sexta-feira, 26 de abril de 2024

De volta à Batalha

Historiador Johny Santana revela detalhes da participação piauiense na luta pela independência: uma aula que você não teve na escola

19 de outubro de 2022

Edição Luana Sena

Jonhy Santana é daquelas pessoas verdadeiramente apaixonadas pelo que faz. Professor do departamento de História da Universidade Federal do Piauí, consegue emendar horas contando histórias de batalhas, guerras, revoltas e outros temas com a mesma empolgação com que conta sobre o dia em que conheceu sua esposa. “Eu casei com uma historiadora”, diz sorrindo. “Amo e vivo com história”.

O currículo Lattes, é claro, não dá conta disso. Embora nos dê pistas de que, desde o doutorado, ele pesquisa sobre a participação piauiense em guerras. Já no pós-doc, com sua história pessoal e acadêmica costurando-se feito o linho e a linha, ele constrói a pesquisa “Os emissários facciosos do Piauí e as cartas da Guerra de Independência, 1823 – 1824”, na PUC de São Paulo. 

Simpático e acolhedor, consegue explicar com clareza episódios complexos da longa jornada travada pela independência no Piauí – marco cuja data institucionalizou-se em 19 de outubro. Outras datas poderiam entrar no páreo para a celebração oficial: 24 de janeiro e 13 de março. “A única data que temos em 1822 é o 19 de outubro. Em Oeiras foi 24 de janeiro do ano seguinte”, frisa. “O Piauí teve, então, dois decretos de independência por elites de ideologias políticas diferentes”.

Quando chegamos ao capítulo da Batalha do Jenipapo, ele surge com novas informações. São quase duas décadas pesquisando e, mesmo revisitando documentos já investigados, é possível encontrar novidades. “Nunca é a mesma leitura porque nunca são os mesmos olhos”, ressalta. Mas, para o historiador, encontrar um baú de cartas doado ao museu de Picos, por exemplo, pode ser igual ou melhor do que descobrir um tesouro. “Carta é um tipo de documento muito sincero”, esclarece. “O produtor fala com uma honestidade muito grande sobre o que ele tá fazendo”. O conjunto documental sobre o qual tem trabalhado, junto a uma orientanda de mestrado, traz revelações sobre intencionalidade e participação voluntária na batalha ocorrida em Campo Maior – algo que para os memorialistas, ainda não tinha ficado muito claro. 

Encontrando novos contextos, ele segue dando aulas nos cursos de História e Ciência Política na UFPI, pesquisando e integrando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual se orgulha em ser sócio honorário. “É a ABL da História!”, ri. Essa entrevista serve como aquela aula de História do Piauí que todo mundo deveria ter tido na escola.

Luana Sena: Hoje, 19 de outubro, é celebrado o Dia do Piauí, data em que foi decretada a independência da província, em 1822. Este ano, no Brasil, tivemos uma série de eventos em alusão ao bicentenário da independência – mas sabemos que ela não aconteceu da mesma forma nem ao mesmo tempo para todo o país. O que separa, então, o famoso “grito do Ipiranga” do nosso 13 de março?

Johny Santana: O que separa as duas datas são dois projetos bem definidos: um projeto de Brasil, do imperador Dom Pedro I e um projeto menos conhecido, que é o projeto português em relação ao Norte do Brasil. 

Em 1821, quando o monarca perde força e apoio em detrimento a um parlamento mais forte por causa do princípio liberal, as cortes vão criar uma nova Constituição e ela vai fazer com que o Brasil voltasse a uma condição de colônia. Haviam vários partidários: partido Brasil, partido pró-Portugal. Mas havia uma coisa mais pragmática: se houver uma ruptura institucional e o príncipe regente decretar uma separação, com quem nós (os de Portugal) podemos contar no Brasil? Eles podiam contar com duas províncias: o Maranhão e o Grão-Pará. O Piauí não tinha nascido como capitania hereditária, era uma derivação que tinha pertencido ao Maranhão. Não tinha uma identidade muito clara com os portugueses. Obviamente, as elites que estavam aqui atuavam mais pragmaticamente. Duas pessoas importantes nesse momento foram Simplício Dias, que fazia parte desse grupo de políticos, ideólogos do Norte do Piauí, lá na Vila de Parnaíba; e havia outro grupo político que era mais ligado ao Centro-Sul do Piauí, o grupo do Brigadeiro Manoel de Sousa Martins, que representava uma elite do sertão. Com esse quadro, os deputados que eram para ter ido à Constituinte em Lisboa, não foram. Quando ocorre o 7 de setembro e a notícia chega aqui, a província do Piauí é praticamente a primeira a aderir ao processo de independência. 

A presença do Major João José da Cunha Fidié foi justamente para assegurar que o Piauí – e o Norte do império – continuasse fiel a Portugal. Bem, as cortes tinham ciência que as juntas governativas do Maranhão e do Grão-Pará continuariam fiéis, mas aqui a junta era uma incógnita. 

Fidié vem ao Piauí já com uma ordem direta de Dom João VI. Quase ninguém sabe disso, mas nas memórias dele, ele fala: “O rei me chamou e disse ‘Major, mantenha-se no Piauí. Mantenha-se a todo custo’”. Tive contato com as atas das reuniões da Constituinte em Lisboa e algumas declarações dos deputados, das cortes, falam sobre o projeto de manutenção do Norte do império. Acontece que, entre esse grupo que estava no Norte e o grupo que estava no que hoje chamamos de Nordeste, para o Sul, havia um vinco – e este vinco chama-se Piauí.

O que tinha no Piauí, da época, que justificava essa disputa?

J.S: O rebanho de gado. E era muito rico. Para quem não sabe, o Piauí fornecia gado desde a época da colônia a essas regiões auríferas do Centro-Sul do Brasil. Ele perde um pouco a primazia quando a capital sai de Salvador e vai para o Rio de Janeiro – então o posto passa a ser do Rio Grande do Sul. Os portugueses tinham claro na cabeça a ideia de manter o Piauí agregado a esse projeto, caso houvesse uma separação. 

Primeira turma de História na UFPI de Picos, curso que Johny ajudou a fundar em 2006 (Arquivo pessoal)

 

O que separava e o que unia as elites do Norte e do Centro-Sul do estado?

J.S: No Centro-Sul, em Oeiras, o corpo político do Brigadeiro Manoel de Sousa Martins, como ele representa essa elite rural, é mais pragmático e menos intelectual. Ele foi muito estrategista e era um homem bem diferente do Simplício. 

Quando o 7 de setembro ocorre e a notícia chega, lá em Parnaíba, vindo do Ceará, o Coronel Simplício Dias reúne o grupo e conclama a independência em 19 de outubro. Fidié, sabendo disso, prepara uma força e parte para Parnaíba. Quando chega lá – e eu tive acesso a uma documentação com relatos dele agora, para minha pesquisa – ele diz: “Só não tive quem enforcar porque todo mundo fugiu”. O grupo tinha ido refugiar-se no Ceará. E, curiosamente, no dia 24 de janeiro, quando ocorre a conclamação aqui em Oeiras, a junta do Ceará promete ajudar o Piauí. É formado um exército às pressas e parte desse comando é dado a Leonardo Castelo Branco e ao comandante chamado Chaves. Leonardo era uma figura à parte, não sabia como comandar um exército. Tem a ideia de ir ao Maranhão, com um exército fraco e sabendo que a junta de lá era fiel à corte. Não deu outra: assim que atravessa o rio Parnaíba, é preso. 

Já o comandante Chaves era razoavelmente incrementado, era militar preparado, entra no Piauí com uma força razoável. Concomitantemente, quando chega em Campo Maior, batedores tinham indicado que Fidié estava descendo de Parnaíba em direção a Oeiras, para driblar o movimento perpetrado por Manoel de Sousa Martins. E ele, desesperado, tenta despachar batedores para encontrar o outro comandante parceiro dele, que estava fazendo recruta em União. Tentou avisar a junta em Oeiras. Sem sucesso. Com poucos homens, ele lança uma grande conclamação popular, que fez com que as pessoas pegassem paus, fuzis, mosquetão, facas, foices para tentar barrar o Fidié em Campo Maior. 

Os primeiros batedores dele encontraram o exército de Fidié muito bem organizado. Era uma tropa de primeira linha, o corpo principal do exército português. O exército insurgente brasileiro era eminentemente formado por milicianos, sem experiência e partiram para o enfrentamento, em 13 de março.

No 74º Encontro da SBPC em conferência sobre a Batalha do Jenipapo (Arquivo pessoal)

 

E é esse trecho da história do Piauí que conhecemos como Batalha do Jenipapo.

J.S: Exatamente. A Batalha do Jenipapo foi extremamente trágica. Hoje a gente tem contato com relatórios enviados por Fidié ao Ministro dos Negócios e da Guerra em Portugal, que falam sobre a tragédia da batalha. E não é figura de retórica, não. A batalha realmente foi uma evocação popular. Começou às nove horas da manhã e terminou às duas da tarde. Um verdadeiro massacre. O exército independentista estava completamente despreparado. Fidié contava com 11 canhões e usou tudo o que podia usar. Já fiz um estudo comparativo e ela foi tão trágica quanto a Batalha de Carabobo, travada por Simon Bolívar pela independência do vice-reino de Nova Granada.

Tem alguma hierarquia de importância nessas datas e acontecimentos? Por que celebramos no 19 de outubro?

J.S: Essa piauiensidade acabou sendo motivo de disputa dos memorialistas daqui. Exatamente por essa narrativa entre o 19 de outubro, 24 de janeiro e 13 de março. E há outras narrativas menores, mas não menos importantes, mas que as pessoas não conhecem. Por exemplo, Piracuruca teve uma importância muito grande, teve batalha. União também, que era o Estanhado. De qualquer maneira, as três datas são importantes. As pessoas têm um certo civismo, há uma certa consciência, a piauiensidade, naturalizada ou não, continua aí. Tanto pela disputa dos intelectuais sobre o que deveria ir na bandeira do Piauí – e acabou sendo o 13 de março. 

O historiador Abdias Neves escreveu que “Só a loucura patriótica explica a cegueira desses homens que iam partir ao encontro de Fidié quase desarmados”. Odilon Nunes, no entanto, aponta que patriotismo não era bem um conceito claro para vaqueiros daquele século. Qual seria então a motivação dessas pessoas?

J.S: A noção de pátria que se tem no final do século XVIII e início do XIX é “meu lugar mais próximo de pertencimento”. Meu bairro, minha rua, meu espaço. Essa noção de pátria vincula-se a uma ideia de pertencimento que se conecta com a coletividade. A ideia de nação é um projeto muito maior, que nasce com a Revolução Francesa. Aí é um conjunto de ideais patrióticos que vão convergir para uma ideia de nação. Você não vai lutar mais pelo seu senhor, pelo rei, e sim pela bandeira, pelo hino, pela terra, pela língua. Por uma identidade que te hermana a uma grande comunidade maior. O Benedict Anderson, um autor que eu gosto muito, tem um livro chamado “Comunidades imaginadas”. É ele quem dá essa ideia de pátria. Eu concordo com a ideia de patriotismo porque isso era alavancado pelos panfletos que circulavam aqui, na época – inclusive meu sonho é encontrá-los. Pesquisadores já encontraram no Rio de Janeiro, São Luís e Bahia. Eles são citados pelo Monsenhor Chaves, Wilson Brandão, Odilon… esses panfletos, junto ao boca a boca, aceleravam corações e mentes. 

Por que, por tanto tempo, esse capítulo ocorrido no Piauí foi renegado da história nacional?

J.S: Os memorialistas têm um lugar de fala que serve a alguns propósitos. Abdias Neves viveu a época do centenário. Depois você tem Anísio Brito, que trouxe muitas fontes sobre a independência e confederação do Equador. O Renato Castelo Branco, que coincidiu com o período do Vargas, com o renascimento da educação progressista para formar o homem, o cidadão. Mas é na década de 1970 para 1980 que a gente vai observar um programa de estado aqui no Piauí voltado para essa inserção, na tentativa de elencar o estado a uma história nacional que, ao meu ver, não deu certo. Isso foi alicerçado pelo governo Alberto Silva, a construção daquele monumento, a criação daquela comenda (“Ordem do Mérito Renascença”) e esses programas editoriais todos de livros, e aí você tem o trabalho do Odilon, do Monsenhor, do Wilson Brandão, do Bugyja Brito… que vão tentar encontrar um espaço dentro do contexto nacional, só que não encontram. 

Participando de colóquio sobre escravidão na OAB-Pi (Arquivo pessoal)

Você comentou comigo que tem dois livros para lançar no próximo ano e um deles seria sobre um conjunto de cartas do século XIX encontradas no Museu de Picos…

J.S: Sim, durante todos esses anos de pesquisa tive a oportunidade de encontrar documentos muito bons, tanto os que já foram vistos e revistos – mas nunca é a mesma leitura porque nunca são os mesmos olhos – e o corpo documental que tava esquecido no arquivo português e também outros no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do qual eu faço parte. Tem um conjunto documental que foi encontrado recentemente no Museu Ozildo Albano, em Picos, e uma aluna minha do mestrado está trabalhando em cima dessa documentação. É um conjunto de cartas doadas por familiares ao museu, bem reveladoras sobre intencionalidade, a forma como espontaneamente o povo vai participar da batalha, algo que os memorialistas tentavam colocar, mas não ficava muito claro. Carta é um tipo de documento muito sincero, o produtor dela fala a alguém com uma honestidade muito grande sobre o que ele está fazendo. Há uma carta de um capitão chamado Caminha, de Valença, escrevendo a Manoel de Souza Martins: “Estou lhe mandando meus filhos, meus agregados, alguns vaqueiros, cavalos, armas, munição, pra você engrossar o exército libertador”. É uma sinceridade, uma espontaneidade. E ele fala: “Cuide bem dos meus filhos, traga-os de volta pra mim”. Olha que bonito isso!

Como os historiadores, pesquisadores, acadêmicos têm lidado com o negacionismo científico do tempo presente?

A gente tem feito pesquisa de uma forma muito difícil. A gente esperava que os 200 anos fossem “os 200 anos” (fala com ênfase o artigo). Houve uma tentativa de capitanear a festa para a politicagem e muita coisa se perdeu. Eu fiz muitas lives, publiquei muitos artigos, tem bastante coisa ainda pra sair e dois livros a serem publicados. 

Vou fazer uma citação a Sérgio Buarque de Holanda, que é um dos pais fundadores da moderna historiografia brasileira. A tese central dele de “Raízes do Brasil” é a tese do homem cordial. Mas eu acho que esse homem cordial não existe mais. Se existiu, desvaneceu-se. O homem cordial era aquele que precisava ser superado, uma carga que a gente tinha herdado dos portugueses. Acontece que essa etapa não foi ultrapassada. E a gente tá mergulhado num atraso, numa degeneração. Acelerado em formas de preconceito, misoginia, machismo e racismo. Temos uma guerra para enfrentar agora. Em 2015 a gente achava que ia tudo bem, que nós éramos intelectuais orgânicos de verdade, que as pessoas respeitavam o que a gente fazia e, de repente, em 2016 você tem uma virada à direita, aquele golpe violento na presidente Dilma, na sequência todo esse aparato montado para Bolsonaro. O importante, nesse momento, é fazer com que esses elementos degenerativos da sociedade sejam extirpados e que a gente tenha força para se manter. Vamos precisar ainda mais de historiadores e jornalistas, viu?  A luta segue e acredito muito que a gente vai reconstruir o que foi perdido.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Luana Sena

Jornalista, mestra e doutoranda em comunicação na Universidade Federal da Bahia.

1 comentário

William Sousa · 20 de outubro de 2022 às 10:38

Uma boa dica, é para a próxima vez fazer essa entrevista em podcast ou vídeo. É muito desgastante físicamente acompanhar a entrevista. Muito rica até onde meus olhos me permitiu ler

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