sexta-feira, 17 de maio de 2024

Estupro: uma questão cultural

Quanto maior a situação de vulnerabilidade, maiores as chances de uma mulher ser vítima

24 de agosto de 2021

Edição Luana Sena

Uma mulher corre nua entre as ruas. Outra pula do segundo andar de um prédio. No intervalo de um mês Teresina foi cenário para fugas desesperadas de mulheres frente a uma situação de violência desesperadora: ambas foram vítimas do crime de estupro.

O primeiro caso, mais recente, aconteceu na zona Norte da capital. A vítima conseguiu escapar do acusado antes da consolidação do crime sexual. No outro episódio, a vítima, que trabalha como diarista, foi violentada enquanto limpava o apartamento do advogado Jefferson Moura Costa. Sob ameaças de morte e intimidações de novos abusos, ela pulou da sacada em busca de ajuda. 

Os casos não são únicos e, muito provavelmente, não serão os últimos. Com base nos dados do Fórum Brasileio de Segurança Pública, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. A violência sexual, no entanto, possui nuances que estão para além de estatísticas criminais.

O estupro é uma violência ligada ao gênero – a maioria dos corpos abusados são de mulheres. Isso porque existe uma estrutura que se perpetuou ao longo da história, que coloca o feminino em situação de inferioridade. Pesquisas apontam que a dominação sexual de mulheres em sociedades antigas estava associada a demonstração de poder, algo que permanece enraizado na sociedade. De acordo com a mestra em Direito e coordenadora do grupo Anajás, Jéssica Teles de Almeida, que define a cultura do estupro como “um conjunto de hábitos reiterados difundidos por gerações, envolvendo a objetificação da mulher, fruto de uma cultura de poder”, atos como a descredibilização e culpabilização da mulher pela violência, seja por sua vestimenta ou pelo horário, são aspectos que solidificam esse mecanismo.

A especialista pontua ainda que a violência sexual foi, durante anos, uma violência institucionalizada por negligência e omissão. “A mulher era obrigada, culturalmente, a se subjugar à conjunção carnal, até mesmo com o emprego de violência”, explica a pesquisadora. “O marido alegava exercício regular do direito”. Outro aspecto agravante da cultura do estupro está no recorte racial e classe.

No Brasil, um dos principais aspectos identitários brasileiros, a miscigenação, tem raízes nessa violência. Ao sequenciar o material genético de 1.247 brasileiros em diferentes partes do país, o projetoDNA do Brasil”, observou que os genes herdados por via paterna são estritamente ligados aos europeus, enquanto a herança genética ligada por via materna são originários de mulheres negras e indígenas. 

Aspecto consolidado na fala da pesquisadora Elaine Nascimento, coordenadora-adjunta da Fiocruz Piauí. “Esse país e o estado foram construídos com base no estupro”, afirma a doutora com pesquisas sobre gênero, violência contra a mulher e feminicídio. Os séculos se passaram e a violência sexual contra as mulheres negras nas senzalas se perpetuou na casa dos patrões. “A inicialização sexual dos filhos dos patrões acontecia com as empregadas domésticas, com estímulo do pai e consentimento da mãe”, diz Elaine.

No caso das empregadas domésticas, categoria formada majoritariamente por mulheres negras, a preocupação em ir a casa de uma pessoa desconhecida, principalmente na modalidade “diária”, sem um vínculo empregatício consolidado, é por si só um fator de risco. Pedrina Dias de Sousa, empregada doméstica e diretora do Sindicato das Empregadas Domésticas em Teresina, relata que não há dados específicos sobre esse tipo de ocorrência mas, acredita na existência de subnotificações. 

“As mulheres nos procuram mais para questões trabalhistas”, explica, acreditando que a omissão pode estar atribuída a necessidade de ter um trabalho. O caso envolvendo o abuso da diarista gerou indignação e revolta em Pedrina e outras tantas mulheres do sindicato. “É muito triste porque ela precisava do dinheiro”.

Pandemia e subnotificação

A violência sexual não se resume somente ao estupro. De acordo com a Lei Maria da Penha, esta violência é caracterizada por qualquer conduta que constranja a mulher a manter ou participar de relação sexual não desejada mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. Isso engloba: forçar matrimônio, gravidez ou prostituição; limitar ou anular o exercício sexual e reprodutivo da mulher; impedir o uso de métodos contraceptivos ou obrigação a outros atos sexuais que causem desconforto ou repulsa.

A pesquisadora Elaine Nascimento pontua que quanto maior a situação de vulnerabilidade de uma mulher, maiores as chances de violências contra ela. A pandemia e a ausência de transporte público que assola especificamente a cidade de Teresina, as denúncias de violência foram dificultadas – muitas mulheres não conseguem acessar os serviços públicos de segurança, como as delegacias especializadas, aumentando as subnotificações dos casos. 

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Categorias: Reportagem

Camila Santos

Graduanda em jornalismo na Universidade Federal do Piauí.

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