quarta-feira, 15 de maio de 2024

Monumentos e violências históricas

Espaços públicos levam nomes de personalidades ligadas à escravidão

29 de setembro de 2021

Caminhar pelas cidades e se deparar com nomes de personalidades em placas, praças e monumentos, não é algo incomum. Os espaços se tornam referências da memória e história local que, muitas vezes, é desconhecida pelas pessoas que transitam ali. Alguns pesquisadores, entretanto, consideram que os nomes escolhidos para serem homenageados têm biografias contraditórias e podem ser passíveis de contestação.

Nos últimos anos, houve uma ampliação no debate sobre as memórias que despertam questionamentos com relação a presença e a visão do dominador na construção histórica dos espaços. Um Projeto de Lei 5.296/20, está tramitando na Câmara dos Deputados e tem o intuito de proibir a construção em todo território nacional de bustos e estátuas em homenagem a pessoas ligadas à escravidão de negros e indígenas, além de monumentos que possam cultuar tais nomes. O projeto também defende a retirada daqueles já existentes em espaços públicos.

Além de ser comum, espaços públicos levarem nomes de pessoas que marcaram a história com práticas de extermínio, as escolhas têm um perfil definido: a maioria são homens. As ruas brasileiras, conforme dados de 2019 do IBGE, mostram que para cada logradouro que homenageia uma mulher, há quatro que destacam homens. Mas quem realmente predomina nos espaços públicos são figuras da Igreja Católica: há ao menos 57,5 mil endereços que homenageiam santos e santas.

No Piauí não é diferente: das 27 unidades da federação, o estado tem o menor percentual do país – apenas 13% das ruas homenageiam mulheres. Em contrapartida, o Amapá é o estado com maior presença de nomes femininos nas ruas, mas o número ainda é pequeno: elas estão em apenas 23% das placas de rua (desconsiderando, do percentual total, as ruas que levam nome neutro).

Para o pesquisador em escravidão colonial, Solimar Oliveira, o Piauí, em particular a capital, possui uma fragilidade do reconhecimento em monumentos públicos, mesmo para a história dominante – como ele se refere a história vista através daquele que ocupa posições de poder e não das classes populares, ou seja, os trabalhadores. “Percebe-se mais esse reconhecimento na denominação de espaços públicos, como praças e logradouros do que em monumentos”, explica.

Mesmo assim, o pesquisador admite que a maioria dos símbolos piauienses expressam o reconhecimento social na perspectiva da história dominante e que grande parte das praças, ruas e bairros de Teresina são nominados com personagens que fazem parte desse recorte.

Entre ruas que possuem a predominância desses personagens, um exemplo é a estátua de Conselheiro Saraiva, presidente da província e responsável pela transferência da capital de Oeiras para Teresina. Seu monumento está localizado na Praça da Bandeira, no centro, e é a primeira intervenção oficial da cidade, inaugurada em 1850, caracterizada como marco da fundação da capital.  “O processo de construção de imagem não se desassocia de modo nenhum do processo político de construção da cidade e o questionamento dos símbolos questiona também todo esse processo”, afirma.

De acordo com o pesquisador, há poucos monumentos que expressam os personagens da história das classes populares do ponto de vista histórico, mas enaltece os que existem, como o monumento ‘Negros Mercadores’, localizado na Avenida Raul Lopes. Executado pelo artista plástico Francisco Fialho em 2014,  a intenção foi retratar os heróis anônimos e negros do Piauí que ajudaram com sua mão-de-obra escrava e barata a construir Teresina – hoje nenhum deles dá nome a nenhuma dessas obras.

Monumentos carregam apagamento histórico

No aniversário de 168 de Teresina, em 2020, um ato-performance foi realizado em frente ao monumento imponente em uma rotatória localizada entre duas das principais avenidas da cidade. Com a ação “Banho de Sangue”, as artistas Luzia Amélia e Lúcia Oliveira incitavam a revisão histórica dos monumentos e instalações da capital. Ali se nutria uma discussão sobre dois personagens controversos, com prática colonialista retratados no monumento “El Matador”, do escultor Carlos Martins, o Carlão.

Monumento “El Matador”, do escultor Carlos Martins, o Carlão (Foto: Tássia Araújo)

A obra é uma denúncia ao extermínio indígena e racista, baseado em um poema de H.Dobal, sobre a dizimação feita pelos colonizadores brancos. Comumente relacionada ao Domingo Jorge Velho,  chefe da tropa que destruiu o Quilombo dos Palmares. Vez ou outra também associada ao tenente João do Rego Castelo Branco, líder de missões contra povos originários. 

Para a pesquisadora de questões de gênero e raça e ativista do movimento negro, Halda Regina, a presença de símbolos que carregam laços com sujeitos ligados a períodos sensíveis na história, negam a existência e o respeito ao povo negro. “Elementos são necessários para contar e recontar a nossa história, mas não é simbólico para nós ter uma estátua de um bandeirante que dizimou uma população negra e indígena”, afirma.

Os monumentos se impõem a percursos de povos originários, onde a história começa a ser contada não a partir do povo negro, mas dos brancos que se colocam como desbravadores e revolucionários. “A gente precisa eliminar desse país, monumentos e mitos que destroem a população e a história negra”, declara.

Além das críticas realizadas por pesquisadores, em relação a monumentos e logradouros em homenagem a personagens que refletem uma violência histórica, há questionamentos em relação ao hino do Piauí. Para alguns historiadores, a 3ª estrofe do hino faz menção poética a dois bandeirantes e apologia a violências cometidas por eles contra os povos nativos no respectivo período histórico.

Para alguns historiadores, 3ª estrofe do hino do Piauí faz menção às violências cometidas contra povos nativos

O pesquisador piauiense, Roberto Alencar, em sua pesquisa “A incoerência histórica do hino do Piauí”  analisa que o hino contém um dos mais graves erros históricos cometidos pelo poeta Da Costa e Silva. Os dois bandeirantes citados em tal estrofe são Domingos Jorge Velho e Domingos Afonso Mafrense. Estes personagens históricos tiveram uma missão totalmente oposta à de promover o trabalho e a paz. “São considerados os principais exterminadores dos povos indígenas das terras brasileiras”, pontua.

É preciso ressignificar o espaço público

A denominação de logradouros – espaços públicos como ruas, avenidas, praças e passeios –  é uma das atribuições do Poder Legislativo, que geralmente dá a esses locais nomes de pessoas já falecidas e que tiveram alguma importância histórica ou atuação importante na comunidade como uma espécie de homenagem póstuma.

Para Solimar Oliveira, ressignificar o espaço público trata-se de um debate político. Ele cita como exemplo o estado laico, que é assegurado em lei, mas o próprio estado é o primeiro a infringir. “A maioria dos prédios públicos estão ornados com algo religioso”, pontua. A formação da identidade nacional/estadual ou municipal passa sempre por escolhas de heróis, símbolos, hinos e histórias contadas e criadas pelo olhar de dominadores.

Segundo Solimar, a questão sobre as manifestações e os pedidos de retirada ou realocação dos monumentos e renomeação de logradouros tende a ser um projeto meramente burocrático pois no legislativo já há oficialmente a tendência de dar nomes de personagens da classe dominante. “Às vezes há uma flexibilização mas, em regra, o poder público está sempre reforçando a presença desses personagens”, afirma. “Defendo a iniciativa de ressignificação, mas concretamente será mais uma ação burocrática”, finaliza.

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Categorias: Reportagem

1 comentário

Hilton Luis Farias de Araújo · 1 de outubro de 2021 às 11:07

Excelente texto nos leva a refletir sobre a história, cultura, política e estigar varias discussões para formação de uma nova identidade nacional/estadual e municipal.

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