segunda-feira, 20 de maio de 2024

O peso das lágrimas negras 

Como o preconceito racial e o machismo desumanizam e matam homens pretos

24 de novembro de 2023

“Me ver pobre, preso ou morto já é cultural”, lança Mano Brown em Nego Drama, a canção mais famosa do Racionais MC’s presente no disco “Nada Como Um Dia Após o Outro”, de 2002. Apesar de ter sido lançada há mais de 21 anos, a música continua a ilustrar questões contemporâneas enfrentadas por homens, especialmente os negros. A saúde mental deles é profundamente impactada pela interseção do machismo e do racismo, o que os leva a sofrer em silêncio, sem buscar uma ajuda. Em outros versos, o rap confirma e ressoa essa realidade: “O trauma que eu carrego pra não ser mais um preto fudido […] A alma guarda o que a mente tenta esquecer […] Sempre a provar que sou homem e não um covarde”.

A Semana da Consciência Negra, celebrada em novembro, coincide com o movimento internacional Novembro Azul, que visa conscientizar sobre a saúde masculina. Essa coincidência destaca a importância de abordar especificamente a saúde dos homens negros. As repercussões do machismo na sociedade se tornam ainda mais violentas quando se entrelaça com o racismo. Mulheres negras e de outras etnias não brancas enfrentam a opressão tanto do machismo quanto a violência racial em uma sociedade enraizada na exploração dos povos indígenas e africanos. Embora essas experiências de opressão se manifestem de maneiras e intensidades diferentes por aquelas vivenciadas por mulheres, o machismo aliado ao racismo também afeta negativamente a vida dos homens negros.

Embora a saúde mental desses homens seja discutida em letras de rap há algumas décadas, é essencial expandir o debate, considerando como o machismo e o racismo atuam para impedir que eles expressem suas angústias e tratem suas dores. Essa necessidade é ainda mais forte ao considerar que jovens negros no Brasil têm uma probabilidade significativamente maior de cometer suicídio do que seus pares brancos, especialmente entre os adolescentes do sexo masculino. De acordo com dados do Ministério da Saúde, em 2016, ano mais recente da pesquisa, o risco de suicídio na faixa etária de 10 a 29 anos foi 45% maior entre aqueles que se identificam como pretos e pardos em comparação com os brancos. No grupo de jovens e adolescentes negros do sexo masculino, a diferença é ainda mais marcante, com uma probabilidade 50% maior de suicídio em comparação com jovens brancos da mesma faixa etária.

Versos mais atuais, como os do cantor Emicida em AmarElo, canção de 2019 em parceria com Majur e Pabllo Vittar, evidenciam o sofrimento de homens pretos de forma ainda mais nítida: “Ponho linhas no mundo, mas já quis pôr no pulso.[…] Sem o torro, nossa vida não vale a de um cachorro, triste. […] Hoje Cedo não era um hit, era um pedido de socorro”A supressão de emoções, incentivada pelo machismo, pode resultar em problemas psicológicos, como depressão. Combinado com o racismo e a percepção pública da masculinidade negra, muitas vezes estigmatizada por estereótipos, o peso sobre homens negros se torna ainda mais intenso. O psicólogo Nathan Cunha explica que a masculinidade tóxica é um modelo de reprodução da masculinidade pautado na violência, na não comunicação e no não afeto. Esse modelo condena a demonstração da vulnerabilidade e estimula à agressão e à violência. “Essa imagem criada do homem provedor, do homem forte, do homem que não chora, do homem que não tem vulnerabilidade, do homem que não se abre, desse homem preto mais fechado é uma questão que dificulta a busca por ajuda”, relata.

“A gente vai revitimizando a vítima à medida em que esse sofrimento é negligenciado e o homem preto é silenciado”

Várias macroestruturas moldam o atual modelo de sociedade, incluindo o patriarcado. Elementos como o machismo, o racismo e o capitalismo exercem influências significativas na vida das pessoas, especialmente aquelas à margem desses poderes. Nathan ressalta que as violências provenientes desses sistemas geram traumas que demandam reconhecimento e tratamento. No entanto, ele observa que essas macroestruturas operam de modo a impedir a expressão dessas dores. “Ocorre a deslegitimação do sofrimento psíquico, onde ele não é considerado e não é visto. Isso gera mais trauma. A gente vai revitimizando a vítima à medida em que esse sofrimento é negligenciado e o homem preto é silenciado”, ressalta.

“Se eu não consigo entender aquele sentimento, reconhecer aquele sentimento, dar um nome para aquele sentimento, como que eu vou comunicá-lo?”

Os estigmas impostos sobre o corpo masculino negro, tais como a hipersexualização, a ideia de agressividade, de perigo e de resistência frente ao cansaço, criam uma expectativa de que homens pretos estejam sempre disponíveis para suportar a dor. Demonstrar emoções é visto pela sociedade como uma fraqueza, enquanto a sensibilidade e a vulnerabilidade não são permitidas ou esperadas para esses corpos. Nathan observa que essas concepções, profundamente enraizadas, resultam em resistência à expressão de emoções, afetando a saúde mental, as relações interpessoais e a convivência consigo mesmo, levando-os a se fecharem em seus próprios sofrimentos. “Alguns sentimentos são negados. A pessoa nega aquele sentimento, não consegue expressar aquele sentimento, não consegue se acolher frente àquele sentimento, àquela emoção. E isso faz com que a comunicação também fique prejudicada. Se eu não consigo entender aquele sentimento, reconhecer aquele sentimento, dar um nome para aquele sentimento, como que eu vou comunicá-lo?”, afirma.

Para além das barreiras simbólicas, as dificuldades do acesso à saúde dificultam a busca por ajuda. Nathan destaca que as condições financeiras e as limitações das políticas públicas, que ainda não abarcam todos os que buscam atendimento, dificultam o acesso apropriado ao acompanhamento psicológico. “Pensando nessa interseccionalidade entre classe e raça, a maioria da população pobre é a população preta, então esse acesso é muito dificultoso, nem todo mundo tem conhecimento e condição de buscar tanto uma psicoterapia como um atendimento psiquiátrico dentro do serviço de saúde mental”, explica.

A comunicação sobre os próprios sentimentos é algo revolucionário, especialmente em uma sociedade que dificulta ou limita a capacidade dos homens negros de se comunicarem plenamente. Para Nathan, falar sobre a saúde mental de homens pretos é um passo para a mudança. “O machismo e o racismo estão adoecendo as pessoas, adoecendo as populações as quais atingem. Pessoas estão sendo mortas. Pessoas estão se matando. Lançar uma luz para esses temas é um alerta, é um caminho para a conscientização”, relata.

Comunicação e psicologia preta

Apesar do aumento significativo nos índices de adoecimento psicológico na população preta ao longo dos anos, os espaços de diálogo e troca voltados para a promoção da saúde não acompanharam esse crescimento. Diante desse cenário, Nathan busca fomentar esse atenção e abordagem comunicativa a partir do coletivo Adrinkra Psicologia, cujo propósito é facilitar esses diálogos e, por meio dessa interação, explorar coletivamente alternativas que promovam autonomia e saúde mental. A alta letalidade entre jovens negros, apontada pela Política Nacional de Saúde Integral da População Negra do Ministério da Saúde, destaca-se como um preocupante determinante social. Juntamente, mulheres negras enfrentam altos níveis de medicalização, enquanto doenças evitáveis, como hipertensão, diabetes e doenças cardiovasculares, são mais prevalentes na população negra. Esses dados evidenciam a relação crucial entre a promoção do bem-estar, o acesso à saúde e as questões raciais.

O Adrinka teve como início uma roda de conversa acerca da saúde mental dos homens negros, realizada nesta quinta-feira, dia 23 de novembro, no Memorial Esperança Garcia (Foto: Arquivo Pessoal Nathan Cunha)

A partir dessa realidade, o Adrinka foi idealizado pela psicóloga Maria Clara após estudos voltados para as necessidades e perspectivas da comunidade negra. Colaborando com profissionais da psicologia, das artes e de outras áreas da saúde, o projeto busca compreender as demandas existentes e contribuir para a implementação de ações práticas de acolhimento e cuidado, como a realização de rodas de conversa e outras discussões. A ideia é iniciar um debate e enfrentar as desigualdades e repercussões que o racismo e o machismo impõem na comunidade em geral.

 

 

 

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