Numa tarde quente de verão, o terraço da casa na Rua Coelho de Resende se enche de cor. A acrílica sobre tela vai delineando rostos de nordestinos tristes, num colorido vibrante, paradoxal. É a mais profunda expressão desse artista que abre seu ateliê para oestadodopiaui.com entrar – embora o Piauí, mesmo, sempre tenha estado ali.
Raimundo Nonato de Oliveira nasceu no dia 11 do último mês do ano de 1949. Filho de pedreiro e uma dona de casa, viveu a primeira infância em São Miguel do Tapuio. Os mais de 200 km até Teresina foram percorridos, boa parte, no jacá ao lombo de um jumento – um tipo de transporte até hoje comum no interior do Nordeste.
A segunda viagem marcante de sua trajetória seria de avião – o registro no primeiro passaporte marca a ida à França, nos anos 60, quando, ainda adolescente, ganhou uma bolsa de estudos na Europa. Por lá, Nonato foi contemporâneo de grandes artistas como Pablo Picasso – o piauiense foi ajudante do co-fundador do cubismo e com ele conviveu até o dia de sua morte, em 1973.
As memórias desse tempo estão por todos os cantos da casa onde nos recebe para um café. Na parede da sala, emoldurado, um desenho feito por Picasso em 1º de maio de 1968 traz uma caricatura do amigo pintor. “A filha dele, Paloma, tem uma tela minha”, conta, orgulhoso. Nas fotografias da época, um Nonato com cabelo black power, diferente da figura que conhecemos hoje, surge sério. “Eu botava cinco pregos num pedaço de madeira para pentear o cabelo”, diz apressado. “Era moda”.
Se Teresina apresentou-lhe as cores, a Europa apresentou-o para o mundo. O menino que dava forma às cenas cotidianas observadas no sertão, levou para o outro continente um estilo extremamente regional. “Eles achavam meu trabalho diferente de tudo o que se fazia por lá”, recorda o artista, enquanto folheia recortes de jornais e revistas que ele mesmo arquiva com zelo e cuidado em uma pasta.
Um dos mais recentes arquivos é sobre a exposição “Meninas Madrid Gallery”, que ocupou as ruas da capital da Espanha em dezembro do ano passado. Nonato Oliveira foi um dos três artistas brasileiros escolhidos para participar da mostra, inspirada no quadro “Las meninas”, de Diego Velazquez. Quem passou pela Plaza de Chueca, na região central de Madrid, na ocasião, viu uma escultura de 1,80 de altura, uma menina trajando um vestido especial: estampado de folclore piauiense.
Talvez você, leitor, conheça seus painéis – são mais de 30 só em Teresina, dos catalogados em espaços como muros de escolas, igrejas e outros prédios públicos. Há ainda uma quantidade inestimável em casas de amigos – há pouco tempo um morador encontrou, embaixo do reboco de sua residência, um painel original assinado pelo artista que, prontamente, se animou em restaurá-lo.
Naquela tarde quente como as cores de Nonato, a conversa é mediada por Sergio Donato, seu filho mais velho. Há duas décadas, o artista foi diagnosticado com problemas neurológicos devido a intoxicação por tinta óleo, doença comum que costuma acometer pintores – Portinari e o próprio Picasso foram vítimas disso. Reflexos na cognição, no entanto, nem de longe afetam a mente inquieta de Nonato, que lembra com precisão datas e detalhes de cada acontecimento.
Aos 73 anos, Nonato continua observando o mundo com os olhos de criança curiosa. Inquieto, acorda todo dia às quatro da manhã – apesar do apreço pelo amarelo de sol, é antes dos primeiros raios despontarem que ele começa a pintar.
A entrevista a seguir é uma tentativa de apreender um talento do tamanho e da cor do Piauí.
O que é arte para você?
É a minha profissão. Aprendi escultura com meu tio, Dezinho (considerado precursor da arte santeira no Piauí), que fazia peças de madeira e ex-votos. Ele também pintava, fazia várias coisas. Morávamos todos ali na Vermelha. Lá foi meu primeiro ateliê. Eu fiz ginásio na escola técnica, fiz edificações eletromecânicas, fiz cursos de marcenaria, carpintaria. Estudei Economia, Matemática e fiz até o 4º ano de Direito. Deixei tudo para continuar pintando. Se eu não fosse artista ficaria só cuidando dos meus filhos e netos.
Como foi a sua vinda para Teresina?
Nasci em 11 de dezembro de 1949, em São Miguel do Tapuio. Vim para Teresina com 11 para 12 anos – no lombo de um jumento. Só em Valença que pegamos um ônibus. De São Miguel do Tapuio para Valença, eu e meu irmão fomos cada um em um jacá (cesto produzido geralmente de palha de carnaúba, muito utilizado para transporte em animais pelo sertão). Ele era dois anos mais velho que eu, ai para equilibrar o peso, tinha que botar pedra no meu porque ele pesava mais que eu.
Só na capital você conhece as cores?
Sim. Quando criança eu fazia tinta com casca de madeira, barro e azeite de côco. Em Teresina que eu vi as casas coloridas e achei muito bonito. Uso muito amarelo porque, lá no interior, quanto as pessoas ficavam doentes, elas ficavam com a pele amarelada. É uma lembrança da infância. Mas o amarelo tem muito a ver com o sol e essa é a cor do Piauí.
Além das telas, você é também um excelente escultor. Quais desses trabalhos você mais gosta ou mais lhe marcou?
A escultura do Cabeça-de-cuia (“Crispim e as 7 Marias virgens”), no Encontro dos Rios. Fizemos em dois meses. Tudo com o barro do próprio Poty Velho. Fiz uma lagoazinha, botei um monte de peixinhos – os meninos da região pegavam os peixes (sorri). Tinham quatro ajudantes, pessoal que fazia a parte de metal, tinha o Carlão (Carlos Martins, artista que faz esculturas em ferro). Ele fez toda a estrutura de ferro. Começamos os dois, mas tinham pedreiros e outros ajudantes. Mas no final, muita gente da comunidade estava ajudando, participando. Foi muito bom. A meninada, adolescentes. Quando acabamos, fizemos uma placa com o nome de umas 30 pessoas que participaram. Infelizmente ela foi arrancada.
E entre os painéis?
“Turismo no Piauí” é um dos que eu mais gosto, no Centro de Convenções (recentemente o painel foi restaurado por novos artistas e ganhou grande destaque na imprensa). Ele foi feito a convite da Secretaria de Turismo, a Pientur, que ficava lá, antigamente. Era pra ilustrar o turismo no Piauí. Então esse painel retrata as lendas, o folclore, são figuras piauienses – a num-se-pode, o jaraguar, o boi. Foi muito legal restaurar esse painel, que fiz pensando na forma de viver dos piauienses. O governo tinha contratado um pessoal jovem e eles me chamaram. Eles gostavam muito do meu trabalho e disseram que se inspiravam muito em mim – eu fiz muitos painéis de rua, só na Frei Serafim tinham 10, hoje só ficou o do Sinopse (colégio). No Piauí, fiz mural de Corrente a Parnaíba, pro povo ver aquilo que ele é.
No Pará também tem uma sequência que eu adoro, na beira do rio Araguaia, três painéis grandes. É sobre a ditadura militar.
Há algo que você ainda pretende fazer?
Tudo que eu quis fazer eu fiz. Xilogravura, gravura em metal, escultura e pintura. E continuo sendo regionalista. Tudo que eu faço é voltado para o povo e a cultura popular do Piauí. Fiz decoração de Natal e carnaval na década de 80. Fiz muita cerâmica no Poty Velho. Tudo o que eu fiz foi pensando na cultura popular. Em cada piauiense. Os costumes, a religiosidade, o folclore.
Mesmo na sua temporada na França? O que você se lembra dessa época?
Eu conheci muitos artistas e muitas galerias de arte. Eles achavam o meu trabalho muito diferente do que os pintores faziam por lá. O que eu fazia tinha muito a ver com o Piauí e com o Brasil. Não tinha nada a ver com a pintura deles lá. A filha do Picasso, chamada Paloma, adorava o meu desenho e eu dei um quadro pra ela. Tá por lá ainda. Eu falo algumas poucas palavras em francês. Noruega faz mais frio que na França. Mas a melhor coisa do mundo é o calor humano do piauiense.
Aprendi com Picasso a fazer essas pinturas modernas. (mostra duas telas que tem na sala dessa temporada)
Eu fiz sete quadros sobre a Guerra dos Canudos, um povoado de Juazeiro onde Lampião morou muito tempo. Essa obra foi para uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio, ainda hoje está lá. O consulado francês, então, me convidou para ir fazer um curso de vitral. O único vitral que tem aqui em Teresina é na Igreja do 25º BC, que eu fiz. Depois desse curso ainda voltei várias vezes, porque fiz contatos lá para exposição. Mas eu me apaixonei e só pensava em voltar para o Brasil.
Por que?
Porque tudo que eu fiz foi pensando na cultura popular. Em cada piauiense. Os costumes, a religiosidade, o folclore. Eu nasci no interior do Piauí, morei alguns anos no Rio de Janeiro, fui pra França, trabalhei em fábrica de navio… mas sempre pensando em voltar para cá. Porque eu tenho muito amor pela fisionomia e o povo piauiense, que é melhor do que qualquer povo no mundo. Eu sentia muita saudade daqui.
Eu tenho três filhos e três netos. Minha neta, filha do Sérgio, de vez em quando pinta aqui e a que mora em Curitiba também pinta. Elas foram embora pra lá porque a mãe delas se mudou. (Corre para mostrar as telas com os retratos dos filhos ainda crianças, feitos por um artista de Piracuruca).
Há muitos trabalhos por encomenda?
Muitos. Eu mando fazer as telas, nas medidas especificadas. Muitos arquitetos pedem. Aí eles dão o direcionamento, como o número de figuras na obra (um casal, dois filhos, seis pessoas), mas cores e formato é livre. A pessoa me diz o que ela gostaria de ver e eu trabalho em cima do pensamento dela. Uma tela grande assim pinto em uma manhã – o contorno, que é a parte mais demorada, leva mais alguns dias. Algumas galerias, pelo Brasil todo, pedem, ou eu mesmo mando as obras, porque eles já confiam.
Ganhou muito dinheiro?
O suficiente para criar família.
O que deseja para o futuro?
Meu plano pro futuro é continuar trabalhando até quando fizer 120 anos. Continuar pintando, fazendo escultura e cuidando de neto e tataraneto.
Você é feliz?
Sou muito feliz, porque todo mundo no Piauí é feliz. Fico contente com as homenagens, porque eu acho que as pessoas gostam do que eu faço. Sou feliz pela felicidade de cada um. O Piauí inteiro cabe no meu coração.
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