Cara pessoa que me lê agora,
Há dias, como hoje, em que penso sem parar em tudo ao mesmo tempo. É difícil controlar a mente. Mensagens apitam, sirenes tocam, os carros buzinam. E eu sinto saudade do som do mar.
Você viu o caos que Zuckerberg provocou no mundo? Sete horas sem conexão eletrônica e todo mundo meio que voltou pra pré-história. Eu nem sabia que telefone também servia para fazer ligações.
Tudo mudou tão rápido. Só 114 anos nos separam do primeiro telefone no Piauí – agora a gente encerra a conversa com um simples “vdc” ou “é sobre isso” (Isso o que?). Mas, essa semana conheci pessoas que estão na contramão do movimento de encurtar mensagens. Elas não querem economizar o tempo. Pelo contrário – elas querem gastá-lo desenhando letras sob uma folha em branco. Palavra por palavra, frase por frase: e ali vão os sentimentos em um pedaço de papel.
Pegue um café, esqueça o relógio e leia essa história,
de peito aberto,
Camila Santos
De: Ilaete Barros
ligação via whatsapp
Ilaete Barros tem 56 anos e um ar delicado de quem gosta de prestar atenção. Ela me conta que há pouco mais de três décadas, pessoas sem acesso a aparelhos telefônicos no Piauí – ítem que era caro e comum apenas a famílias abastadas – costumavam se comunicar através de correspondências. Escrever cartas era a melhor forma de mandar notícias a parentes distantes: no envelope iam comunicados de nascimento a morte de familiares.
Ilaete lembra direitinho o formato das mensagens. Isso porque, na juventude, ela foi responsável por escrever inúmeras delas endereçadas a diferentes partes do país. Em 1991, o município de Flores do Piauí, onde morava, tinha uma taxa de analfabetismo de 53% – nos povoados da região, esse índice era ainda maior. E era em Pajeú, uma dessas localidades, onde Ilaete morava com a família, que ela, apta a ler e escrever com certa desenvoltura, ajudava vizinhos a contatar familiares distantes através das cartas.
“Eles chegavam dizendo que iam testar o que aprendi na cidade e, quando eu terminava a carta e lia, eles diziam ‘você disse tudo o que eu queria’”, relembra. “Eu me sentia muito bem em poder ajudar”. Reportar as emoções de outra pessoa nem sempre era uma tarefa fácil, mas a jovem compreendia a importância de manter viva relações e amenizar saudades. “Minhas cartas sempre começavam com uma saudação, logo depois vinha a informação e eu sempre fazia questão de deixar um verso, um poema porque eu era muito romântica”, diz sorrindo.
A correspondência por cartas também impactou pessoalmente a vida da jovem florense – até hoje ela se recorda da primeira declaração de amor que recebeu via cartão-postal no ano em que debutou. “15 anos de idade de uma flor: você! Parabéns!”, um verso que nunca esqueceu, mesmo após perder toda sua coleção de correspondências.
Anos mais tarde, quando Ilaete morava em Itaueira e seu namorado – hoje, marido – em São Paulo, as conversas por telefone já amenizavam a distância – mas, olhar um para o outro em tempos onde sequer se imaginava a possibilidade de uma chamada por vídeo, só era possível através do envio de fotos por correspondência.
O hábito de escrever cartas se manteve com ela até pouco mais dos 20 anos. Hoje, professora de Literatura, tenta estimular seus alunos do Ensino Médio a praticarem a escrita e a busca por conexão. “As pessoas escrevem de forma técnica, sem emoção”, critica a romântica Ilaete, para quem a pressa e a falta de pausas para sentir impossibilita a criação de laços reais. “Não precisa fazer uma carta ou colocar nos correios, mas pode escrever uma declaração sem ser mensagem feita, sem emojis”, observa.
De: Patrícia Pilar
conversa com cafezinho
A sala de aula pode ser um tormento para alguns estudantes – foi para Patrícia Pilar, há 20 anos, na escola, por ser muito tímida. Aos 12 e com dificuldade de se socializar com os colegas, resolveu usar o papel e a caneta para se expressar por meio de cartas. O hábito persiste até hoje. “É engraçado porque eu obrigo meus amigos, marido e familiares que geralmente não gostam de escrever para escreverem cartas para mim em datas comemorativas”, revela.
Além da troca com pessoas conhecidas e amigos distantes, Patrícia também participa de clubes de troca de cartas, onde as pessoas enviam seus endereços postais para que cada membro receba e envie cartas de desconhecidos. “Por mês, escrevo para cerca de 10 pessoas”, comenta. “Costumo sentar duas horas e as cartas têm cerca de cinco páginas, depende muito, mas o intuito é ir se conhecendo através das mensagens”, explica.
Cada clube de cartas tem uma política própria de funcionamento. É possível encontrar grupos que detalham os hobbies, interesses e limitam idades entre os remetentes. Em outros, apenas a caixa postal e o nome são compartilhados entre os integrantes. O intuito é resgatar a troca de cartas e efetivar relações de maneira genuína.
Para quem continua a escrever cartas e enviar correspondência mesmo diante de tantos estímulos tecnológicos, as palavras têm o poder mágico de aproximar. “Eu não deixaria de escrever nem se ninguém mais escrevesse para mim”, comenta. “Eu tenho essa necessidade e gosto de sentir cada pedacinho, letra e carinho que recebo no papel – algo que uma mensagem eletrônica não conseguiria expressar”, defende. “Se quiser escrever e não sabe por onde começar, basta colocar o que vem direto do coração”.
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