Foto: D.G)

A multidão de pessoas vestidas de branco se entrelaça ao som dos cânticos que reverberam preces e exaltações. “Caboclo levanta a bandeira, levanta a bandeira de Oxalá”  é uma dos pontos que ouve por toda a escadaria na voz de Dailton, que comanda a corrente. Acompanhado pela vibração dos corpos, o axé se mistura ao movimento das vassouras habilmente confeccionadas a partir de folhas enquanto o aroma inebriante das ervas aromáticas e das flores permeia o ambiente na forma de água de cheiro. Os turbantes usados pelas mulheres são uma das marcas que evidenciam o sincretismo religioso. A umbanda é uma religião brasileira que tem uma profunda conexão com a ancestralidade e influência africana. Os rituais, incluindo a cerimônia de lavagem das escadas, são dedicados às entidades espirituais, como os Pretos Velhos, que representam a sabedoria e a experiência de vida dos ancestrais africanos. São eles que guiam a Umbanda com sua sabedoria.

Pensando nessa ancestralidade, Pai Dailton explica que o dia 15 de novembro representa uma oportunidade para fortalecer o debate sobre a conscientização religiosa, mas também a conscientização racial, aproveitando o momento do mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra. “O ano todo a gente trabalha essa conscientização contra o racismo, contra a intolerância, contra o preconceito, contra tudo aquilo que não combina com a sociedade feliz, com a sociedade alegre e harmonizada, que é a nossa doutrina de amor, de fé, de esperança, de caridade”, ressalta. 

A lavagem anual das escadarias também é um chamado para que a sociedade passe por uma purificação da consciência, eliminando preconceitos, intolerâncias e atitudes racistas (Foto: D.G)

Para além das raízes africanas, a umbanda é uma religião brasileira que agrega elementos do espiritismo, das religiões indígenas e do catolicismo. O ato de realizar as lavagens das escadarias de uma igreja católica nomeada por um santo negro traz uma simbologia muito forte e está associado a esse sincrestimo religioso, diz Dailton. “É um ato político para a gente lembrar a sociedade sobre a consciência limpa de preconceito, a consciência limpa de atitudes ruins, de perseguição, de intolerância”. A cerimônia também representa uma oportunidade de evidenciar a necessidade de políticas públicas que fortaleçam a comunidade umbandista. “Estamos ali também rogando aos nossos guias e lembrando aos nossos políticos que precisamos de políticas públicas que tragam mais força pro nosso movimento, que ajudem a nossa resistência”, destaca. 

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“Ainda somos alvo”, diz Pai Adilton. Ele explica que os praticantes de religiões de matriz africana, incluindo umbandistas e candomblecistas, enfrentam frequentes casos de preconceito e intolerância. Essa discriminação muitas vezes está institucionalizada em órgãos públicos e privados. No entanto, ele relata tenta romper essa violência pelo luta diária e pela forma que professa a própria fé. “ Nós temos um trabalho dentro dos terreiros para conscientizar os novos adeptos de que é importante aprender sobre a sua cultura, que é importante lutar pela sua resistência, que é importante entender que hoje, graças ao sacrifício dos nossos ancestrais, dos primeiros que lutaram, morreram pela causa, morreram pela cultura e pela religião, nós podemos estar resguardados por leis, por legislações que nos dão um pouco de conforto”.

Os umbandistas recitaram um terço em volta do cruzeiro da igreja, buscando bênçãos de São Benedito e dos Orixás (Foto: D.B)

Uma igreja de raízes afro

Erguida sobre um terreno que servia como local de sepultamento para negros, leprosos, suicidas e indigentes, a narrativa não tão divulgada da Igreja São Benedito oferece uma revelação profunda sobre a sociedade teresinense do século XIX. Essa história, muitas vezes negligenciada, carrega consigo aspectos comportamentais que persistem na sociedade até os dias atuais. O relato mais difundido sugere que Frei Serafim, um italiano originário da cidade de Catânia, foi o responsável pela construção do terceiro templo católico em Teresina, inaugurado em 3 de julho de 1886, após 12 anos de trabalho. No entanto, não foram as mãos do padre que carregaram a alvenaria, a cana industrial cerâmica, as vergas em arco pleno e o piso externo em lajota cerâmica que compõem as torres piramidais que se elevam a mais de quarenta metros de altura.

O trabalho pesado e fundamental para a edificação da igreja veio de mãos negras, do suor de pessoas escravizadas. Um dos motivos para a igreja ser nomeada por uma santo negro é esse. Pai Dailton destaca que a escolha do adro da Igreja São Benedito como local para a cerimônia é fundamentada em diversos motivos. Entre eles, destaca-se a representação de São Benedito, um santo de pele escura e padroeiro dos pretos velhos, uma figura amplamente cultuada na Umbanda. O outro ponto refere-se ao passado da Igreja e a necessidade de lembrar quem ergueu a construção. “ A Igreja de São Benedito foi construída por pessoas escravizadas. Na época, eles construíram para a sociedade branca, para a sociedade rica de de Teresina que estava sendo formada. Após ser construído, os negros não tinham direito de assistir à missa, os negros não tinham direito de usufruir daquele espaço a qual tinha um Santo Negro como referência. Eles não podiam participar da missa, não podiam participar do ato litúrgico da igreja”, comenta.

 

 

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