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O céu, a terra e o divino

Há quase 70 anos a festa do Divino movimenta uma procissão de fé e devoção na cidade de Da Costa e Silva

04 de agosto de 2021

Edição Luana Sena

A visita a Amarante marca o início de um momento diferente para o Experiência Piauí. Primeiro porque agora passo a escrever eu mesmo essas histórias e será bem comum que, para além das histórias e dos causos, estejam por aqui a forma com que eu senti o que vi e ouvi. Segundo, porque conhecer o céu que encantou Da Costa e Silva foi um encontro com o propósito que fez nascer esse projeto.

Ainda em Teresina, eu e Luana Sena, fomos conhecer o professor Melquíades Barroso. Morador da cidade, mas filho de Amarante. Com os cabelos grisalhos, protegidos por uma boina vermelha, o professor, como passamos a chamá-lo, guarda no olhar um brilho e um entusiasmo peculiar quando o assunto é contar a história de sua cidade natal.

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Ali, no sofá de sua casa, ele nos preparou para o que encontraríamos em sua terra: “Quando vocês avistarem Amarante vão ficar impressionados com a beleza”, alertou. “Vão pensar que estão em outro lugar do mundo”. Esqueceu ele de nos contar que seria uma experiência também em outro lugar no tempo.

O primeiro olhar foi um misto de céu completamente azul e sem nuvens e a serra do outro lado do rio Parnaíba. Daí em diante lembrei da história contada pelo professor: das barcas que chegavam pelo rio no porto em Amarante para abastecer Oeiras, a primeira capital. As ruas estreitas feitas para passar as carroças, que hoje mal acomodam um carro, onde se enfileiram as casas “geminadas” com portas e janelas que dão para a rua e guardam as linhas de uma arquitetura de outro século, me fizeram sentir o cheiro e o som de outros tempos.

A parada no Museu do Divino nos coloca de vez no trilho da história que fomos conhecer: a Festa do Divino de Amarante. Essa história nos foi contada por dona Mundinha, que nos recebe no terraço de sua casa, que dá para a porta da rua Coronel João Ribeiro, no bairro Areias. A voz serena só é interrompida pelo barulho das motos que cortam o asfalto e nos lembram que ainda estamos aqui em 2021. Os gestos suaves e gentis do corpo franzino e negro, que abrigam uma fé imensurável no Divino Espírito Santo, começaram a nos contar como as novenas de Mãe Dedé, sua tia, se transformaram na festa que reúne milhares de amarantinos pelas ruas da cidade, ano após ano.

Com o retrato de mãe Dedé a tiracolo, ela relata que, o que hoje é uma grande festa da cidade e de todo o estado, começou como manifestação da fé da pessoa que ela descreve como “uma das melhores que já existiram”. Com uma fé inabalável no Divino, mãe Dedé fazia suas novenas, que se encerravam no domingo de Pentecostes – uma missa pela manhã, um almoço em família e o mais famoso e saboroso chocolate quente, servido depois do terço “na boca da noite”.

Durante a semana, visitando as amigas para rezar o terço, mãe Dedé ia recebendo as contribuições das pessoas que no domingo iriam para sua casa. Por longos anos, esse foi o ritual de Dedé para louvar o Divino e alimentar sua fé. Toda a fé de Dedé ganhou outra dimensão quando seu sobrinho, Marcelino, nasceu “com a saúde fraca”. Numa das noites de novena, mãe Dedé enrolou o menino na bandeira do Divino e fez o pedido que mudou o curso da história dela, do menino, de Mundinha e de todos os fiéis de Amarante: “Se for da vontade do Divino, que esse menino tenha saúde”. Bom… o que podemos dizer é que Marcelino está vivo até hoje e é bem conhecido também em Teresina, como um dos professores fundadores do Instituto Camilo Filho, faculdade bastante renomada em nosso estado.

Depois de uma vida dedicada à fé, mãe Dedé, já nos seus últimos dias, entrega a “precatória” – como costumam chamar as dívidas sagradas passadas por gerações –  de realizar a festa aos dois novos divineiros, Mundinha e Marcelino. “Eu disse que ia fazer a festa. Mas ia fazer do meu jeito. Sem pedir as doações pro almoço e pro chocolate de domingo porque eu não gosto de pedir”, diz Mundinha, sorrindo. O problema foi resolvido, nos conta ela, porque “a festa virou a vida de Marcelino e ele não deixa faltar nada”. Desde então, a festa só cresceu e foi ganhando o formato da festa do Divino com a procissão imperial, do mesmo modo como acontecia em Portugal, com a rainha Isabel.

Em tempos de pandemia, Mundinha lamenta que a festa não tenha ocorrido nos últimos dois anos e guarda a esperança de que “para o ano, vai dar certo”. E já nos convida para ver o que descreve como uma coisa linda, “o tanto de gente descendo nas ruas”.

Foi atendendo a um pedido dela que a missa deixou de ser realizada na rua lateral de sua casa e foi para a igreja matriz da cidade. “Não gostava que dissessem que era a ‘missa da Mundinha da dona Dedé’”, explica. “Tem que ser a missa de toda a comunidade. E na igreja a missa é de todo mundo”. Antes de me despedir pergunto o que ela espera dessa geração de jovens. “Tem muitos que são bons, que tem fé, que participam da festa e que podem continuar”, acredita.

Deixo a casa de dona Mundinha e a cidade de Amarante com a fé renovada na força do propósito. É muito provável que mãe Dedé tenha deixado esta existência sem a menor noção de que seu ritual de fé seria incorporado por toda a cidade e pela igreja que ela cultuava. Cada terço, cada novena, cada dia, cada domingo de Pentecostes, cada ano, mãe Dedé colocava seu amor e sua vida a serviço do propósito de sua fé. E hoje, esse propósito vive nos terços, nas orações e nas promessas de milhares de outras pessoas. Levo de Amarante a memória do céu, das ruas, do rio. E uma convicção inabalável de que cada piauiense merece viver um céu na sua terra – se existir um céu sobre a terra.

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Categorias: Experiência

Pedro Veras

Especialista em inovação em políticas públicas. Head de inovação em Governos do The Hub . Publisher de oestadodopiaui.com

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