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Hábito de escrever cartas encontra respaldo na nostalgia e prática de autoconhecimento

26 de outubro de 2021

Edição Luana Sena

Cara pessoa que me lê agora,

Há dias, como hoje, em que penso sem parar em tudo ao mesmo tempo. É difícil controlar a mente. Mensagens apitam, sirenes tocam, os carros buzinam. E eu sinto saudade do som do mar.

Você viu o caos que Zuckerberg provocou no mundo? Sete horas sem conexão eletrônica e todo mundo meio que voltou pra pré-história. Eu nem sabia que telefone também servia para fazer ligações.

Tudo mudou tão rápido. Só 114 anos nos separam do primeiro telefone no Piauí – agora a gente encerra a conversa com um simples “vdc” ou “é sobre isso” (Isso o que?). Mas, essa semana conheci pessoas que estão na contramão do movimento de encurtar mensagens. Elas não querem economizar o tempo. Pelo contrário – elas querem gastá-lo desenhando letras sob uma folha em branco. Palavra por palavra, frase por frase: e ali vão os sentimentos em um pedaço de papel. 

Pegue um café, esqueça o relógio e leia essa história,


de peito aberto,
Camila Santos 

 

De: Ilaete Barros
ligação via whatsapp

Ilaete Barros tem 56 anos e um ar delicado de quem gosta de prestar atenção. Ela me conta que há pouco mais de três décadas, pessoas sem acesso a aparelhos telefônicos no Piauí – ítem que era caro e comum apenas a famílias abastadas – costumavam se comunicar através de correspondências. Escrever cartas era a melhor forma de mandar notícias a parentes distantes: no envelope iam comunicados de nascimento a morte de familiares. 

Ilaete lembra direitinho o formato das mensagens. Isso porque, na juventude, ela foi responsável por escrever inúmeras delas endereçadas a diferentes partes do país. Em 1991, o município de Flores do Piauí, onde morava, tinha uma taxa de analfabetismo de 53% – nos povoados da região, esse índice era ainda maior. E era em Pajeú, uma dessas localidades, onde Ilaete morava com a família, que ela, apta a ler e escrever com certa desenvoltura, ajudava vizinhos a contatar familiares distantes através das cartas. 

“Eles chegavam dizendo que iam testar o que aprendi na cidade e, quando eu terminava a carta e lia, eles diziam ‘você disse tudo o que eu queria’”, relembra.  “Eu me sentia muito bem em poder ajudar”. Reportar as emoções de outra pessoa nem sempre era uma tarefa fácil, mas a jovem compreendia a importância de manter viva relações e amenizar saudades. “Minhas cartas sempre começavam com uma saudação, logo depois vinha a informação e eu sempre fazia questão de deixar um verso, um poema porque eu era muito romântica”, diz sorrindo.

A correspondência por cartas também impactou pessoalmente a vida da jovem florense – até hoje ela se recorda da primeira declaração de amor que recebeu via cartão-postal no ano em que debutou. “15 anos de idade de uma flor: você! Parabéns!”, um verso que nunca esqueceu, mesmo após perder toda sua coleção de correspondências.

Anos mais tarde, quando Ilaete morava em Itaueira e seu namorado – hoje, marido – em São Paulo, as conversas por telefone já amenizavam a distância – mas, olhar um para o outro em tempos onde sequer se imaginava a possibilidade de uma chamada por vídeo, só era possível através do envio de fotos por correspondência. 

Envio de fotos por cartas era maneira de amenizar a saudade. (Arquivo pessoal)

O hábito de escrever cartas se manteve com ela até pouco mais dos 20 anos. Hoje, professora de Literatura, tenta estimular seus alunos do Ensino Médio a praticarem a escrita e a busca por conexão. “As pessoas escrevem de forma técnica, sem emoção”, critica a romântica Ilaete, para quem a pressa e a falta de pausas para sentir impossibilita a criação de laços reais. “Não precisa fazer uma carta ou colocar nos correios, mas pode escrever uma declaração sem ser mensagem feita, sem emojis”, observa.

Ilaete: escrevia cartas para pessoas não alfabetizadas no interior do Piauí (Arquivo Pessoal).

De: Patrícia Pilar
conversa com cafezinho

A sala de aula pode ser um tormento para alguns estudantes – foi para Patrícia Pilar, há 20 anos, na escola, por ser muito tímida. Aos 12 e com dificuldade de se socializar com os colegas, resolveu usar o papel e a caneta para se expressar por meio de cartas. O hábito persiste até hoje. “É engraçado porque eu obrigo meus amigos, marido e familiares que geralmente não gostam de escrever para escreverem cartas para mim em datas comemorativas”, revela.

Além da troca com pessoas conhecidas e amigos distantes, Patrícia também participa de clubes de troca de cartas, onde as pessoas enviam seus endereços postais para que cada membro receba e envie cartas de desconhecidos. “Por mês, escrevo para cerca de 10 pessoas”, comenta. “Costumo sentar duas horas e as cartas têm cerca de cinco páginas, depende muito, mas o intuito é ir se conhecendo através das mensagens”, explica.

Cada clube de cartas tem uma política própria de funcionamento. É possível encontrar grupos que detalham os hobbies, interesses e limitam idades entre os remetentes. Em outros, apenas a caixa postal e o nome são compartilhados entre os integrantes. O intuito é resgatar a troca de cartas e efetivar relações de maneira genuína. 

 

Patrícia: clube resgata troca afetiva de cartas (Foto: Camila Santos)

Para quem continua a escrever cartas e enviar correspondência mesmo diante de tantos estímulos tecnológicos, as palavras têm o poder mágico de aproximar. “Eu não deixaria de escrever nem se ninguém mais escrevesse para mim”, comenta. “Eu tenho essa necessidade e gosto de sentir cada pedacinho, letra e carinho que recebo no papel – algo que uma mensagem eletrônica não conseguiria expressar”, defende. “Se quiser escrever e não sabe por onde começar, basta colocar o que vem direto do coração”.

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Categorias: Reportagem

Camila Santos

Graduanda em jornalismo na Universidade Federal do Piauí.

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