segunda-feira, 20 de maio de 2024

Do cerrado, uma esperança no combate à Covid-19

Buriti e jaborandi, plantas do Nordeste, podem ser capazes de inibir a doença que já matou mais de 3,84 milhões de pessoas

18 de junho de 2021

Moléculas identificadas em duas plantas típicas da região Norte e Nordeste do Brasil podem mudar a rota de combate ao coronavírus, vírus causador da doença que já matou mais de 3,84 milhões de pessoas no mundo. Em tempos de ataque à produção científica e falta de investimento em pesquisas no Brasil, piauienses e maranhenses descobriram, por meio de estudo computacional, três moléculas do buriti e quatro do jaborandi que possuem potencial para inibir a Covid-19 e podem ser utilizadas para o desenvolvimento de medicamentos contra a doença. “A ideia do inibidor é fazer com que o vírus não penetre na célula para se reproduzir e contaminar o nosso corpo”, explica o professor doutor Francisco da Chagas Lima, coordenador das pesquisas. 

O primeiro estudo teve sua publicação em junho de 2020 e tratou de identificar as moléculas presentes no buriti. Essa pesquisa foi iniciada no período do surgimento dos primeiros casos de Covid-19 no mundo, no final de 2019, e utiliza uma antiga enzima do vírus, Complexo 2GTB-Peptidase, que possui similaridade em torno de 96% com proteína presente no atual coronavírus.

A ideia de iniciar os testes surgiu do jovem pesquisador Allan Nunes Costa, ao lembrar de um forte resfriado que teve há cinco anos, ao qual atribuiu a cura ao óleo de buriti. “Estava andando em uma feira no Sul do Pará, onde moro, quando um senhor comentou sobre os efeitos do óleo de buriti”, relembra. “Eu tomei algumas doses e fiquei bom”, conta o pesquisador. “Isso me marcou muito e me lembrei no início  da pandemia, quando se falava que o coronavírus seria um resfriado, o que sabemos hoje que não é”, acrescenta o professor e doutor em Química.

Além de Allan, a pesquisa contou com a participação de Ézio de Sá e Roosevelt Bezerra, professores do Instituto Federal do Piauí (IFPI) e Janilson Souza, professor do Instituto Federal do Maranhão (IFMA). A ideia fez com que os pesquisadores se adiantassem em relação às pesquisas desenvolvidas em todo o mundo. O estudo assinado por eles foi um dos primeiros publicados e, a partir dele, outros trabalhos surgiram – como o caso da pesquisa com o jaborandi, desenvolvida meses depois pelo mesmo grupo de estudo, o Grupo de Química Quântica Computacional e Planejamento de Fármacos da Universidade Estadual do Piauí.

Os pesquisadores realizam testes com produtos naturais há mais de dez anos, com o objetivo de identificar recursos naturais em plantas típicas do Brasil com potencial farmacológico. “Quando trabalhamos com plantas medicinais típicas do Nordeste e encontramos potencial, a gente atrai sobre essas plantas um valor agregado muito grande, tanto cientificamente quanto economicamente”, reforça o professor Francisco.

No caso do jaborandi, as propriedades dos seus constituintes já eram conhecidas e utilizadas para observar a sua reação com doenças tropicais. Quem iniciou os estudos para identificar possíveis moléculas inibidoras da Covid-19 na planta foi Ézio de Sá, doutorando de Química pela Universidade Federal do Piauí. 

Durante as simulações computacionais, percebeu-se que alguns constituintes da planta apresentavam fortes interações com as enzimas da Covid-19, o que aponta um caminho para as próximas etapas experimentais. “Esse fator pode ser comprovado na realização dos outros testes”, comenta o pesquisador. O trabalho de Ézio Sá é sob orientação do professor Francisco Lima, com participação dos pesquisadores Allan Costa, Janilson Souza, Ricardo Ramos e Rayla Magalhães. Os resultados foram publicados em janeiro de 2021

Para receber a comprovação final de que as moléculas do buriti e do jaborandi podem ser utilizadas e comercializadas como inibidoras da Covid-19, a pesquisa passa por três etapas de estudos: in silico, in vitro e em humanos. Esta última etapa só pode ser realizada com aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

“Para se trabalhar com a Covid-19, diferente de outras doenças, temos esses três estudos, que não incluem o estudo in vivo, ou seja, em animais, porque não encontramos nenhum modelo animal que se possa testar para verificar o comportamento da droga”, explica Francisco das Chagas. 

O passo-a-passo da ciência

A primeira etapa da pesquisa, chamada de testes in silico, são simulações de um sistema biológico feitas em computador, de forma tridimensional. Para isso ocorrer, coloca-se a molécula da planta que se pretende estudar na presença da enzima química que representa o vírus, para verificar a existência ou não de interações entre os dois elementos. A interação é determinante para comprovar a inibição da Covid-19.

“Quando se faz isso, nós estamos quebrando etapas e diminuindo gastos”, explica Francisco Lima. “O jaborandi e o buriti, juntos, possuem 26 moléculas”, continua. “Se fôssemos fazer o estudo de todas elas nas próximas etapas, íamos gastar muito com reagente. Mas, a partir do teste in silico, identificamos que temos sete moléculas com esse potencial”, segue o professor, descrevendo o processo. “Na próxima etapa da pesquisa a gente vai trabalhar apenas com essas sete moléculas e, consequentemente, ter uma resposta mais rápida. Essa é a vantagem”.

Com os resultados satisfatórios das duas plantas durante a primeira etapa, as descobertas ganharam visibilidade e foram destaques internacionais. O grupo recebeu convites feitos pela Academia de Ciências da Ucrânia para apresentar as pesquisas em eventos científicos na Ucrânia e no Japão.  

A pesquisa com o jaborandi recebe financiamento da Sourcetech Química LTDA, empresa paulista que trabalha com o desenvolvimento de matéria-prima e medicamentos de fonte natural. Já a pesquisa com o buriti recebe financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI). O investimento gira em torno de 136 mil reais, que serão investidos nas próximas etapas.

O financiamento de pesquisas como estas pode contribuir para a mudança de realidades. Para Antônio Amaral, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Piauí (FAPEPI), investir em ciência, tecnologia e inovação nunca foi tão necessário. “Neste desafio que enfrentamos, da pandemia, a iniciativa de pesquisadoras e pesquisadores evidenciou que o Brasil é um país de uma imensa rede de pessoas empenhadas no pensamento científico”, reforçou.

A próxima fase das pesquisas com buriti e jaborandi é o estudo in vitro, quando os testes são feitos com tecidos de células isoladas. Essa etapa será realizada a partir da segunda metade do mês de junho pela empresa Quasar Bio Apoio à Saúde, em São Paulo. Ela será acompanhada de novos testes in silico, feitos com a enzima mais atual do coronavírus – isso deve contribuir para que os testes experimentais sejam feitos com mais precisão e rapidez, possibilitando a publicação de um novo artigo, com resultados referentes às duas plantas.

“Utilizamos a mesma metodologia do primeiro teste in silico e aplicamos a enzima do atual coronavírus”, explica Allan Costa. “O mais interessante é que as três moléculas presentes no óleo de buriti, por exemplo, apresentaram bons resultados e nenhuma foi  descartada”, comemora. Se  os resultados forem promissores, a pesquisa avança para a terceira etapa: estudos em um grupo de humanos. “Queremos que os dois projetos ocorram simultaneamente e esperamos que, até agosto deste ano, tenhamos uma grande quantidade de resultados para ter um norte maior”, complementa o orientador da pesquisa, Francisco das Chagas.

Além de gerar expectativa consistente quanto à descoberta de moléculas que podem ajudar milhares de pessoas a não serem contaminadas pelo vírus, os estudos com moléculas naturais presentes em plantas e que não são criadas em laboratórios, garante uma possibilidade menos agressiva ao corpo humano. “Quanto menor a quantidade de drogas e fármacos utilizados para inibir o vírus, melhor o efeito e menos toxicidade ele vai ter e, assim, maior será a adequação daquela molécula no corpo de uma pessoa”, explica Francisco das Chagas Lima. 

Se comprovada sua eficácia ao final da pesquisa, esse vai ser um trabalho com uso de moléculas 100% naturais – que não são de um repositório de fármaco e não foram obtidas sinteticamente. “Isso é um diferencial”, observa Francisco. “Este seria o primeiro trabalho usando moléculas naturais contra a Covid-19”.


A renda que vem do fruto

Quando o pesquisador Allan Costa pensa na importância do estudo sobre a inibição da Covid-19, imediatamente lembra que, muito além de contribuir para a produção de um medicamento, a descoberta pode colaborar com a melhoria de vida das famílias que cultivam buriti e jaborandi, plantas típicas das regiões do Norte e Nordeste do Brasil. 

Os trabalhadores que extraem a matéria-prima das plantas vão poder fornecer diretamente para a indústria farmacêutica. “Isso garantirá renda para essas pessoas, então o impacto econômico também seria nesse nicho”, defende o pesquisador.

Em Palmeira do Piauí, localizada na região Sul do estado, Maria Lusivan Araújo, assim como o pesquisador Allan Costa, também trabalha com o buriti, mas na função de coleta. Todos os anos, entre os meses de maio e outubro, Maria caminha diariamente entre 200 metros e 5 quilômetros junto com o marido, Jonário Batista, para realizar a coleta do buriti em palmeiras que chegam a até 30 metros de altura. Esta é a principal fonte de renda da família.

Em dias bons, com uma “espertada” só, conseguem coletar 200 litros do suco do buriti, extraídos da polpa do fruto de coloração laranja. Após o tratamento de coleta e limpeza, apenas 3 litros de óleo são retirados, sendo cada um vendido por 45 reais para uma empresa de cosméticos no Pará. Através da venda, a família consegue, em média, um salário mínimo e meio por mês – algo que ainda não atende às expectativas. “O trabalho é muito pesado para o potencial do buriti”, comenta Maria.

Por meio da cooperativa Buriticoop, 17 famílias se sustentam do extrativismo de buriti que, além do óleo vegetal, utilizam a planta como medicamento. Quando tem tosse ou precisa tratar algum ferimento no corpo, Maria se cura com o buriti. O efeito desintoxicante da planta também serve para tratar mordidas de cobra – algo sabido por aqueles que vivem de se aventurar na mata. Esses ensinamentos ela aprendeu com a mãe, que aprendeu com os avós, e assim vai passando adiante como uma preciosa herança familiar. 

No Piauí, os buritizais, locais úmidos onde crescem os buritis, são símbolos de resistência. Para muitas famílias, essa planta é fonte de alimentos, abrigo, renda e preservação. Nada nele se desperdiça: a extração gera a polpa, utilizada na produção de doces, geleias, vinhos e sorvetes, além da polpa desidratada. O óleo serve para uso culinário, produção de cosméticos e combustível. A semente também é aproveitada para botões e adornos. Do talo, leve e poroso, se fabricam utensílios e até móveis. As folhas adultas vão para a cobertura de casas e as mais novas, fonte de fibras e cordas, servem para a confecção de cestos, bolsas, redes e esteiras.

Na comunidade quilombola Olhos D’Água dos Negros, em Esperantina, a 183km de Teresina, os buritizais estão localizados na região onde se concentravam as fazendas. “Até 1996, quando teve início a conquista da terra do regime escravocrata, a população tinha que dividir metade do trabalho com o patrão”, explica Erismar Costa, quilombola e técnico agrícola. Ele também aponta que a resistência simbólica da tradição do buriti é quase exclusivamente sustentada por mulheres, que compõem a cooperativa local. 

A retirada do buriti na região quilombola acontece de maneira equilibrada, com respeito à natureza, sem a utilização de agrotóxicos e extração respeitando o período de colheita. As plantações de buriti contribuem ainda para a umidade do solo, assoreamento dos rios e manutenção da biodiversidade local, uma vez que oferecem habitação e fonte de alimento para diversos animais. Por estas características e em respeito ao Código Florestal, Lei nº12.651/12, os buritizais são áreas de preservação permanente.

Para o pesquisador Clemilton da Silva Ferreira, o buriti tem o mesmo potencial energético do açaí, palmeira comum na região da Amazônia, além das propriedades medicinais. Entretanto, a extração dessa planta pode estar sendo prejudicada em razão do constante fluxo de habitação, criação de gado, agricultura e práticas irregulares. “É preciso entender a valorização desse produto que é natural, nosso e rico em vitaminas e proteína”, reforça o pesquisador.

A economia do jaborandi

O jaborandi sempre foi uma planta bem conhecida no meio farmacêutico pelo seu uso medicinal – antes mesmo de ter suas moléculas identificadas com potencial para inibir a Covid-19. A planta, encontrada exclusivamente nos estados do Piauí, Maranhão e Pará possui, em suas folhas, a pilicarpina, um princípio utilizado pela indústria oftalmológica  para o controle do glaucoma.

Pelo seu potencial fitoterápico e exclusividade, o nitrato e o cloridrato de pilocarpina já foram respectivamente o oitavo e o segundo insumos farmacêuticos mais exportados no mundo nos anos de 2014 e 2007. Uma pesquisa realizada com a planta evidencia que o insumo chegou a movimentar cerca de 8,9 milhões de dólares, com base no relatório da Secretaria de Comércio Exterior (SEMEX), e aponta ainda a cidade de Parnaíba como a maior unidade fabril no ano de 1997.

Cristina Ropke, diretora de inovação radical do Centroflora, empresa produtora de extratos botânicos, óleos essenciais e ativos isolados para indústria farmacêutica, explica que a planta possui potencial econômico para o Piauí. Mas que, em sua visão, faltam investimentos maiores. “Por isso, no momento não temos como competir no mercado farmacêutico com Índia e China”, conclui.

Desde antes de serem descobertas moléculas que podem inibir a Covid-19 e salvar milhares de vidas, essas plantas típicas da região Norte e Nordeste, já eram fonte de renda para muitas famílias. A ciência aliada à tecnologia e economia contribuem o desenvolvimento do Piauí e para a mudança de realidade de todos os que estão envolvidos na cadeia produtiva do buriti e do jaborandi.

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Categorias: Reportagem

Aldenora Cavalcante

Jornalista, podcaster e mestra em comunicação pela Universidade do Porto.

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