O direito à terra é uma das reivindicações mais importantes dentro do movimento indígena. Com a desapropriação histórica dessas comunidades ao longo do processo de exploração do país, baseada no extermínio, escravização e deslegitimação dos povos indígenas, que continua com os atuais conflitos de terra e urbanização, os descendentes dos povos originários permanecem na luta pelo direito à terra – um direito previsto constitucionalmente.
A data de hoje, 9 de agosto, simboliza o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Pensar sobre a relação entre território e comunidade para os povos indígenas, vai muito além do direito à terra. Há um vínculo de respeito, cuidado, ancestralidade e preservação. “Não há sentido pensar povos indígenas sem pensar em terras indígenas”, enfatiza indígena e antropólogo Hélder Ferreira de Sousa, que pesquisa etnologia indígena.
Com o território assegurado, é possível reivindicar políticas públicas e acessos a outros direitos. De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão responsável pela demarcação de terras indígenas no Brasil, atualmente existem 488 terras indígenas regularizadas pela União, representando cerca de 12,2% do território nacional. Desse total, o Nordeste é a 3ª maior região com terras regularizadas (11%), onde o Piauí, junto com o Rio Grande do Norte, são os estados da região que não possuem nenhuma terra indígena oficialmente regularizada pela Funai. No caso do segundo estado, uma terra indígena está em fase de estudo pelo órgão.
Essa realidade foi parcialmente alterada após a entrega da titulação de terra da comunidade indígena Kariri de Serra Grande, localizada a 560km de Teresina, na região da cidade de Queimada Nova. Foi a primeira titulação feita no Piauí, atendendo a uma reivindicação iniciada há mais de uma década.
O primeiro título de terras indígenas do Piauí só foi possível em razão de uma manobra feita pelo governo estadual. A sanção da Lei nº 7.294/2019 estabeleceu a política de regularização fundiária, prevendo a doação de terras públicas aos povos e comunidades tradicionais.
Para garantir o reconhecimento formal da existência dos povos indígenas no território piauiense, a nível estadual, foi sancionada a Lei nº 7.389/2020, que conferiu a competência legal para reconhecer as comunidades e seus direitos. Na prática, a decisão concedeu a regularização do território, o que facilita o processo oficial de demarcação de territórios indígenas que é feito oficialmente pela Funai.
A medida beneficia 32 famílias e cerca de 100 pessoas que moram na área que, a partir da titulação, poderá reivindicar e assegurar políticas públicas para o seu povo. “Nós continuamos lutando e, assim como conseguimos a terra, vamos conseguir posto de saúde e água”, comenta a cacica Francisca Kariri, líder da comunidade. “É nosso sonho, assim como sonhamos em ter a terra, aquilo que era nosso”, relata.
Mesmo com a conquista, o caminho para a demarcação de terras no estado ainda é longo. “É importante a regularização de terras para povos indígenas por parte do estado, mas ela não é a demarcação de terras de acordo com a Constituição Federal”, enfatiza o indígena e antropólogo Hélder. “Não há, até o momento, nenhum projeto ou ação da Funai no sentido de garantir a demarcação administrativa legal de uma terra indígena no Piauí”, acrescenta o pesquisador.
Demarcação de terras já!
A demarcação de terras indígenas é estabelecida pelo Decreto Federal Nº 1775/96, que afirma que ela deve ser feita por meio de trabalhos de um grupo técnico especializado sob a orientação do órgão federal de assistência ao indigena. É esperado que o órgão competente realize estudos e levantamentos fundiários necessários à delimitação.
No Piauí, de acordo com o Instituto de Terras do Piauí (INTERPI), pelo menos três territórios indígenas estão na fase de estudo para a regularização fundiária. São comunidades localizadas nas regiões de Morro D’água, no município de Baixa Grande do Ribeiro e Vão do Vico, em Santa Filomena, sul do estado – por ali vivem os povos indígenas da etnia Gamellas. Iniciados em novembro de 2020, o andamento dos processos foi prejudicado por conta das restrições da pandemia. Segundo o órgão, a previsão é de que todos estejam concluídos até o fim do ano.
Além desses, o INTERPI estuda a possibilidade de aquisição de áreas para o desempenho de atividades produtivas de povos indígenas que vivem em áreas urbanas, como as comunidades de Tabajara de Jenipapeiro, Itacoatiara e Tucuns, na cidade de Piripiri.
“A gente está com esperança de realmente conseguir melhoria através dos territórios que podemos receber, que vai ajudar na questão da implantação da saúde indigena, para que possamos viver com mais dignidade”, comenta o cacique Henrique, Tabajara Tapuio, da comunidade Nazaré, localizado em Lagoa do São Francisco. A comunidade que hoje conta com 140 famílias e mais de 400 pessoas, sempre lutou pela demarcação do território na região de Piripiri. “A gente precisa de muito investimento ainda nas políticas públicas voltadas para os povos indígenas”, acrescenta o cacique.
O Piauí conta, atualmente, com pelo menos 9 comunidades que se autorreconhecem indígenas, em diferentes regiões do estado. Entre eles estão: os Geguê do Sangue e os Caboclo (Uruçuí), Gamelas (Bom Jesus, Baixa Grande do Ribeiro, Currais e Santa Filomena), Tabajara (Piripiri), Kariri (Queimada Nova e Paulistana), Tabajara Ypy (Piripiri – Canto da Várzea), Tabajara da Oiticica (Piripiri – Oiticica II) , Tabajara Tapuio (Lagoa de São Francisco) e os Warao (Teresina).
Com a ausência da demarcação, acesso a direitos fundamentais como saúde e educação, são prejudicados. A falta da titulação do território prejudicou até mesmo o acesso à vacinação dos indígenas no Piauí. Ainda que o Plano Nacional de Operacionalização da Vacina tenha colocado povos indígenas como grupo prioritário, o fato das comunidades no estado não terem terras demarcadas atrasou a garantia de imunização, que só foi disponibilizada após pedidos à parte de lideranças e secretarias de saúde.
Políticas de ataque aos direitos de povos indígenas seguem avançando
A medida que assegurou a titulação da primeira terra indígena no Piauí está do lado oposto das decisões do atual governo federal, responsável pela demarcação de terras indígenas. As atuais medidas governamentais seguem travando os processos dessa natureza no país. Duas propostas que estão em tramitação no momento ferem diretamente os direitos dos povos indígenas à terra.
Uma delas, a PL 2633/20, também conhecida como MP da Grilagem, dispõe sobre a alteração na regularização fundiária onde flexibiliza e aumenta a possibilidade de que ocupações irregulares, feitas por grileiros e criminosos ambientais em comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, sejam legalizadas. O texto aguarda apreciação do Senado Federal.
O indígena e antropólogo Hélder Ferreira de Sousa pontua que a proposta é uma inversão de direitos e acentuará conflitos de terras – e consequentemente, número de mortes da população indígena e prejuízos ambientais. “Muitas terras estão superpostas sobre terras indígenas e isso vai retirar o direito já consolidado e que custou muito para os povos indígenas”, afirma.
No Piauí, uma das zonas de conflito por terra acontece na região do Matopiba que abrange no estado cerca de 18 municípios na região sul. Em 2020, esses conflitos tiveram como consequências as casas incendiadas dos indígenas Gamela que vivem na comunidade Barra do Correntim, em Bom Jesus (635km de Teresina). Na época, a liderança indígena James Rodrigues dos Santos Gamela, informou que não era o primeiro ataque violento a seu povo.
A segunda medida que ameaça o direito dos povos indígenas à terra é o PL 490, que tramita no Congresso Nacional desde 2007 e tem como proposta alterar o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001). Além de prevê novas regras de demarcação de terras, criando um “marco temporal” que considera terras indígenas apenas lugares ocupados pelos povos até o dia 5 de outubro de 1988 – data de promulgação da Constituição. O texto-base também proíbe a ampliação das reservas indígenas já existentes e traz outras medidas.
Para Mercês Alves, da comunidade dos indígenas Gamelas e integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a demarcação de todos os territórios indígenas garantirá que os territórios indígenas não sejam mais alvo de invasões. “Muitos sofrem com o agronegócio, os grileiros que vem invadindo cada vez mais as áreas, até mesmo aquelas que ficam próximas às comunidades”, comenta. Para ela, a demarcação também proporcionará a liberdade dos povos indígenas. “Não vai ter mais direitos violados e os povos se tornarão protagonistas de sua própria comunidade e do seu território”, acrescenta.
1 comentário
Delzenir Pereira Dos Santos · 11 de agosto de 2021 às 20:06
Nós indígenas Guegue do sangue aqui em Uruçuí estamos aguardando a resposta do Interpi desde do ano de 2016 todas as vezes que procurei o interpi nada foi resolvido. Mais nós não vamos desistir porque e nosso direito receber nosso território, como todos os indígenas do Piauí e do Brasil somos os legítimos herdeiros destas terras indígenas.