O ponteiro maior do relógio passava um pouco do número seis, acusando que faltava meia hora para as três da tarde, quando todos ouviram os disparos. Três tiros, na sequência, a queima-roupa. Assustados e sem entender de onde vinha o barulho, clientes e funcionários de um supermercado tentaram se proteger de um assalto ou tiroteio. Mas as balas disparadas tinham alvo certo: Ana Valeska de Moraes, uma mulher de 47 anos, que morreu na hora.
O homem responsável pelos disparos é Wagner Dias de Freitas, de quem Ana tentava se separar desde 2019. Na ocasião do crime, testemunhas relataram que ela sofria constantes ameaças, chegando ao ponto de pedir escolta para amigos e conhecidos por temer as atitudes do ex-companheiro. Após ferir Ana, Wagner virou a arma e atirou contra si, morrendo também no local.
O crime aconteceu pouco mais de um mês depois de um caso com características semelhantes, ocorrido no dia 8 de maio em uma chácara na zona sul de Teresina. Um casal foi encontrado morto e as marcas davam indícios de que o homem havia assassinado a mulher e logo depois tirado a própria vida. O crime, caracterizado como feminicídio, segue em investigação.
Ana entrou para as estatísticas de mulheres brutalmente assassinadas, geralmente por ex-maridos ou namorados de quem tentam se desvencilhar. No segundo ano de um contexto pandêmico, onde muitas mulheres não se sentem seguras ou protegidas em casa, as denúncias de agressões e violências caíram nas delegacias, em número inversamente proporcional ao aumento dessas violências. O sábado, 12 de junho, data em que tradicionalmente se comemora o Dia dos Namorados, foi marcado por mais um crime de feminicídio no Piauí.
Piauí: insegurança para as mulheres
O Piauí contabiliza 18 mulheres que morreram de forma violenta e intencional até maio de 2021. Destas, 4 foram tipificados como feminicídio, segundo dados das estatísticas criminais da Secretaria de Segurança Pública do Piauí. Os casos de feminicídio são regulamentados pela Lei nº. 13.104/15, conhecida como Lei do Feminicídio, voltada para criminalizar o assassinato de mulheres cometido em razão do gênero. A lei considera a razão para o enquadramento quando o crime envolve violência doméstica e familiar e o menosprezo ou discriminação à condição de mulher, e é considerada um importante marco na tipificação de crimes comedido contra mulheres.
“Anteriormente, muito embora estudos já qualificassem o fenômeno, os casos eram tratados como homicídios ‘passionais’ motivados pelo ciúme e/ou traição da mulher, não se vislumbrando relações de poder e de controle sobre os corpos femininos”, explica Eugênia Villa, delegada de Polícia Civil do Estado do Piauí e Subsecretária de Segurança Pública do Estado, ao refletir sobre os desafios impostos pela violência contra a mulher dentro da pesquisa sobre a vitimização de mulheres no Brasil. “Na atualidade ainda se vislumbram cenários que desqualificam a mulher tornando-a vulnerável em virtude de sua trajetória biográfica e comportamental”, acrescenta a delegada.
O feminicídio é a consequência máxima de uma série de violências sofridas pelas mulheres dentro de algum relacionamento abusivo. Em dados mais recentes, uma em cada quatro brasileiras acima de 16 anos sofreu algum tipo de violência ao longo dos últimos 12 meses no Brasil, o que corresponde a 17 milhões de mulheres. Desse total, 25% apontaram a perda de renda e emprego como os fatores que mais influenciaram na violência que vivenciaram em meio à pandemia de Covid-19. Quem mais sofre de violências física, psicológica ou sexual, são mulheres negras e jovens de 16 a 24 anos. Os dados fazem parte da terceira edição da pesquisa “Visível e Invisível”, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública junto ao Instituto Datafolha e com apoio da Uber.
Muito além de retratar o perfil da vítima, a pesquisa também aponta que em 7 em cada 10 casos o autor da violência era uma pessoa conhecida: o namorado, ex-namorado, o pai ou a mãe, padrasto ou madrasta, irmãos ou filhos. Além disso, metade das violências experimentadas pelas mulheres no último ano ocorreram em casa, um total de 48,8%. As situações de violência sofridas pelas mulheres também são atravessadas pela pandemia. Ainda de acordo com a pesquisa, 50,8% das mulheres entrevistadas que sofreram violência acreditam que a pandemia influenciou o agravamento da violência que sofreram, e a dificuldade de garantir autonomia financeira é fator de vulnerabilidade à violência mais destacada.
Em razão da pandemia, as denúncias realizadas nas delegacias especializadas de atendimento à mulher caíram 7%, enquanto as denúncias realizadas pelo aplicativo Salve Maria aumentaram 20% em comparação ao ano anterior, segundo dados referentes a 2020 do relatório divulgado pela Secretaria de Segurança Pública do Piauí.
1 comentário
Jacqueline Lima Dourado · 14 de junho de 2021 às 19:54
Eu sempre me questionei pela falta de reportagens que analisassem esses crimes. Que fugissem do valor da hora.
Parabéns. Continuem apurando. A violência doméstica ( crismavas, idosos e mulheres) tem sido silenciada. Parabéns pelo texto.