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Filho chora, mas o pai não vê

Em dois anos, a ausência de paternidade cresceu em registros civis no Piauí; quase duas mil crianças foram registradas sem o nome do pai

14 de setembro de 2022

Edição Luana Sena

Desde que se entendeu por gente, Maria Cristina da Silva se sentia incomodada quando, por qualquer situação, era preciso dar seu nome completo. O nome é curto, composto apenas dessas quatro palavras, somente com o sobrenome da mãe. Conforme ia ficando mais velha, percebeu que o vazio não era apenas no documento. O pai biológico, que já havia “recusado” a paternidade quando a mãe estava grávida, também se eximia de arcar com as responsabilidades financeiras que a infância e adolescência de Maria exigiam. 

Foi preciso um teste de DNA para comprovar a paternidade e, judicialmente, ele arcar com as pensões e custos. Ter o nome do pai na certidão de nascimento é um direito fundamental garantido na Constituição. Dele depende, inclusive, a possibilidade de postular pedido de pensão alimentícia em nome da criança e é essencial em casos de herança. Mesmo conhecendo o pai, Maria Cristina não quis mudar o nome e, aos poucos, o incômodo com o nome na infância também sumia. “Sou parte de uma parcela de brasileiros criada por mães solos e pais invisíveis”, declarou à reportagem.

Nos últimos quatro anos,  o número de crianças sem o nome do pai na certidão cresceu em disparada: em 2021, quase 100 mil crianças foram registradas apenas com o nome da mãe. Em 2019, o índice de crianças apenas com o nome da mãe no registro civil cresceu de 5,5% para 5,9%. Já em 2020, o índice subiu para 6% e, este ano, a porcentagem está em 6,3%. 

Os dados são da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). A Associação acredita que a ausência de pais tenha se acentuado ainda mais em 2020, quando eclodiu a pandemia da Covid-19. Entre os motivos, a Arpen aponta que a crise sanitária potencializou o distanciamento de casais que não viviam juntos e as complicações dos serviços de cartório durante o período.

Mesmo com a retomada dos serviços, os atos de reconhecimento de paternidade chegam ao terceiro ano consecutivo em queda. Ao todo, foram contabilizados 13.297 reconhecimentos em 2021, uma baixa de 1,6% em relação ao mesmo período do ano passado. Em 2019, foram 35.234 atos registrados, que caíram para 23.921 em 2020.  

O Piauí segue a tendência nacional. Em 2020, das 40.058 crianças registradas no estado, 2.586 não tinham a presença do pai no documento. Em 2021, a média aumentou em 6,5%: das 43.157, a ausência paterna aparece em 2.831 dos registros.

Um levantamento feito pelo oestadodopiaui.com, com registros até setembro de 2022, observou que quase duas mil crianças tinham no documento apenas o nome da mãe. O número já contabiliza mais da metade dos casos do ano anterior. Ao mesmo tempo, o reconhecimento de paternidade – após os nascimentos – segue minúsculo: em 2020, foram feitos apenas oito reconhecimentos; em 2021, o número dobrou, mas foram apenas 17. Neste ano, no estado, até o mês de setembro, foram feitos apenas seis reconhecimentos. 

Aborto masculino

O abandono paterno, muito mais que nas documentações, é tratado por especialistas como a crescente do “aborto masculino”. Esse abadono da criança pelo pai é o que, muitas vezes, desencadeia a busca de mulheres pelo aborto, que encontram entraves na lei e perigos de procedimentos clandestinos, na busca pela interrupção da gravidez. O termo é utilizado para contrapor ao aborto feminino, tratado dentro das repartições legislativas como um tema tabu. 

Na ausência paterna, fragilidades socioeconômicas atingem em cheio a vida de mulheres e seus filhos, aponta a pesquisadora e advogada Samira Skaf. Em períodos de recessão econômica, como o período de crise sanitária, mães solo acabaram ficando mais expostas aos problemas sociais. Por isso, auxílios emergenciais cobrem, sobretudo, chefes de família que sem trabalho e rede de apoio ficam à mercê da informalidade e à margem na linha da pobreza.

“Não se trata de obrigar o genitor a amar o filho a partir da emissão da sentença”, reflete Skaf. “Uma condenação e medidas mais rígidas para o abandono é para, sobretudo, prestar condições para que as vítimas de abandono não sofram mais uma violência e agressão causada pela ausência da paternidade”, complementa à reportagem.

O “aborto masculino” ainda é um termo que passa por questionamentos, principalmente na legislação. Para a lei, o termo mais correto seria “abandono parental”. Isso porque, o termo aborto se refere à interromper a gravidez – considerado, em muitos casos, um crime e carregado de condenações éticas e também religiosas. 

O equívoco técnico no uso do termo “aborto masculino” ocupa espaço nas discussões sobre direito de família. Para a lei, são conceitos que não se assemelham propriamente, muito embora a palavra aborto seja utilizada, neste caso, para ilustrar o quanto a sociedade reprova interromper a gravidez da mulher, mas não questiona nem discute o fenômeno do abandono parental.

A pesquisadora Gabriela Rodrigues aponta como a questão do abandono parental não está no mesmo rol de preocupações quando a discussão gira em torno do aborto feminino. Enquanto isso, já chega a quase 11 milhões o número de brasileiras responsáveis, sozinhas, pela criação dos seus filhos, segundo o IBGE. “O tema anda muito longe de ser uma pauta emergencial”, destaca a estudiosa em assuntos de gênero e economia, à reportagem. “Mas basta olhar para qualquer periferia, repleta de mães solos, para perceber o quanto esse assunto deveria ser a pauta urgente”.

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Categorias: Reportagem

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