Desde que se entendeu por gente, Maria Cristina da Silva se sentia incomodada quando, por qualquer situação, era preciso dar seu nome completo. O nome é curto, composto apenas dessas quatro palavras, somente com o sobrenome da mãe. Conforme ia ficando mais velha, percebeu que o vazio não era apenas no documento. O pai biológico, que já havia “recusado” a paternidade quando a mãe estava grávida, também se eximia de arcar com as responsabilidades financeiras que a infância e adolescência de Maria exigiam.
Foi preciso um teste de DNA para comprovar a paternidade e, judicialmente, ele arcar com as pensões e custos. Ter o nome do pai na certidão de nascimento é um direito fundamental garantido na Constituição. Dele depende, inclusive, a possibilidade de postular pedido de pensão alimentícia em nome da criança e é essencial em casos de herança. Mesmo conhecendo o pai, Maria Cristina não quis mudar o nome e, aos poucos, o incômodo com o nome na infância também sumia. “Sou parte de uma parcela de brasileiros criada por mães solos e pais invisíveis”, declarou à reportagem.
Nos últimos quatro anos, o número de crianças sem o nome do pai na certidão cresceu em disparada: em 2021, quase 100 mil crianças foram registradas apenas com o nome da mãe. Em 2019, o índice de crianças apenas com o nome da mãe no registro civil cresceu de 5,5% para 5,9%. Já em 2020, o índice subiu para 6% e, este ano, a porcentagem está em 6,3%.
Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). A Associação acredita que a ausência de pais tenha se acentuado ainda mais em 2020, quando eclodiu a pandemia da Covid-19. Entre os motivos, a Arpen aponta que a crise sanitária potencializou o distanciamento de casais que não viviam juntos e as complicações dos serviços de cartório durante o período.
Mesmo com a retomada dos serviços, os atos de reconhecimento de paternidade chegam ao terceiro ano consecutivo em queda. Ao todo, foram contabilizados 13.297 reconhecimentos em 2021, uma baixa de 1,6% em relação ao mesmo período do ano passado. Em 2019, foram 35.234 atos registrados, que caíram para 23.921 em 2020.
O Piauí segue a tendência nacional. Em 2020, das 40.058 crianças registradas no estado, 2.586 não tinham a presença do pai no documento. Em 2021, a média aumentou em 6,5%: das 43.157, a ausência paterna aparece em 2.831 dos registros.
Um levantamento feito pelo oestadodopiaui.com, com registros até setembro de 2022, observou que quase duas mil crianças tinham no documento apenas o nome da mãe. O número já contabiliza mais da metade dos casos do ano anterior. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de paternidade – após os nascimentos – segue minúsculo: em 2020, foram feitos apenas oito reconhecimentos; em 2021, o número dobrou, mas foram apenas 17. Neste ano, no estado, até o mês de setembro, foram feitos apenas seis reconhecimentos.
Aborto masculino
O abandono paterno, muito mais que nas documentações, é tratado por especialistas como a crescente do “aborto masculino”. Esse abadono da criança pelo pai é o que, muitas vezes, desencadeia a busca de mulheres pelo aborto, que encontram entraves na lei e perigos de procedimentos clandestinos, na busca pela interrupção da gravidez. O termo é utilizado para contrapor ao aborto feminino, tratado dentro das repartições legislativas como um tema tabu.
Na ausência paterna, fragilidades socioeconômicas atingem em cheio a vida de mulheres e seus filhos, aponta a pesquisadora e advogada Samira Skaf. Em períodos de recessão econômica, como o período de crise sanitária, mães solo acabaram ficando mais expostas aos problemas sociais. Por isso, auxílios emergenciais cobrem, sobretudo, chefes de família que sem trabalho e rede de apoio ficam à mercê da informalidade e à margem na linha da pobreza.
“Não se trata de obrigar o genitor a amar o filho a partir da emissão da sentença”, reflete Skaf. “Uma condenação e medidas mais rígidas para o abandono é para, sobretudo, prestar condições para que as vítimas de abandono não sofram mais uma violência e agressão causada pela ausência da paternidade”, complementa à reportagem.
O “aborto masculino” ainda é um termo que passa por questionamentos, principalmente na legislação. Para a lei, o termo mais correto seria “abandono parental”. Isso porque, o termo aborto se refere à interromper a gravidez – considerado, em muitos casos, um crime e carregado de condenações éticas e também religiosas.
O equívoco técnico no uso do termo “aborto masculino” ocupa espaço nas discussões sobre direito de família. Para a lei, são conceitos que não se assemelham propriamente, muito embora a palavra aborto seja utilizada, neste caso, para ilustrar o quanto a sociedade reprova interromper a gravidez da mulher, mas não questiona nem discute o fenômeno do abandono parental.
A pesquisadora Gabriela Rodrigues aponta como a questão do abandono parental não está no mesmo rol de preocupações quando a discussão gira em torno do aborto feminino. Enquanto isso, já chega a quase 11 milhões o número de brasileiras responsáveis, sozinhas, pela criação dos seus filhos, segundo o IBGE. “O tema anda muito longe de ser uma pauta emergencial”, destaca a estudiosa em assuntos de gênero e economia, à reportagem. “Mas basta olhar para qualquer periferia, repleta de mães solos, para perceber o quanto esse assunto deveria ser a pauta urgente”.
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