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O trabalho infantil tem cor

Mais de 50 mil crianças e adolescentes foram encontrados em situação de trabalho infantil no Piauí, diz pesquisa

23 de agosto de 2021

José* espera em pé na calçada o semáforo ficar vermelho para poder ir para frente dos carros e fazer malabares com duas bolinhas verdes ao pé do sinal localizado no Balão da Tabuleta, zona Sul de Teresina. Após alguns segundos, quando termina a apresentação, caminha entre os automóveis, recolhe as moedas e se posiciona no lugar que estava antes para seguir seu ritual de toda manhã: trabalhar no sinal para conseguir dinheiro.

O jovem negro com roupas desgastadas, de corpo franzino e cabelo raspado tem 15 anos. Mas seu olhar infantil faz parecer que é mais novo. Ao nos aproximarmos, fica agitado e desconfortável. Mas logo depois, conversa abertamente, mesmo sob observação de dois homens adultos que estão próximos e o fiscalizam.

O malabarismo que faz diariamente para se manter, está sendo repassado para os irmãos mais novos, que ficam com a mãe em outro sinal na mesma região. Ao ser questionado sobre a escola, afirma que nunca foi e não tem vontade de ir. “Só queria ir para poder brincar”, afirma. 

A realidade de José* se assemelha as 51.803 crianças e adolescentes no Piauí em situação de trabalho infantil, segundo registro do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) em 2019, última pesquisa realizada pelo órgão. De acordo com o estudo, esse quantitativo de crianças e adolescentes trabalhadores dedicam cerca de 10,5 horas do seu dia sendo exploradas no Piauí.

Os dados do FNPETI revelam uma predominância: jovens negros de 16 a 17 anos, do sexo masculino é o perfil que mais está em condição de trabalho infantil no Piauí. Em geral, esse grupo pertence a famílias pobres e encontra trabalho nas lavouras. Em relação a crianças e adolescentes do sexo feminino, a predominância é de meninas negras que trabalham em ambiente doméstico. 

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A desigualdade social e a pobreza são grandes motivadores para que crianças e adolescentes sejam inseridos em trabalhos informais, entretanto, há uma questão cultural que provoca a persistência da exploração infantil. Para Dalva Macedo, pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre Infância, Adolescência e Juventude, essa é uma realidade visível em todo o Brasil, mas principalmente no Nordeste. “Muitas pessoas ainda acreditam que crianças e adolescentes que não trabalham podem se tornar delinquentes e marginais, dentre outros adjetivos que fortalecem a desigualdade social”, diz. 

Atualmente, cerca de 66,0% das crianças e adolescentes em exploração vivem nas zonas rurais no Piauí. As principais ocupações são com atividades de pecuária, balconistas e vendedores de lojas e trabalhadores da agricultura.

Pandemia provoca aumento de subnotificação de trabalho infantil

Segundo dados do Conselho Tutelar de Teresina, em 2019 foram registrados 84 casos de trabalho infantil, mas em 2020, os números caíram pra 24. Entretanto, a diminuição dos registros não garante que o trabalho infantil está deixando de ser praticado na cidade. Na realidade, a pandemia da Covid-19 teria provocado um aumento de subnotificação de casos de trabalho infantil na capital.

Para a conselheira tutelar, Socorro Arraes, em razão do isolamento social, ficou mais difícil encontrar essas crianças devido a suspensão das aulas escolares.  Socorro afirma que esse é um forte fator para a queda dos casos, tendo em vista que muitas denúncias são feitas pelo canal escolar. “Sem aulas, meninos e meninas são colocados para exercerem trabalhos em borracharias, comércios, capinando terrenos e em semáforos, mendigando ou vendendo algo”, explica.

Um dos casos graves de dificuldade em monitorar o trabalho infantil na capital e no Piauí como um todo tem relação com os indígenas venezuelanos da etnia Warao que vieram para o estado para se refugiar. Segundo a conselheira, muitas das crianças indígenas estão trabalhando de forma exploratória e que é difícil acessar esse público, uma vez que eles já são afetados por outras vulnerabilidades sociais, como falta de moradia e alimentação.

Segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT-PI), em 2020 foram recebidas 1.847 denúncias de trabalho infantil, mas apenas 145 ações foram movidas em relação aos casos. De junho de 2020 até junho de 2021, foram autuados 1 procedimento preparatório, três ações judiciais, duas notícias de fato/denúncias e, por fim, 14 inquéritos civis.

A atuação do MPT, em grande parte, acontece a partir de denúncias e que muitas ilegalidades nunca são denunciadas, o que pode contribuir para a subnotificação dos casos e interfere no combate ao trabalho infantil. “Não é possível afirmar que o universo de denúncias e ações representam a realidade”, afirma Edno Moura, procurador do MPT. “O que também é motivo de preocupação”, conclui. A falta de dados e pesquisas detalhadas sobre os municípios impossibilita estratégias de resgate de crianças e adolescentes em situação de exploração do trabalho. 

Combate deve ser exercido por toda a sociedade

A porta de entrada para realizar as denúncias de trabalho infantil acontece por meio dos Conselheiros Tutelares dos Municípios. Em seguida, a criança será direcionada para uma rede de enfrentamento para receber o aparato legal e social por meio dos  Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Defensoria Pública e Ministério Público e Ministério Público do Trabalho (MPT). Após esse contato, é solicitado as medidas de segurança e amparo às crianças em situação de exploração. Por meio do site do MPT é possível realizar denúncias contra estabelecimentos que mantém crianças e adolescentes sob rotinas de trabalhos. A denúncia é feita de forma anônima.

O combate ao trabalho infantil e a proteção das crianças deve ser exercício por qualquer cidadão. Entretanto, Djan Moreira, ouvidor-geral da Defensoria Pública do Piauí, afirma que há bastante conivência da sociedade para omitir os casos. “Ainda vivemos a cultura do ‘é melhor trabalhar do que roubar’. Temos que superar isso”, diz. O ouvidor frisa que deve haver uma forte articulação dos poderes de cunho educacional para romper com esse pensamento. 

Além das redes articuladas de enfrentamento ao trabalho infantil, existem organizações não-governamentais que atuam na prevenção desses casos. Um desses espaços existentes na capital piauienses, atua na Vila Irmã Dulce, localizada na Zona Sul de Teresina, e atualmente acolhe mais de 300 crianças da comunidade. 

A pedagoga do local, Luana Nogueira explica que a ideia é prevenir que as crianças e famílias encontrem como saída trabalhos informais para sair da situação de pobreza. Enquanto estão fora do horário escolar, ou durante as férias, a ONG Centro da Juventude Santa Cabrini, realiza projetos culturais, como teatro, oficinas de artes, grupos de danças. “Nosso maior foco é atingir as crianças da Vila Irmã Dulce que estão em situação de vulnerabilidade, acolhê-la e evitar que ela seja explorada”, explica a pedagoga. 

Para ela, as famílias são peça-chave para combater a exploração infantil. Pais, mães e responsáveis são inseridos dentro das atividades para ter conhecimento sobre trabalho infantil e evitar que as crianças sejam inseridas em trabalhos informais de forma exploratória.

O combate ao trabalho infantil deve estar aliado a realização de denúncias aos órgãos de fiscalização e a articulação de projetos de conscientização da família e da sociedade. “É uma situação complexa”, explica a pesquisadora Dalva Macedo, ao falar sobre a necessidade de se combater essa realidade a partir da criação de políticas públicas voltadas para o acesso à educação das crianças e jovens,e também para a geração de emprego e renda para as famílias. “Enquanto permanecer a precarização das condições socioeconômicas dos grupos mais vulneráveis, vai aumentar a defesa de que crianças e adolescentes têm que trabalhar para ajudar a família”, reforça.

*nome alterado para preservar a identidade da fonte.

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Categorias: Reportagem

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