sábado, 11 de maio de 2024

Cabeça na terra, pé no chão

Aílton Krenak fala das ameaças aos povos indígenas, do consumo e da relação humana com o meio ambiente: “Estamos virando uns bananas”

20 de maio de 2022

(Esta entrevista contou com a participação do poeta e músico Thiago E*)

Um rito indígena dos povos que viviam na região do Vale do Rio Doce, sudoeste do Brasil, saudava a terra de joelhos, com o corpo curvado, apoiado pelos cotovelos, até tocar o chão com a cabeça. Daí vem a origem de Krenak: “cabeça terra” – ou melhor, a ideia de que nós, seres humanos, não somos tão superiores como supomos: somos, tal qual os demais seres, frutos da terra.

Aílton Krenak, um dos mais importantes intelectuais brasileiros da atualidade e liderança histórica do movimento nacional indígena, está no Piauí. Na capital, o escritor participa de um evento promovido pelo Centro Cultural do Sesc – “Eu, Oca” – neste fim de semana. 

Conhecido como ambientalista, filósofo, poeta e escritor, Krenak tem a fala mansa dos humildes. “Não sou literalmente um escritor, sou um contador de história”, diz o autor que, desde “Ideias para adiar o fim do mundo”, lançado em 2019, figura entre os mais vendidos do país. Na esteira vieram “O amanhã não está à venda” (2020) e “A vida não é útil” (2020), ambos publicados pela Companhia das Letras. 

Krenak ficou muito conhecido ao protagonizar uma cena que faz parte da história política do Brasil: em 1987, no auge da luta pela redemocratização do país, ele discursou na Assembleia Constituinte enquanto pintava o rosto com tinta preta de jenipapo – só depois ficou sabendo que o ato meio corajoso, meio emocionado, em protesto pela perda de direitos indígenas, era uma performance – e todo aquele capítulo culminaria na aprovação de uma nova Constituição Federal, em 1988. “Daquela época até agora, vocês acreditam que só piorou?”, comenta sorrindo.

Aílton Krenak faz ato-protesto na Assembleia Constituinte, em 1987. (Foto: reprodução do youtube)

 

Em Teresina, Krenak recebeu jornalistas na manhã desta sexta-feira, 20, no Centro Cultural do Sesc. A entrevista que você lê a seguir são trechos extraídos de uma coletiva (onde repórteres de diferentes veículos fazem perguntas ao entrevistado) que durou mais de uma hora, e traz reflexões críticas sobre a humanidade e sua visão separada da natureza, a ideia de desenvolvimento, o consumo e o desastre socioambiental da nossa época. 

 

Você considera o rio uma entidade e não um “recurso”. Teresina é uma cidade que nasceu entre dois rios e, no entanto, não se comunica mais com eles. Onde erramos?

Uma coisa essencial que o rio dá pra gente é água pra gente beber. E água é uma prioridade no mundo inteiro – tem regiões do planeta que já estão disputando água como se ela fosse o último recurso. Não pode estragar a água. Eu costumo dizer que a colonização do Brasil foi feita em cima dos rios. Em cima (repete, reforçando as palavras). Parece que é na beirada, mas as cidades nasceram em cima. E a gente cometeu um erro histórico de transformar os rios em esgotos. Agora o Brasil tem o Marco Regulatório do Saneamento que parece que vai obrigar os municípios e estados a terem um planejamento mais voltado para a conservação das águas, dos rios e córregos. Eu vivo à margem de um rio, chamado Rio Doce, no mapa do Brasil – para nós, ele é considerado uma pessoa, chamamos de uatu. É a mesma maneira que o povo chama o Rio São Francisco de “Velho Chico” – Velho Chico é uma entidade. Uatu também.

Mas, no que erramos? Na nossa história a gente pode ter errado muito – o que importa é a nossa disposição para melhorar, corrigir. Se a história do povo indígena, por exemplo, foi mal contada, a gente agora tem a oportunidade de contar direito. A convivência urbana tende a transformar todo mundo em consumidor. Um pouco desse afastamento do rio, da natureza, é exatamente porque a maioria de nós é convocado a ter uma existência só como consumidor, e as coisas ao nosso redor todas viram mercadoria. Há mercantilização de tudo, até do rio. Para a gente melhorar isso, temos que ter consciência de que estamos fazendo errado. A vida não é mercadoria. 

Ailton Krenak em coletiva no Sesc: “A vida não é mercadoria”. (Foto: Thiago E)

 

Como os povos indígenas encaram a possibilidade de um segundo governo Bolsonaro? (O atual governo ignora recomendações da ONU e responde a processos de crimes contra a humanidade. A PL 490 dificulta aos indígenas terem suas terras reconhecidas, pode retirar o direito sobre terras já demarcadas, além de abrir espaço para exploração dessas áreas para mineração e empreendimentos predatórios).

Na América Latina, o Brasil aparece como o estado mais desrespeitoso com os direitos dos povos indígenas. Essa lista, com mais de 200 notificações inclui, inclusive, o genocídio. O Brasil já foi acusado em fórum internacional por prática de genocídio. Isso significa que a nossa história colonial repudia a presença dos povos originários. Aqui tem uma diversidade tão grande que a gente joga fora como se fossem as águas do rio. Nós precisamos aprender a respeitar uns aos outros. A possibilidade de termos um governo que continua violando as recomendações da ONU e de outros órgãos internacionais pode representar uma perda muito grande do Brasil no mundo. Ao invés de sermos considerados um país em desenvolvimento, positivo, passamos a ser vistos como um país atrasado e declinante. Respeitar os Direitos Humanos é o princípio geral no desenvolvimento de um país. Se a gente tiver que sofrer mais um período de governança anti-indígena predatória, nós vamos acrescentar muito sofrimento a um povo que já está bastante castigado por falta de reconhecimento dos seus direitos territoriais e sua diversidade. São 305 etnias no Brasil, falando aproximadamente 170 idiomas. É uma diversidade cultural tão grande que a gente deveria se achar um país importante – mas para isso, temos que respeitar a nós mesmos.

 

Thiago E: Há um interesse muito grande da cultura ocidental pela sabedoria milenar oriental e, muitas vezes, poucos prestam atenção que nós, nesse território Brasil, temos sabedoria de povos indígenas milenares que não são vistos igualmente dessa forma. Por que você acha que isso acontece e como podemos mudar?

Tem um ditado que fala: “Perto dos olhos, longe do coração”. Pra que você vai ver as coisas que estão perto? Lá na Índia tem um rio que se chama Ganges. É um rio sagrado, as pessoas vão lá, se lavam nas águas pra sarar, ficar com saúde, ficar bom. Aqui no nosso país não temos nenhum rio sagrado. O Amazonas é considerado um dos maiores corpos d’água do planeta! E a gente trata ele como se fosse qualquer coisa. O São Francisco está sendo estrangulado ao longo da história do Brasil. O Rio Doce, o uatu, da minha aldeia, foi atravessado pela lama da mineração que arrebentou com ele. Aí eu me perguntei: por que lá na Índia pode ter um rio sagrado e aqui no Brasil a gente trata o rio como se fosse um esgoto? 

 

O que você sabe sobre os povos indígenas do Piauí? 

Quando eu comecei a divulgar essas ideias que estão no livro da série “Encontros” (Editora Azougue, 2015), se você fizesse uma busca sobre o estado do Piauí, dizia que aqui não tinha mais povos indígenas. Então isso é uma declaração de extinção. Depois, a partir da Constituinte, já na década de 90, muitas mobilizações e muitas questões de políticas públicas começaram a levantar o reconhecimento da existência de povos sem território, sem demarcação de terra, espalhados por aí no meio da população, vivendo em condições de pobreza e abandono. Então não tem uma política pública de reconhecimento, de verdade, da presença dessas famílias indígenas, pelo fato delas não terem o reconhecimento da FUNAI, do Governo Federal. E os governos estaduais, pela nossa constituição, não têm a obrigação principal de assistir os indígenas – é a União, o Governo Federal. E como a gente tem um Governo Federal que deliberadamente acabou com a política indigenista, a gente ficou na contramão com essa realidade regional. O estado do Piauí pode, por iniciativa própria, promover o reconhecimento das comunidades indígenas que historicamente foram ignoradas, mas ele vai precisar da colaboração do Governo Federal para demarcar, reconhecer e reparar perdas históricas. Tomara que a gente consiga fazer isso. 

“Viver é não se preocupar em ter coisas”, Ailton Krenak. (Foto: Thiago E)

 

Thiago E: No meu livro mais recente (“Os gatos quando os dias passam”, 7Letras, 2021) publiquei um poema dedicado a você, chamado “Porque chegou a mim a voz de Aílton Krenak”…

Eu vi e achei lindo. Você pode ler pra gente?

 

“O gato / passa pelo tempo / pisando solo devagar / em par / com o vôo do bem-te-vi / sem imprimir / nenhum vestígio / quem faz da terra / saque e guerra / perde o sabor de ser felino / atento ao gosto deste instante / o gato em nada quer mandar/”. Aprender com os indígenas a “viver sem deixar rastros”: como é viver assim?

É pisar suavemente na terra. Mas como nós vamos pisar suavemente na terra construindo usina nuclear? A gente podia ter outras fontes de energia como o sol, o vento, a energia solar é muito limpa e boa. Tem a energia eólica… Vocês tem muito vento aqui, é uma fonte de energia. Aprender com os povos indígenas seria praticamente rever a matriz tecnológica que a gente usa com tanta folga. A gente aprendeu a viver de uma maneira muito fácil. A ter escada rolante, elevador, luz elétrica, tudo aparelho, tudo pronto, resolvido. Estamos virando uns bananas. 

 

Há um desinteresse, uma descrença geral dos jovens em relação à política e ao futuro. Como podemos conversar com eles e também recuperar um pouco nossa capacidade de dialogar com quem pensa diferente?

Essa semana, antes de vir para cá, eu visitei uma escola em Fortaleza para falar com jovens que estão saindo do Ensino Médio. Era uma meninada com muita energia, e separamos uns 30 para uma conversa igual a essa que estamos tendo aqui. O encontro com esses jovens de uma escola pública pôde me ajudar a responder a essa pergunta dizendo o seguinte: os jovens continuam com o mesmo interesse e disposição, porque é da natureza dos jovens adolescentes a curiosidade. Eles querem saber sobre tudo. Eu observei o seguinte: todos eles nasceram no século XXI. Será que a gente tem consciência, quando estamos falando com jovens, de que estamos falando com pessoas que nasceram depois que essa coisa do celular foi inventada? Até 20 anos atrás essa coisa não existia. Mudou a forma de comunicação, mudou toda a eficácia de você mandar uma mensagem, comunicar uma ideia. Então parece que a gente tem muito mais facilidade de comunicar mas nós estamos muito menos capacitados a fazer isso. 

Um jeito de falar com essa meninada é reconhecendo que eles estão muito mais atualizados em tecnologias e observação do mundo do que os adultos. Os adultos são muito conformados. Esses jovens têm muito mais curiosidades e sabem muito mais do que a gente pensa. Eles me fizeram perguntas muito importantes como: “Se continuar o problema do clima no planeta, a nossa geração vai continuar existindo ou a gente vai ser extinto?”. Imagina alguém com 17 anos se preocupar com essa coisa de ser extinto?

Sei também que tem algumas faixas de idade onde o suicídio é muito grande – principalmente da pandemia pra cá. Isso é falta de horizonte. Se o jovem fica com falta de horizonte, ele não acredita nem nos adultos, nem em nada. Eles desistem de viver. E isso é muito triste, muito grave. Porque a infância e a juventude são a parte mais incrível da vida. 

 

Mas como recuperar esse horizonte  e essa esperança?

Ficando vivo. Respira, inspira. A experiência da vida é suficiente. O povo indígena sente que a vida é uma experiência de ser e, infelizmente, os brancos acham que a vida é ter: ter um carro, ter um prédio, ter muito dinheiro. Ter propriedade, ter coisas. Que a felicidade e o sentido da vida estão em você ter muita coisa. Em qualquer cultura indígena, o importante é você ser. Viver é não se preocupar em ter coisas.

 

Thiago E: Para fechar, que mentira você gostaria que fosse verdade?

Uma muito conhecida de todos nós: aquela que diz que Deus é brasileiro.

 

*Thiago E é autor de “Cabeça de Sol em cima do Trem” e “Os gatos quando os dias passam”. Com a banda Validuaté, lançou os discos “Pelos Pátios Partidos em Festa”, “Alegria Girar”, “Este Lado Para Cima”, e o show Validuaté ao vivo. É um dos criadores da revista Acrobata.

sábado, 11 de maio de 2024

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

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