segunda-feira, 29 de abril de 2024

“No Callem” piauiense

Bares adotam estratégias de acolhimento às vítimas de assédio, enquanto estado quer implantar protocolo espanhol

16 de fevereiro de 2023

Em outubro de 2021, a fotógrafa Rosinea Costa divertia-se em uma casa de shows quando um homem que ela não conhecia aproximou-se e, de maneira rude, fez propostas indelicadas no seu ouvido, agarrando-a. “Não havia o menor contexto, a menor intimidade”, relembra. “No momento, a única reação que eu tive foi de pedir que ele se retirasse da minha mesa”, relembra. A festa, para ela, terminou ali. 

A experiência de Rosi não é única e integra o repertório de muitas mulheres, para quem os espaços de festas nem sempre são cenários de lazer e diversão. “Quantas de nós não já passamos por situações assim e nos sentimos tão vulneráveis?”, questionou em post de desabafo que fez nas redes sociais. As estatísticas comprovam: nove em cada 10 mulheres já foram vítimas de algum tipo de assédio sexual. No ônibus, na balada, no trabalho ou na igreja: não há espaço imune a esse tipo de violência. 

O assédio mais frequente são as cantadas, assobios e comentários desrespeitosos das quais pelo menos 22,3 milhões de mulheres já declararam terem sido vítimas. Acontece com a fisioterapeuta Kamilla Vilanova, desde que era adolescente. “Minha mãe saía muito comigo, até por medo mesmo”, relata. Ela conta que em shows e blocos de carnaval costuma ser mais frequente, como toques e tentativas de beijo sem consentimento. “Tinha um cara que me seguia em festas, mesmo eu com meu namorado”, conta à reportagem. “Até hoje tenho medo”.

Combater a violência às mulheres em espaços de lazer tem sido um desafio para muitas sociedades. Na Espanha, por exemplo, a Lei da Garantia Integral da Liberdade Sexual, aprovada no ano passado, é uma das mais vanguardistas do mundo no que se refere aos direitos das mulheres. Ela endurece as penas de crimes e agressões sexuais e ficou conhecida como “Só o sim é sim”.

A principal mudança na legislação diz respeito à ideia de consentimento. Com a Lei da Liberdade Sexual, práticas sexuais sem consentimento são consideradas agressões, que não envolvem necessariamente o uso de força. Intimidação ou uso de bebida alcoólica, por exemplo, são situações em que se considera que a vítima não tinha condições de consentir.

 

Por um rolê seguro

“Se você se encontra em um alguma situação de risco, este estabelecimento está pronto para prestar auxílio”, diz o cartaz colado no restaurante Grand Cru, localizado na zona Leste de Teresina. A mensagem usa o nome de um drink fictício e uma sobremesa como código para que mulheres possam pedir ajuda a garçons ou funcionários. “Uma pessoa treinada da nossa equipe lhe encontrará no banheiro feminino em 10 minutos”.

A casa adotou a estratégia há uns dois anos, e tem o intuito de apoiar mulheres em encontros ruins, situações de agressões verbais, físicas e psicológicas. “Nunca aconteceu nada, mas acreditamos que é importante ter uma equipe de atendimento preparada para lidar com essas situações”, conta Jonas de Sousa, gerente do local.

Boate adota protocolo de atendimento à mulheres vítimas de assédio (Foto: reprodução)

Antes de espalhar a mensagem – que estão fixadas em espaço restrito às mulheres – garçons, caixas, recepcionistas e todos os funcionários que lidam diretamente com atendimento ao público passaram por um treinamento. “A vítima vai ser ouvida e acolhida por uma mulher da nossa equipe”, diz o gerente. “Ela pode ficar constrangida em relatar o que ocorreu a outro homem”. O código, no entanto, nunca foi usado por nenhuma cliente.

Bar vai investe em parcerias para conscientizar sobre direitos das mulheres (Foto: reprodução)

Estratégia similar foi adotada na boate Apollo 11. Os casos mais comuns, segundo um dos empresários sócio do local são de importunações. “Quem trabalha na noite presencia algumas situações”, comenta. “Talvez pela nossa cultura, muitas mulheres preferem não expor”, diz, informando que a boate adota um protocolo próprio para atendimento dessas vítimas. “Toda nossa equipe de segurança é treinada para agir dando credibilidade à queixa da mulher”, comenta por telefone. “O próximo passo é afastá-la do agressor que, em casos mais leves, é expulso do ambiente”, explica. “Se for um episódio mais grave ele é conduzido a uma sala onde permanecerá vigiado aguardando as autoridades acionadas”.

Coletivo Não é Não! distribui tatuagens temporárias contra o assédio (Foto: Nada Filmes)

Na Casa Barro, centro cultural localizado na região central da capital, os responsáveis investiram em parcerias com coletivos e órgãos públicos para garantir um carnaval com segurança e respeito aos clientes. “Um deles é o coletivo Não é Não!, que disponibilizou as tatuagens temporárias contra o assédio, e que vamos distribuir em todas as festas desse período”, contou Suellen Morais, produtora e gerente de marketing do local. Além disso, a Secretaria Municipal de Políticas Públicas para Mulheres e o Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência Esperança Garcia farão uma ação de conscientização no bloco do dia 20. “Assédio não é brincadeira, a gente tem que acolher a vítima e denunciar”.

 

Um protocolo piauiense

Inspirado no protocolo espanhol “No Callem”, o Piauí deve lançar seu próprio protocolo de atendimento a mulheres vítimas de algum tipo de violência nos espaços de lazer. O intuito é treinar as pessoas que lidam com o público nesses lugares, até profissionais da Segurança Pública, para saber lidar com o atendimento à vítima. 

O protocolo já vinha sendo discutido na Secretaria de Segurança Pública do Estado, mas teve a discussão acelerada após o assassinato da estudante de jornalismo Janaína Bezerra, vítima de violência sexual. Além de campanhas educativas em bares, restaurantes e espaços de lazer, a iniciativa visa ajudar no combate à violência contra as mulheres.

O grupo de trabalho formado quer melhorar o atendimento da rede de proteção – que envolve a Secretaria de Mulheres, de Segurança Pública, Assistência Social e Saúde – complementando a ação das delegacias de Proteção dos Direitos da Mulher, 190 e Patrulha Maria da Penha. “O que estamos construindo não é propriamente novo, esses serviços já existem, o que vamos é uniformizar os procedimentos”, explica Zenaide Lustosa, secretária de estado das mulheres.

O protocolo deve ser lançado no próximo dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, mas até lá, encontra o desafio de ser adaptado à realidade do estado. “Estamos fortalecendo a rede de atendimento nos municípios, capacitando profissionais da segurança para um trabalho mais humanizado”, explica a gestora. “No posto de saúde, por exemplo, se uma mulher chegar com claras evidências de violência, o próprio profissional pode e deve acionar a política”, exemplifica. “Muitos não fazem e acabam sendo as mesmas desculpas: caí da escada, bati na porta, e fica por isso mesmo”. 

Segundo a secretária, cerca de 150 profissionais, entre policiais civis, militares e corpo de bombeiros, estão sendo preparados para a adoção do protocolo. Além disso, o grupo de trabalho tem a meta de visitar 100 municípios para verificar a estrutura e levar informações sobre a atuação da Rede de Proteção às Mulheres. Atualmente, o Piauí possui 12 Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher – as DEAMs -, quatro delas localizadas em Teresina. A previsão é que o atendimento especializado seja estendido para todos os territórios de desenvolvimento. 

Enquanto a ação articulada dos órgãos não começa, a iniciativa privada pensa em meios de tornar seus espaços ambientes seguros e divertidos para as mulheres. “Temos o nosso protocolo próprio, mas penso que uma estratégia unificada, com todos os bares e restaurantes, renderia mais proteção”, opina Tonny Kerley. “É um problema muito difícil”, comenta Zenaide. Sabemos que um protocolo, apenas, não vai resolver”, completa. “Mas é um passo importante na prevenção e acolhimento”. 

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Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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